(imagem obtida aqui)
Dias
atrás, nos telejornais da hora do almoço, pudemos ver um Mário Soares
envelhecido, de saúde claramente debilitada, alterado, destrambelhado tanto nos
modos como no discurso, à saída do Estabelecimento Prisional de Évora, afirmar fora
de qualquer dúvida a inocência de José Sócrates bem como a existência de uma
conspiração, apoiada no aparelho de Justiça e na Comunicação Social, que visa
destruir a reputação desse ex-“primeiro-ministro exemplar”, de cuja seriedade ninguém
duvidará. Hoje, um familiar meu mostrou-me a frase que dá título a este post, posta
na boca de Soares dirigindo-se a Sócrates na foto acima, a circular na
internet.
A
frase insinua e a insinuação é algo que me repugna, a não ser quando visa o
óbvio, assim se mudando em subtileza do humor. Aproveitei-a, porém, porque, se
relacionada com o que se seguirá, reforça a compreensão do que, quanto a mim, a
detenção e prisão preventiva de José Sócrates trouxeram à superfície do
Portugal profundo, de um Portugal mais esquecido do que a mais recôndita das
suas aldeias.
Alguns
amigos, militantes do PS, perguntaram-me o que achava eu do ex-ministro do
Ambiente de António Guterres, à época em que ele se candidatou pela primeira
vez a secretário-geral do partido. Respondi-lhes – e, desde então, tenho-os
lembrado disso várias vezes – que seria uma péssima escolha não só para os
socialistas como para o país, uma vez que não encontrava nele nem perfil nem
capacidade quer para desempenhar as funções a que se propunha quer, muito
menos, para o cargo de primeiro-ministro que, em breve, com certeza viria a
ocupar. Agressivo, prepotente e, o que é pior, o paradigma, no plano político,
de um mestre d’obras com a correspondente visão sobre o desenvolvimento de
Portugal e os meios para o concretizar. Um “caudillo” maquilhado de europeu que
nada traria de bom, era o que me davam a entender as suas tiradas e acções
governativas e públicas. Riram-se.
Foi,
afinal, muito mas mesmo muito pior do que eu poderia esperar. José Sócrates
governou Portugal como um velho regedor de aldeia: berrando do alto do varapau
da maioria; fazendo descer o debate de ideias (desde sempre escasso) ao nível
da ausência; reinando, vingativo, pela divisão de todos e deste modo inibindo
em todos, por ressentimento ou medo, a livre expressão; impondo, com meios à
toa, medidas avulsas a que pomposamente chamou reformas, com elas
esfrangalhando a eito a estrutura do Estado sem critério nem dó. A meu ver,
foi, depois de Salazar, a catástrofe que o país mais poderia ter temido.
Durante
o período em que mandou no país, tive no blog Portugal e outras touradas, que criei em Maio de 2007 e encerrei,
de facto, em Julho de 2011, o meio de aliviar um pouco o sufoco que senti nesse
atoleiro quotidiano. Nele fui falando de tudo isto, à medida dos despautérios e
desastres consecutivos. Não o apaguei, continua online, e qualquer um pode verificar que foi sempre nos planos
político e social que me referi a Sócrates e ao seu governo, tal como a quem o secundou,
de perto ou de longe. Mesmo tendo em conta, entre outras coisas, o que aqui diz José Gomes
Ferreira, atento, tal como eu e muitos outros, aos sinais equívocos que emergiam
sobre o carácter do primeiro-ministro.
A
prisão preventiva de José Sócrates continua a não permitir, por agora, desfazer
ou confirmar as suspeitas que o levaram ao Estabelecimento Prisional de Évora.
Aguarda-se o resultado das investigações e, até lá, ao contrário de muita
gente, demasiada gente, pelo respeito devido a qualquer ser humano não me
permito o luxo de ter convicções num sentido ou noutro. Mas, por isso mesmo,
gostaria de deixar um pouco do que venho a reflectir acerca aqueles que vivem
acima das suas possibilidades de crença e certeza, e do nível de ostentação que
disso se permitem. Bem como da possível origem desse seu capital lógico e
ético.
Em
particular, o dos que se revoltaram em público quer com a detenção de José
Sócrates quer com o modo como ela ocorreu. Pois confesso que as operações
mentais utilizadas nesse seu empreendimento de indignação edificante são para
mim um mistério. Parecem-me de todo obscuras e, por isso, carentes de uma
investigação impeditiva de que os seus eventuais reflexos causem maiores
prejuízos na frágil economia moral da nação.
Com
um aviso prévio, porém. Dizia Sartre que se o nosso objectivo for
consciencializar uma família burguesa do horror que a sua vida constituiu não
bastará simplesmente gravá-la ou filmá-la e mostrar-lhe o resultado, porque, como
é natural, continuaria a nada estranhar no que visse e ouvisse. Teremos que
ampliar, acentuar os pormenores decisivos que lhe escapam ou que contribuem
para o seu torpor, numa palavra: até certo ponto, caricaturar. Não gosto de
Sartre por aí além, mas dou-lhe razão quanto a isto. O mesmo farei, portanto,
em relação a esses meus compatriotas indignados, e as imagens que utilizar
seguidamente assim deverão ser entendidas.
Consideram
eles, em primeiro lugar, que nem a detenção nem o modo como foi realizada são
compatíveis com o cidadão que a sofreu; que constituiu um procedimento
vergonhoso, por humilhante, para quem ocupou o mais alto cargo governativo. Mas
imaginemos (e, relembro-o, irei exagerar, caricaturar para melhor me fazer
entender) que Al Capone, no intuito de lograr um maior enriquecimento e poder
pessoais, ao invés de enveredar pela actividade criminosa explicitamente
violenta, mas local, se propusesse alcançar a presidência dos Estados-Unidos,
deitando mão de influências. E que, havendo-o conseguido, reforçasse e cimentasse
a rede de corrupção, valendo-se de favorecimentos e promoção de obras e
políticas públicas, apresentando-as como fazendo parte de um plano
desenvolvimento dos USA, mas que, na realidade, visariam apenas concretizar os
seus intentos e alargar em definitivo a sua riqueza e esfera de acção pessoais.
E que não tivesse pejo nem escrúpulos de, para tal, levar o país à beira da
bancarrota. O facto de ter ocupado a mais alta posição do Estado reverteria na
dignificação do seu carácter? Ou, antes, isso sim, em perversidade acrescentada,
que o próprio Estado, enquanto instrumento do bem-comum, deveria repudiar e
banir com maior vigor ainda?
Porque estaríamos num
plano onde criminalidade e política não se distinguiriam uma da outra, e a
extensão do delito se estenderia não somente a todo o país como também a mais
de uma geração – acusação, aliás, infelizmente muito pouco inédita, tantas
vezes ouvimos fazê-la a muitos dos chefes de Estado africanos e da América
Central e do Sul…
Relembrando-o
de novo: ninguém sabe se é este o caso (mitigado) de José Sócrates. Ninguém se
pode arrogar a emitir juízos que lhe sejam favoráveis ou acusatórios antes de
se apurar a verdade. Mas também ninguém, muito menos os que enaltecem
constantemente a igualdade dos cidadãos perante a lei, pode invocar o argumento
de que, por o havermos tido como governante, a Justiça e a polícia procederam
mal (criminosamente, nas palavras subentendidas de alguns) não lhe atribuindo
um tratamento de excepção, ao invés de procederem com ele como o fizeram, isto
é, da mesma maneira como procederiam com qualquer outro suspeito de actividades
ilícitas.
Admitamos,
porém uma segunda hipótese, a de nos encontrarmos perente um caso de distúrbio
de personalidade do tipo romanceado por Robert Louis Stevenson em O médico e o monstro. O caso em que
teríamos, ao mesmo tempo, um Sócrates “primeiro-ministro exemplar” (para
retomar a expressão de Mário Soares) e um outro, meliante mafioso nas horas
livres da governação, embora para tal se aproveitando dos conhecimentos e
influências que o cargo ocupado lhe facultavam. Quem deveria então a polícia
escolher para a detenção: o dr. Jekyll com Mr. Hyde à perna; ou Mr. Hyde
trazendo a reboque o dr. Jekyll? Uma escolha impossível julgo eu, já que tal
exigiria das autoridades um prévio conhecimento da psique de José Sócrates,
produto do exame que, tanto quanto se saiba, nunca foi realizado.
Chamo,
a propósito, a atenção para que a argumentação dos responsáveis maiores do PS e
de alguns dos defensores de Sócrates segue em paralelo com esta linha de
raciocínio, ao afirmarem que não se pode nem deve confundir o Sócrates político
com um eventual Sócrates criminoso. De outro modo: que podem existir em
sincronia, numa só pessoa, um brilhante e patriótico primeiro-ministro e um
escroque de primeira linha, que age em proveito próprio suportado pelas funções
que desempenha. A hipótese, como disse anteriormente, não é menosprezável, mas
terá que ser provada; e a polícia não é, nem costuma ir, à bruxa. Limitou-se,
pois, a proceder segundo as regras do mais elementar bom-senso quando se trata
de prender um suspeito de crimes graves.
Donde
virá, então, aquilo que me parece ser uma espécie de incoerência toldada pelas
emoções (ou por quaisquer outros factores desconhecidos…) por parte de quem se
indignou com a prisão de um antigo primeiro-ministro? Esta a pergunta a que,
como já disse ao início, me propus responder a mim próprio, mas que achei
pertinente o bastante para dever partilhá-la.
É
que neste “não se prende nem se trata assim um antigo primeiro-ministro!” há
qualquer coisa de “ancien régime” com cheiro a peúga de ex-seminarista, algo
entre o bafio e o cheiro a beco escuso e escuro da vontade. Algo que cheira a
“argumento de autoridade” e a “você sabe com quem está a falar?” que me
assombrou em menino com voz roufenha.
Juro:
estremeci de apreensão e um arrepio percorreu-me a espinha quando ouvi,
repetido até por quem não esperaria, aquele “não se prende nem se trata assim
um antigo primeiro-ministro”! Parecia-me que, como num vulgar filme de terror,
um grupo de zombies fazia ecoar, no país, a voz de quem houvesse feito das suas
cabeças sepultura, assombrando os vivos com os restos que de si nelas
permanecessem, antes de se tornar para sempre em pó.
A
simples possibilidade de enunciar tudo isto de forma explícita me constrange e
enoja. Respondi, portanto, à pergunta metaforicamente. Mas julgo que fui
bastante claro sobre a identidade desse avesso de Lázaro, doentio e violento,
que tão fundo cravou as suas garras na mente de Portugal. Mesmo nos que são (ou
se dizem) paladinos da democracia.
Voltando
ao tom anterior, e antes de terminar quero ainda, contudo, acrescentar algo que
julgo oportuno e de certa importância para alguns militantes socialistas.
Começo
por recordar os elogios que Miguel Macedo recebeu de toda a oposição quando, há
pouco tempo, pediu a demissão das suas funções de ministro da Administração
Interna. Fê-lo devido à prisão do responsável máximo do Serviço de Estrangeiros
e Fronteiras e de outros funcionários envolvidos em casos de corrupção. Gente,
note-se, cuja nomeação para as posições que ocupavam não fora feita por ele,
mas por quem o antecedera como responsável do MAI – não me lembro se o director
do SEF foi nomeado logo no início do primeiro governo de José Sócrates ou no
final do de Durão Barroso. Não teria necessidade de sair, mas demitiu-se em
benefício da credibilidade do regime enquanto aguarda pelo apuramento da
investigação e pela consequente decisão judicial.
Os
ministros são-no por convite do primeiro-ministro indigitado após as eleições.
Seriam, assim, da confiança de José Sócrates aqueles que integraram os seus
governos e discutiram as diferentes políticas sectoriais e as medidas
destinadas a implementá-las. Não ignoravam as motivações e os objectivos
apresentados pelo chefe da equipa governamental de que decidiram fazer parte.
Não podem, assim, afirmar que desconheciam o alcance e as implicações do plano
que ajudaram a estruturar e a fazer cumprir. Se não se aperceberam, serão
incapazes para desempenhar devidamente funções a esse nível. Se se aperceberam,
das duas uma: ou não se deram conta de eventuais irregularidades; ou, se deram,
serão cúmplices passivos ou activos de Sócrates.
Ora
alguém duvida de que a incapacidade de detectar crimes de lesa-pátria é
incomparavelmente mais grave do que o desconhecimento de um ministro sobre
actividades criminosas de um conjunto de funcionários de um dos sectores de um
ministério? Sem falar já na possibilidade de se ser suspeito de conivência…
Daí
o meu apelo aos antigos militantes do PS que colaboraram com Sócrates, a
começar por António Costa: a bem do regime democrático, demitam-se de todas as
suas funções políticas partidárias. Sigam o exemplo que – tão justamente e a-propósito
– elogiaram de Miguel Macedo e esperem pelo apuramento da verdade para as
retomarem, rebrilhando de inocência e verticalidade cívica.
E
que não vociferem como o pobre “pai da nossa democracia”, cada vez mais
fragilizado, que “aquilo não se faz a um antigo primeiro-ministro!”. Para que
os portugueses, eles próprios alheios ao fantasma ainda habita em muitos dos
seus maiores, mas tendo em mente o velho provérbio “diz-me com quem andas,
dir-te-ei quem és”, não discorram de modo tão distorcido como a frase inscrita
na foto deixa transparecer.
1 comentário:
Sócrates, que começou como menino de oiro, passou a animal feroz da política, chegou a mandão mor e decaíu como recluso 44, começa a causar-nos comiseração. De assustador de varapau em punho, agora revela-se como dama carpideira. Francamente o digo. começo a ter por ele um sentimento claro de dó. Posto ante responsabilização como nunca sentira, mostra o seu interior profundo: um sujeitinho lamentável, não de cabeça digna erguida mas vomitando impropérios à guisa de regateira de praça. Uma tristeza.
Vicente Nunes
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