terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Da estrutura da fome




Poderia ser um título comum a estas três crónicas de Alberto Gonçalves:


A fome e a vontade de comer


O universo dos blogues recuperou um extraordinário texto do ordinário (no sentido não pejorativo do termo) Paulo Pedroso, antigo ministro da Solidariedade. O texto, velho de um ano na prática e de décadas na teoria, é um excelente exemplo dos argumentos por detrás do ódio ao Banco Alimentar (BA) em geral e à sua presidente, Isabel Jonet, em particular.

A tese, se tamanha infantilidade merece o nome, é a de que o BA não passa de um sistema de escoamento dos excedentes dos supermercados, o qual alivia "as consciências sem resolver nenhum problema estrutural". Através de evidências, meias-verdades e cabeludas mentiras (os que doam os serviços ao BA não se reduzem a "escuteiros e toda a rede de voluntários ligada à Igreja Católica"), só falta ao dr. Pedroso reproduzir a linda rábula do peixe, da cana e do pescador para concluir, cito, que prefere dedicar a sua "energia" a "perguntar-se" o que pode "fazer para que diminua este tipo de procura de bens alimentares enquanto a senhora Jonet escoa a oferta".

Talvez seja altura de questionar o dr. Pedroso sobre se a energia que dedica e as perguntas que se faz já deram frutos e respostas. Aposto que não deram: pensar "estruturalmente" a pobreza é tarefa de uma vida e, à semelhança de matutar acerca do destino desta, não leva a lado nenhum. Ou leva a cargos em governos, universidades, fundações, observatórios e empresas "públicas" empenhadas em não suprir as necessidades de nenhum desgraçado até que se possa satisfazer todos os desgraçados da Terra em simultâneo. A "caridade" que tanto repugna o dr. Pedroso compõe a barriga de mil, dez mil ou cem mil famintos, mas isso de nada serve quando não se resolve os problemas que tornam a fome possível, ainda que o processo demore séculos. E se, no entretanto, o pessoal continua à míngua, trata-se de um pormenor que não afecta a cósmica generosidade do dr. Pedroso, corajosamente indiferente a casos individuais e apenas interessado no "conceito". Em tempos, os ricos tinham, e alimentavam, o "seu" pobrezinho. Gente como o dr. Pedroso chama a si os pobrezinhos em peso - desde que não precise de alimentar nenhum.

Não acredito na bondade "pura". Não me custa aceitar que Isabel Jonet também se mova por ambições íntimas, incluindo desejos de notoriedade ou outros. A questão é que, no processo, há pessoas que infelizmente precisam do trabalho da senhora e dele aproveitam. Em contrapartida, abro uma excepção para o dr. Pedroso e similares, que possivelmente são guiados pelas melhores intenções e pelo mais cristalino altruísmo sem que daí resulte qualquer benefício para alguém - excepto, vejam lá a ironia, os benfeitores.

Agora a sério, mesmo que o dr. Pedroso dificulte a tarefa: não me esqueci do autor da maior acção de caridade da história do regime. Falo, evidentemente, do "rendimento mínimo", proeza de propaganda que incluía a "superficialidade" inconsequente que o dr. Pedro critica no Banco Alimentar sem incluir o voluntariado que, em prol da coerência, o dr. Pedroso continua a detestar: no RSI (eufemismo actual), os donativos são arrancados à força.


O reino dos céus


Perante as críticas do Papa Francisco ao capitalismo e aos "mercados", as pessoas que gostam do Vaticano recordam que isso não é mais do que a costumeira doutrina social da Igreja. As pessoas que abominam o Vaticano acham que a retórica é novidade e não só vai arrasar o capitalismo e os "mercados" como, se a coisa correr pelo melhor, arrasará a Igreja. Eu, neutro na matéria, prefiro notar que, apesar do aparente embaraço de uns e do evidente entusiasmo dos outros, o próprio Papa talvez fizesse melhor em começar por comentar o desemprego, a pobreza e a fome nos felizardos países sem inclinações capitalistas e nos quais os mercados se limitam aos lugares onde o povo compra, quando consegue comprar, hortaliças e galinhas. Se a devoção materialista tem muitos defeitos, uma virtude ninguém lhe nega: não se confunde com nenhuma das maravilhosas alternativas disponíveis.


Um caso



O Governo prepara o agravamento do IRC para as empresas com lucros superiores a 50 milhões. O PS defendia a subida da taxa para 7%, o Governo ficou-se pelos 6%, mesmo assim prova suficiente de que, entre nós, o crescimento económico é severamente castigado por lei. As empresas exemplares, dignas de comendas e carinhos fiscais, são as muito pequeninas ou as muito inviáveis. O resto, que felizmente já é pouco, é corrido a toque de impostos, às vezes literalmente e para lá da fronteira. Dado que nos contribuintes particulares a dimensão do saque é ainda maior, a mensagem de quem manda é claríssima: não prosperem. O "neoliberalismo" de sabor português é de facto um caso, não sei se de estudo se de polícia.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Burros e sindicalistas (ou vice-versa)





Eis do que se fala em duas crónicas de Alberto Gonçalves:



E o burro somos nós


Já quase toda a gente foi informada de que a edição europeia do New York Times cedeu boa parte da primeira página ao burro mirandês, um animal doce cuja preservação depende de subsídios e que o autor do artigo usou como metáfora para a situação portuguesa, ou pelo menos do interior português. Em vez de nos resignarmos à galhofa e a outras, e evidentes, metáforas, convinha ler o artigo com atenção e notar as palavras de Orlando Vaqueiro, ex-presidente da Junta de Freguesia de Ifanes (160 habitantes), que declarou ao NYT: "Os subsídios são necessários para manter os burros, mas sucede que todos se tornam completamente dependentes deles, logo não existe espírito de inovação nem vontade de modernizar ou produzir mais." Aqui, já nada é metafórico, mas a pura verdade, e é curioso que tenha sido um político a resumi-la. É natural tratar-se um político obscuríssimo e sem sombra de carreira. Para os hábitos caseiros e as vulgares perspectivas de ascensão, o homem é (preencham o resto com o nome de um animal da vossa, ou nossa, predilecção).


Humilhados e ofendidos

(imagem recolhida aqui)

Na falta de um povo que execute arruaças por eles, os próprios sindicalistas resolveram entreter o ócio e passar um dia a forçar a entrada em ministérios. Na falta de um Governo com vestígios de coragem, os sindicalistas não foram recebidos por uma ordem de detenção, conforme seria razoável, mas pelos governantes ou seus representantes, cheios de compreensão e agendas para marcar reuniões com os arruaceiros. Percebo a ideia. Se meia dúzia de larápios me invadirem a casa, a minha reacção natural é aprazar uma almoçarada com os ditos. E se, numa perspectiva diferente, o chefe da repartição de Finanças não me desempatar uma chatice qualquer com a brevidade desejada, furo-lhe dois pneus do carro e tudo terminará entre abraços. Ou não?

Se calhar, não. Num país em que as desigualdades são pasto da demagogia mas raramente preocupam mesmo alguém, é possível que o cidadão comum contemple este espectáculo e sinta que alguma coisa lhe escapa. Porque é que alguns são livres de violar a lei e outros não? Porque é que alguns são julgados instantaneamente após dirigirem uns remoques ao Presidente da República e outros incitam à violência popular sem que lhes aconteça nada? Porque é alguns vêem a vida a andar para trás a pretexto de uma mísera prestação à Segurança Social e outros vêem dívidas de 17 milhões "assumidas" pelos contribuintes em peso? Porque é que eu, você e o meu vizinho do lado devemos obediência à autoridade e um conhecido treinador da bola consegue tratar a autoridade ao tabefe sem consequências dignas do nome? Porque é que delinquentes sem posto são impedidos de trepar a escadaria do Parlamento e centenas de polícias em fúria não? Porque é que deputados recorrem à nostalgia revolucionária para montar "piquetes" e aos benefícios do cargo para evitar represálias?

A impunidade de que tanto se fala e que tanto se condena não se esgota no estereótipo do banqueiro anafado, de preferência com cartola e monóculo. Há imensos privilégios à solta, e cada um implica a humilhação dos que não os gozam. E um gozo a cada menção do lendário Estado de direito.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

E viva o "combate" ao desemprego

Esta ideia genial do marxista Maduro de criar um ministério para aprovação dos preços e da margem de lucro de todos os produtos e de todos os comerciantes venezuelanos é "genial". Vai certamente ser uma forte medida de combate ao desemprego. Para desempenhar tal tarefa é provável que 50 milhões de funcionários públicos seja suficiente.

... nem quero imaginar o grau de corrupção que se vai instalar.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

E muito bem ...

... por Helena Matos.

Decálogo do português mediático

1. A Igreja é boa se for progressista. O Tribunal Constitucional é bom se for progressista. O Papa é bom se for progressista. Cavaco Silva nunca é progressista mas às vezes tem umas intermitências em que apoia os progressistas e nesses fugazes momentos deixa de ser "Cavaco" para ser senhor Presidente da República. Mas só nesses!

2. A ‘troika' até às eleições de 2011 era boa porque ia ajudar o País a entrar numa nova etapa de desenvolvimento que graças a um choque reformista colocaria Portugal na primeira linha das nações mais avançadas.

3. A ‘troika' a partir das eleições de 2011 é má porque nos impõe uma austeridade que impede o desenvolvimento económico e social que o País aliás registava até à sua chegada. Assim o fim da intervenção da ‘troika' em Portugal deve ser referido como libertação e todo o progressista acredita que após esse dia o Estado português não só pode como deve voltar a gastar como fez até 2011.


4. No passado as reformas não foram feitas porque os líderes políticos preferiram ganhar votos a salvar o País e o Estado social. No presente as reformas não podem ser feitas porque são feitas à bruta, com cortes cegos e sem tempo de adaptação. No futuro já não vamos a tempo de fazer as reformas porque no passado - que por sinal é o nosso presente - não houve homens que tivessem coragem de as fazer. Em resumo, o presente nunca é o tempo certo para fazer reformas (ou o que quer que seja) mas quando o presente se torna passado é óbvio que as reformas deviam ter sido feitas. Se houvesse homens, claro! (Confesso que esta conversa sobre a falta de homens me parece um pouco reacionária para não dizer mais!)

5. Quem pensa como os progressistas são pessoas muito inteligentes, muito amigas dos pobres e naturalmente com certificado de anti-fascismo e de lídimos defensores do Estado Social. Em certos graus de progressismo até se chega ao estatuto de pai da Constituição, do Estado Social ou da democracia. Quem não concorda com os progressistas são pessoas atrasadas, reacionárias e analfabetas porque mesmo que saibam ler não retiram a devida mensagem do que lêem e naturalmente são estéreis em matéria de paternidades honoris causa.


6. A desigualdade é um espinho cravado no coração dos progressistas. Se formos todos igualmente pobres não há problema algum. Mas haver pobres e ricos isso é uma afronta. Para alguns progressistas mais progressistas a pobreza resolve-se confiscando os bens dos ricos que uma vez espoliados ficavam igualmente pobres (ou, mais provavelmente ainda, iam ser ricos para outro lado). Outros progressistas mais pragmáticos propõem um regime alternado: às segundas, quartas e sextas diz-se mal dos ricos, às terças, quintas e sábados exige-se-lhes que invistam no País para criarem emprego. Aos domingos descansam, que o progressismo agora anda beato.


7.Todos os dias o progressista tem de falar de fome, acompanhando a palavra "fome" de uma espécie de movimento dos músculos faciais como se estivesse a pronunciar a palavra Guantanamo nos tempos de Bush (fazer esgar). Depois veio Obama, o homem que ia fechar Guantanamo (pausa para fazer ar sofredor) que por acaso não fechou mas isso não interessa nada. Até à eleição de um presidente republicano, claro.


8. Se o povo não faz aquilo que os progressistas mandam tal deve-se ao facto de o povo estar cheio de fome e já não conseguir mover-se ou de estar aterrorizado e não vir para a rua por medo. Mas nunca, jamais, em tempo algum por discordar dos progressistas, pois a essência do progressismo radica na transmigração das almas: a alma do povo comunica com as mentes progressistas (e apenas com estas) e diz-lhes o que quer, sente e deseja. Quanto às outras almas, a sua natureza não progressista condena-as à partida ao inferno da bruteza, embora algumas consigam redimir-se, particularmente se tiverem sido salazaristas pois nesse caso basta-lhes repetir o que na década de 50 do século passado diziam sobre os partidos e ficam automaticamente progressistas.


9. Estão momentaneamente autorizados a celebração do 1º de Dezembro e o uso da expressão protectorado que noutros tempos seriam coisa de gente muito reacionária mas agora ficam assim a meio caminho entre a direita pita shoarma e a esquerda patriótica que trocou o caviar pelo pão com chouriço.


10. Discordar dos princípios atrás enunciados é sinal inequívoco de anti-progressismo, atitude que em Portugal equivale a pecado mediaticamente mortal. Amen.