domingo, 31 de março de 2013

"A entrevista"


(imagem obtida aqui)

Diz assim Alberto Gonçalves:

A única justificação plausível para a longa entrevista do eng. Sócrates à RTP passaria pela apresentação formal de um pedido de desculpas pelos erros cometidos em seis anos de desmiolada governação. Passou-se exactamente o contrário: o homem continua impermeável à realidade, não admitiu um só erro e distribuiu culpas por tudo o que se movia e move em seu redor. Portugal está como está graças à crise internacional, à Lehmann Brothers, a Cavaco Silva, ao actual Governo, ao "Correio da Manhã" e aos biltres sortidos que teimam em difundir "narrativas" (sic) mentirosas sobre a excelsa competência e personalidade do ex-primeiro-ministro. Ele acerta sempre, logo, por definição, os que dele discordam falham sempre.

Convém reconhecer que, apesar de intrinsecamente tontas, na prática estas alucinações funcionam. Não obstante a brutal inépcia de que já deu provas, o eng. Sócrates continua a dispor de um número considerável de seguidores fervorosos. Pior: mesmo entre os adversários há quem lhe atribua o tipo de características que constituem o chamado "carisma", virtude exaltada em sociedades primitivas e que quando não suscita veneração suscita uma espécie de asco respeitoso. Ou medo. Donde as expectativas de índole diversa fomentadas pelo regresso da criatura e o sucesso de audiências do regresso propriamente dito.

Perante isto, impõe-se uma questão: as pessoas andarão maluquinhas? Bem espremido, o eng. Sócrates merece tanta consideração quanto o título que precede o nome. Em matéria de ridículo, demonizá-lo equivale a beatificá-lo, no sentido de se lhe dar a importância que ele evidentemente não possui. O mito do "animal feroz", que o próprio mitómano inventou a ver se colava, colou de facto e tornou-se um dado adquirido a fiéis e a inimigos, os quais deveriam parar para pensar no exagero em que incorrem.

Descontado o folclore alusivo, a que se resume afinal o eng. Sócrates? A pouquito, uma mediocridade arrogante e uma calamidade política que subiu na carreira à custa de manha, sorte e atraso de vida. Foi justamente o atraso de vida que proporcionou o típico encanto de alguns face à prestação televisiva da passada quarta-feira.

Não importa que o eng. Sócrates tenha passado a entrevista a exprimir-se em língua-de-trapos (repetiu em 57 ocasiões a palavra "narrativa", nenhuma no contexto adequado), a contar mentirolas cabeludas, a desfilar desfaçatez e a exibir impertinência perante jornalistas aliás meigos. Não importa que compare uma dívida pública agravada em prol da propaganda eleitoral com os empréstimos necessários para atenuar os efeitos da bancarrota que a propaganda provocou. Não importa que explique o luxo de Paris com uma dívida privada e hilariante. Não importa que, com a discutível excepção do ataque às trapalhadas do PR, a prestação do eng. Sócrates roçasse o patético. Importa insistir que o "animal feroz" se mostrou preparadíssimo e mantém uma relação privilegiada com as câmaras. Mário Soares considerou a entrevista "brilhante" e, notoriamente excitado, um antigo funcionário do portento proclamou: "Sócrates ama a televisão e a televisão ama Sócrates."

Seria cruel interromper o idílio, que de resto prosseguirá em doses semanais a partir de Abril. Os fiéis do eng. Sócrates aproveitarão para se deliciar com o exercício e os que vêem no sujeito a origem do Mal poderão entreter-se a exorcizá-lo. Pelo meio, é possível que, programa após programa, laracha após laracha, uns tantos ganhem bom senso e comecem a reduzir aquela lamentável figura à sua verdadeira dimensão, a de um vendedor de patranhas que, orientado pela vaidade, fundamentado na inépcia e sustentado por pasmados e oportunistas, ajudou mais do que qualquer outro a arruinar o país. Sendo certo que os estudos em Paris não ensinaram nada ao eng. Sócrates, talvez os portugueses que por cá pagam a factura do seu intelecto aprendam uma ou duas coisinhas.

Das Testemunhas da Constituição




Do PREC* que ainda por aí anda, de pedras na mão e saído debaixo delas











PREC.

UDP

MRPP (hoje denominado PCTP-MRPP)

sexta-feira, 29 de março de 2013

E começou a discussão...!



Lê-se aqui:
Um estudo do Bundesbank concluiu que o património das famílias alemãs é inferior ao das espanholas ou ao das italianas.
Um estudo do Bundesbank conclui que o património das famílias alemãs é inferior ao das espanholas ou ao das italianas e foi muito criticado na Alemanha, por se basear numa metodologia considerada pouco fiável.
A edição do Spiegel Online, citada hoje pela AFP, estimava na sexta-feira que o estudo do banco central alemão tem uma série de problemas metodológicos, nomeadamente no que se refere ao universo abrangido, ao património considerado e às datas de referência.
De acordo com o Bundesbank, as famílias alemãs detêm, em média, 195.200 euros, enquanto as francesas têm 229.300 euros e as espanholas 285.800 euros.
O património mediano (o nível acima do qual se situa a média das famílias) seria apenas de 51.400 euros na Alemanha, ou seja, duas a três vezes menos do que em França (113.500), em Espanha (178.300) e em Itália (163.900).
Face a estes números, que suscitaram espanto, a principal explicação apontada pelo Bundesbank é a baixa proporção de alemães proprietários de casa por comparação aos outros países da Europa.
Apenas 44,2% dos alemães é dono da sua habitação, contra 57,9% dos franceses e 82,7% dos espanhóis, de acordo com o banco central alemão, que estima que os proprietários imobiliários são, em média, mais ricos do que os outros.
O estudo foi amplamente mediatizado na Alemanha, numa altura em que a chanceler alemã, Angela Merkel, está sob pressão para defender os interesses dos contribuintes germânicos, embora seja criticada pelos outros países do euro por falta de solidariedade.
O relatório foi também muito criticado pelas datas de referência consideradas: por exemplo, o património detido pelos espanhóis refere-se a dados de 2008, sendo que os preços das casas caíram depois da bolha imobiliária em Espanha.
Além disso, o estudo também não considera os direitos à reforma nem as prestações sociais, que representam a quase totalidade da riqueza das famílias mais pobres.
Comparar o património das famílias, e não das pessoas individuais, coloca também um problema, na medida em que a dimensão média é maior nos outros países europeus do que na Alemanha, que tem muitas pessoas que vivem sozinhas.
Interrogado na sexta-feira, um porta-voz do Bundesbank escusou-se a fazer comentários, mas esclareceu que o estudo incide sobre as famílias alemãs e que, "para as comparações internacionais, é preciso esperar pelos números do Banco Central Europeu".

quinta-feira, 28 de março de 2013

A SIMPLICIDADE DA SITUAÇÃO SÍRIA


 

O que está acontecendo na Síria é, de fato, muito simples: um governante e seu grupo se recusam a deixar o poder, e para isso massacram seu próprio povo, o verdadeiro soberano do país. Nada pode ser mais ilegítimo, infame e obsceno. Por que, então, aviões ocidentais simplesmente não bombardeiam os palácios de Assad e acabam com a obscenidade, a infâmia e a ilegitimidade? Porque a guerra civil não cessaria, até que alguém emergisse com força bastante para impor-se como novo governante. Nesse momento, se o Ocidente quisesse influir na escolha (e certamente teria de fazê-lo, tendo em vista a experiência do Afeganistão, de cuja guerra civil emergiu o Taleban, sunita como a maioria síria), o único modo seria se envolver na luta. E isto, depois do próprio Afeganistão e do Iraque, não acontecerá. Há, porém, uma alternativa: o apoio em armas, informações e logística para os rebeldes, a fim de que estes destruam Assad e tomem ao mesmo tempo o poder, encerrando a guerra. Acontece que os rebeldes são muitos. Muitos grupos diferentes unidos pela causa comum contra o ditador genocida. O risco, então, é uma repetição agravada da Líbia, que após a queda de Kadafi se encontra, na prática, dividida entre senhores da guerra. Mais uma vez, volta-se ao fantasma do prolongamento da guerra civil, com resultados imprevisíveis, a não ser que haja uma intervenção ocidental... O que acontece na Síria não é uma mera guerra civil, mas uma tragédia na acepção da palavra, em que o herói luta porque tem de lutar, enquanto o próprio fato de lutar é a realização de sua destruição, não a chance, como acredita, de se livrar de seus infortúnios. O herói, aqui, naturalmente é o próprio povo sírio. A frase de Brecht (“Triste do país que precisa de heróis”) poucas vezes foi tão real e tão amarga.

quarta-feira, 27 de março de 2013

SÓCRATES E A BANALIDADE DO MAL OU A VOLTA DO CONDOTTIERI



Ecce homo

José Sócrates, ex-premier e actual comentador putativo, vendo bem é o menos culpado de vir para a TV pública (ou seja, paga pelos dinheiros do contribuinte) comentar de cátedra.

  Ele, como "condottieri" partidário que é (e não líder, na verdade), faz o que todos os aventureiros políticos fazem: tenta a sua chance usando todos os meios que lhe coloquem na órbita. Como perante o convite que lhe foi dirigido.

(imagem obtida aqui)

  Aproveitando as circunstâncias e tirando partido dos erros e caquexias dum governo fraco e pedante, disponibilizou-se com apresto e procura aparecer agora como um Chávez do jardim luso, como um Fidel desta nação (en)cavacada. Estando a política no degrau mais baixo da ética, fácil foi ter sido pescado pelos verdadeiros culpados de lhe ter sido fornecido um púlpito de onde, qual Savonarola, poderá sem contraditório eventualmente mentir, manipular, baralhar os pobres diabos populares que, no fundo, os adversos dizem que despreza e apenas utiliza.

(imagem obtida aqui)

Tão alegadamente cínico e ardiloso politicamente como no seu tempo o foi o mito manipulativo Roosevelt, que fingiu criar um New Deal para melhor levar ao engano (depois bem o pagaram!) os pobres ianques, Sócrates é determinado: cruel sem ser corajoso, habilidoso sem ser atilado, simulador sem ser sensato, é bem um “animal feroz político” (como diziam os que o incensavam) de traça peculiar. Daí que a seu propósito os asseclas falem em “liberdade de expressão”, quando não é isso que está em causa - ele podia escrever o que quisesse e mandar para os mídias, publicar livros, podia falar dentro do partido e na praça pública de qualquer cidadão (mas preferiu refugiar-se em Paris até deixar passar o maior ódio público pelos seus desmandos e inoperâncias governativas). Pois o que está realmente em causa é ter sido privilegiado com uma tribuna discricionária onde, de cátedra, se poderá eventualmente branquear.

(imagem obtida aqui)

   Os que o fizeram não o fizeram ingenuamente, pois não são idiotas inertes. Houve um propósito, que o dito "animal feroz da política" ou estimulou ou aproveitou. Comentador? Não. Tribuno partidário, como outros – sempre políticos na sua maioria! - fazendo a sua propaganda e dos seus áulicos, isso sim. E isto da parte de alguém que, conforme “vox populi” e até um magistrado, tentou acabar com liberdade de expressão e era useiro e vezeiro em ferozmente tentar defenestrar quem o contrariasse, afivelando uma expressão política dura e maldosa.

(imagem obtida aqui)

  Ele vem não para ajudar o país e a população portuguesa, vem sim para lançar a cizânia, a barafunda e a violência partidária. Conta com duas coisas: que o povo esqueça que, sendo expressamente partidário do "pedir emprestado e não pagar", nos colocou na dependência financeira e na pré-bancarrota; depois, que o povo mais primário atire para cima destes pobres diabos da governação de agora o ónus da miséria formal ("No tempo do Sócrates vivia-se melhor"...). Um tipo perigoso, mais perigoso hoje que dantes, pois vem agitar os díscolos revanchistas e os pervertidos com desejo de vingança - é ler-se na Net os textos brutais que eles bolsam.


  Sócrates só tentará ser presidente da República para, nesse posto, "todo lo mandar". Mas, como bom condottieri, o que ele gosta mesmo é de GOVERNAR (alegadamente falhado como académico, vulgar como scholar, fazedor, de acordo com conhecedores, de trabalhotes medíocres construídos “com a mão do gato”, o seu único lugar é na política, na governança, no mando – como reza o apólogo bíblico). Nisso, é bem um homem da Renascença – à guisa comparativa simbólica de um Del Dongo, de um Piero Negri, que à frente das suas hostes talaram e manobraram as cidades do que depois viria a ser a Itália.


  Banalizado o mal, esquecido o mal por indigência moral ou por labilidade de carácter duma parte do público em que a política de escada-abaixo destes tempos tristes se escora, tudo se abre na frente destes cavalheiros. "Irmão Sócrates", como carinhosamente lhe chamou no velório do sátrapa venezuelano o inenarrável Maduro?

   Sem dúvida. Ele sabia na prática a quem estava a dirigir tal epíteto... familiar!

Crónicas do nacional-bandalhismo





Fá-las Alberto Gonçalves, no DN. As que se seguem, por exemplo.


Sócrates, serviço público

A SIC Notícias anuncia repetida e orgulhosamente o seu leque de novos comentadores. Os anúncios tendem para o solene, com imagens de Jorge Coelho a examinar o oceano, de Francisco Louçã a contemplar obras de "arte" contemporânea e de Bagão Félix a folhear um livro no jardim. Os comentadores são os citados (além, dizem-me, de Marques Mendes, cujo spot não vi), nomes de indiscutível notoriedade, duvidoso esclarecimento e nulo contributo para o progresso da nação. Mais curioso ainda, são todos políticos.

Em todo o mundo civilizado, e em boa parte do mundo incivilizado, seria inconcebível que sujeitos de reconhecida militância partidária (ou com escancaradas pretensões à dita) fossem chamados a opinar regularmente acerca do universo dos partidos. Por cá, é o costume. Já o era quando há menos de um ano diversos correspondentes da imprensa estrangeira em Portugal confessavam à Sábado nunca terem testemunhado semelhante. E hoje, principalmente nas televisões mas não apenas nas televisões, é quase lei.

Não vale a pena tentar perceber os motivos que levam as direcções a decidir assim. Porém, a fim de aferir a dimensão da excentricidade, talvez conviesse imaginar um documentário de David Attenborough sobre o reino animal sem a participação do conhecido naturalista britânico e com o rumo do programa entregue a gastrópodes, marsupiais e batráquios. Engraçado? Com certeza. Sucede que a graça haveria de se perder, coisa que infelizmente não aconteceu com a paciência do público.

O público, que gosta de fingir rebelar-se contra a "partidocracia" na política, aceita sem objecções a partidocracia na análise da política. Excepto, pelos vistos, no caso de José Sócrates, que a RTP se lembrou de contratar para emitir palpites. É verdade que os palpites do homem ajudaram imenso à ruína do país. É verdade que ao contribuinte custará muito pagar um novo salário (em numerário ou em tempo de propaganda) a quem tanto contribuiu para a sua penúria. É verdade que dói ver facultar a liberdade de expressão a um seu incessante inimigo. É verdade, em suma, que o "serviço público" decidiu adicionar o insulto à injúria. Porém, julgo excessivo que a indignação das massas, traduzida numa série de petições inflamadas, recaia exclusivamente em cima do ex-primeiro-ministro, ex-estudante de Filosofia e actual vendedor de medicamentos na América Latina.

No mínimo, há o risco de o pormenor obscurecer o princípio. E o princípio é o de que nada aconselha a que A Vida na Terra seja comentada por caracóis, cangurus e rãzinhas. A circunstância de uma das rãs ostentar um passado particularmente repulsivo é um detalhe, não a autêntica questão. Os consumidores, que durante anos legitimaram a promiscuidade, carecem de argumentos para os queixumes de agora: aberta a porta do zoo, a bicharada em peso sai à rua e entra nos estúdios televisivos. Aqui, a selecção natural é uma falácia.

E se apetecer a algum leitor escrever-me a notar que, ao contrário dos bichos, os animais políticos se distinguem pela inteligência, recomendo que pense duas vezes. Ou uma: uma deverá bastar.


Para quem é, 'Grândola' basta

No Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, em Lisboa, alguns estudantes receberam o primeiro-ministro aos gritos de "demissão" e "Coelho sai da toca". Fizeram muito bem. Se a mocidade sente o impulso de berrar qualquer coisa, ao menos que não seja a Grândola. A melodia é quase inexistente. As harmonias são pobres. A letra é um refogado de lugares-comuns e, para cúmulo, mentirosos, já que da única vez que visitei a "vila morena" não vi nenhum amigo à esquina: vi um automóvel ultrapassar-me a uma velocidade pouco recomendável. Um par de quilómetros depois, o automóvel despistara-se e o condutor jazia meio morto no chão.

Mas fujo do assunto. Grândola, a cantiga, é tão maçadora quanto a generalidade das mais célebres cantigas ditas de "intervenção". Os autores do género, nacionais ou estrangeiros, acham que as massas só apreendem produtos simplórios na música e na lírica. Além de ser um pressuposto falso (Brother, Can You Spare a Dime, escrita em 1930 pelo então comunista "Yip" Harburg, é um raro exemplo de que uma canção de protesto relativamente sofisticada pode comover imensa gente), é um pressuposto revelador da opinião que os intelectuais ao serviço do povo têm do povo que servem. Mesmo José Afonso guardava os ocasionais momentos de inspiração para canções alheias ao comentário "social" (ocorre-me Era um redondo vocábulo). Nos momentos de indignação, lá vinha a Grândola ou o enervante "tiriririri" de Venham mais cinco e desgraças afins. E Sérgio Godinho, outro "baladeiro" que compôs meia dúzia de coisas esteticamente decentes, concentrava a indecência estética em misérias comoLiberdade ("A paz, o pão/ habitação/[etc.]"). Nos restantes "cantautores" indígenas não vale a pena procurar: o lixo é omnipresente.

Se os paladinos dos "oprimidos" lhes servem lixo quando são contrapoder, imagine-se o que lhes serviriam no poder. E quem não for dado à imaginação dispõe de pacotes de viagens a Cuba, pérola das Caraíbas e consumada terra da fraternidade.


O descaramento ilimitado

Para início de conversa, esclareço que, na minha opinião, uma lei ideal limitaria os mandatos autárquicos a cerca de uma semana, período a partir do qual os senhores autarcas começam a definir a rede de interesses que servirão. Também defendo que a lei deveria impedir as candidaturas dos vereadores, chefes de gabinete, secretários, assessores, compinchas, conhecidos e primos até terceiro grau do autarca cessante. Por fim, acho que a lei faria bem em limitar em quantidade as próprias autarquias, pormenor que aliás parecia constar do "memorando" assinado com a troika e que o Governo varreu airosamente para debaixo do tapete.

Quanto à lei que temos, é uma vergonha em matéria de clareza jurídica e um portento de matéria de clareza política. O PSD, que apresenta a votos diversos veteranos de outras freguesias (ou câmaras, para ser exacto), entende que a limitação incide nos municípios e não nas funções. O Bloco, que praticamente não é para aqui chamado, entende que a limitação incide nos municípios e nas funções. O PCP, que tenciona mudar dois ou três caciques alentejanos, entende que a limitação incide nos municípios e não nas funções. O CDS, uma fortaleza de convicção, entende que a limitação incide nos municípios e nas funções, excepto no caso de Lisboa. E o PS, que não viu interesse estratégico na transladação de candidatos, finge que o assunto não lhe diz respeito e pretende passar por exemplo ético.

Eis o perfeito retrato dos princípios que fundamenta o sistema partidário: com a lógica natural numa empresa, cada partido faz os cálculos, antecipa perdas e ganhos e decide de acordo com o respectivo interesse imediato, vendido aos simples sob o rótulo de "interesse nacional" e não, surpreendentemente, de Relatório & Contas. Resta apurar o número de simples que ainda engolem a patranha e confiam apaixonadamente nos partidos como nunca confiariam numa empresa. As eleições autárquicas serão um óptimo indicador e, suspeito, o péssimo sinal do costume.


Teste à amnésia

A estratégia não é complicada - dadas as cabecinhas que a conceberam, não podia ser. A ala "socrática" usou António Costa para apear António José Seguro, acusado de traição aos ideais que enfiaram o País na bancarrota. Inicialmente convencido de que o partido e o povo o desejavam com ardência, o dr. Costa ensaiou o avanço para a liderança. Posteriormente esclarecido de que o partido não o estima e o povo mal o conhece, o dr. Costa consumou uma retirada airosa e, sem surpresas, acabou acusado de cobardia. A ala "socrática" continuava sem um herói para recuperar o "seu" PS. Um belo dia, alguém propôs o próprio Sócrates e este, perito em despachar licenciaturas, voltará em Abril para desfilar sapiência na RTP. O dr. Seguro já afirmou que isto não põe em causa o seu posto, afinal uma confissão de que acha o contrário. Se funcionar, a estratégia mostrará que, além do PS, Portugal bateu no fundo.

terça-feira, 26 de março de 2013

Deambulando pelo individual ...

No Facebook de Ramiro Marques, aproveitando um parágrafo de JCM, deixei esta reflexão.
"Uma verdadeira aristocracia é movida pelo serviço. O individualismo é anti-aristocrático por excelência, pois coloca o interesse do indivíduo acima do interesse da comunidade, representada pelo rei ou por uma elite."

Repare na incongruência. Porque há-de ser o rei ou a elite a determinar o interesse geral? Por alma de quem?

Uma sociedade só se sustenta se o indivíduo, em função da sociedade em que vive (as suas decisões devem ser baseadas na realidade e não naquilo que eles gostariam que fosse a realidade porque a realidade implica outras pessoas) pensar primeiro em si e depois nos outros. O individualista põe os seus interessem prioritariamente em relação ao interesse alheio e faz muito bem.

O individualista só deve agir em função da sociedade se para ele houver vantagem. O fio de prumo deve ser a vantagem resultante para ele.

Vejamos a coisa pelo inverso o caso da pessoa que age prioritariamente em função da sociedade. Em primeiro lugar nada resolve quanto a si próprio para não ser individualista, ficando à espera que seja o todo a decidir a parte que lhe toca e expondo-se a ser carne para canhão dos iluminados. Em segundo, nunca terá autonomia porque, não devendo pensar primariamente nele próprio, devem ser os outros a pensar por ele relativamente ao que, quanto aos outros, deve ser o interesse dele. "Outros", quando o geral é prioritário, só pode, novamente, ser da cáfila de iluminados porque os congéneres também não devem resolver nada sem esperar pelo colectivo.

É o reino da sociedade de cóqueras, de social-dependência, de gente que a todos culpa e que nunca exerce o risco de decidir por si próprio.

Quando o indivíduo espera que sejam os outros a resolver por ele, espera igualmente que as dificuldades que ele terá que enfrentar perante uma qualquer rota proposta pelo todo, sejam, também, resolvidas pelo todo porque, se ele as resolver por si próprio, será claramente acusado de resolver à revelia do todo em proveito individual.

Finalmente, o interesse geral deve ser o somatório do interesse individual e não o contrário. Uma sociedade é bem sucedida se cada um pensar primeiro em si próprio e crie, para si, a máxima riqueza (uns conseguirão mais outros menos) mas a sociedade, como um todo, prospera, porque exactamente cada qual trata da sua vida o melhor que pode. [...]"Uma verdadeira aristocracia é movida pelo serviço. O individualismo é anti-aristocrático por excelência, pois coloca o interesse do indivíduo acima do interesse da comunidade, representada pelo rei ou por uma elite."

Repare na incongruência. Porque há-de ser o rei ou a elite a determinar o interesse geral? Por alma de quem?

Uma sociedade só se sustenta se o indivíduo, em função da sociedade em que vive (as suas decisões devem ser baseadas na realidade e não naquilo que eles gostariam que fosse a realidade porque a realidade implica outras pessoas) pensar primeiro em si e depois nos outros. O individualista põe os seus interessem prioritariamente em relação ao interesse alheio e faz muito bem.

O individualista só deve agir em função da sociedade se para ele houver vantagem. O fio de prumo deve ser a vantagem resultante para ele.

Vejamos a coisa pelo inverso o caso da pessoa que age prioritariamente em função da sociedade. Em primeiro lugar nada resolve quanto a si próprio para não ser individualista, ficando à espera que seja o todo a decidir a parte que lhe toca e expondo-se a ser carne para canhão dos iluminados. Em segundo, nunca terá autonomia porque, não devendo pensar primariamente nele próprio, devem ser os outros a pensar por ele relativamente ao que, quanto aos outros, deve ser o interesse dele. "Outros", quando o geral é prioritário, só pode, novamente, ser da cáfila de iluminados porque os congéneres também não devem resolver nada sem esperar pelo colectivo.

É o reino da sociedade de cóqueras, de social-dependência, de gente que a todos culpa e que nunca exerce o risco de decidir por si próprio.

Quando o indivíduo espera que sejam os outros a resolver por ele, espera igualmente que as dificuldades que ele terá que enfrentar perante uma qualquer rota proposta pelo todo, sejam, também, resolvidas pelo todo porque, se ele as resolver por si próprio, será claramente acusado de resolver à revelia do todo em proveito individual.

Finalmente, o interesse geral deve ser o somatório do interesse individual e não o contrário. Uma sociedade é bem sucedida se cada um pensar primeiro em si próprio e crie, para si, a máxima riqueza (uns conseguirão mais outros menos) mas a sociedade, como um todo, prospera, porque exactamente cada qual trata da sua vida o melhor que pode.

Claro que, neste momento, surge sempre alguém que reclama que haverá sempre gente que não consegue sequer tratar de si mesmo. Haverá, há, claramente. Mas também haverá sempre quem prefira dedicar-se apenas ao outro, considerando ser do seu interesse individual (sente-se realizado) vivendo pelo mínimo (normalmente os dedicados ao outro conseguem facilmente prover a sua subsistência) e seguir fazendo aquilo que comummente se chama "o bem".

O que não faz qualquer sentido é postular-se que cada qual deva vergar-se monocordicamente ao interesse geral como pensar-se que ao indvidualista está vedada a dedicação ao interesse geral.

O problema, nesta conversa, é que há uma desconfiança sistemática, pela parte dos defensores do social-como-batuta, na decisão individual.

Numa orquestra, o músico segue o maestro mas pretende dar uma mais-valia às indicações que, prioritariamente recebe, reverto essa mais valia a favor dele e, indirectamente, a toda a orquestra. É sempre o 'eu' que está (deve estar) em primeiro lugar. Mesmo e encrencas familiares onde o eu se reparte, de alguma forma, pelos filhos, por exemplo. Quando um pai ou uma mãe se sacrifica pelos filhos (o que acontece às pazadas), é o 'eu' que comanda. "Eu sacrifico-me pelos meus filhos", diz-se. Não se diz "sacrifico-me pelos meus filhos". Há, nesta coisa, uma carga de amor reflectido no próprio colocando o "eu" ao serviço dos filhos, digamos, quando o "eu" é valorizado perante o próprio no acto de tratar dos filhos.

- Ele tem braços e pernas? Sim?
- "Dá-lhe a cana, não lhe dês o peixe."

... e que não venha, todos os dias, pedir outra cana por isto ou aquilo. A dádiva de uma cana representa o esforço alheio (tempo de trabalho, tempo de vida trabalhando) entregue a quem a recebe e quem recebe a cana deve respeitar esse esforço como forma de estar bem consigo próprio. Se o fizer, fica bem com o outro porque vai ao encontro daquilo que o outro julgou ser do seu interesse, altruístico que seja. Quem dá a cana quer ter o (digamos) orgulho de poder ser visto, no mínimo perante si próprio, evidentemente também perante quem o rodeie, como tendo feito algo que o eleva, o auto-promove. O empresário é isto de forma particularmente eficaz e eficiente porque, numa sociedade de não dependentes do sacrossanto estado, do sacrossanto social, o empresário é o gajo que ganha permitindo que outros ganhem. O empresário é o gajo que dá a cana e espera que uma parte do peixe reverta em seu favor para poder prosperar e distribuir mais canas.

"Hitler na escola"




É o título de um artigo de Esther Mucznik, no PÚBLICO, cuja leitura , pelo que consegue transmitir do actual estado de coisas em Portugal, recomendo com carácter de urgência (via Lisboa-Telaviv).

Dias Loureiro e a bandalheira na guerra das audiências



Ouvindo a Verdade na Rádio Moscovo


É a minha vez de transcrever uma apreciação deixada na caixa de comentários do post anterior do José Gonsalo:


Noticiou ontem o Correio da Manhã que a administração da RTP endereçara também um convite, para ser comentador, a DIAS LOUREIRO.


Este senhor é neste momento um dos arguidos do infame caso BPN e, até ser julgado e talvez condenado, goza do estatuto de inocente. Foi também o célebre ministro do Interior de Cavaco, tendo-se especializado numa gerência musculada, como usa dizer-se liricamente.



Infere-se pois que a dita administração da RTP (estação televisiva cujas audiências são neste momento as mais baixas do ranking) estará eventualmente apostada num violento esforço de melhorar as quotas através do alegado sensacionalismo de cariz que não classificamos.



A contratação do filósofo proto-parisiense não terá portanto sido ditada por um amor estrénuo à liberdade de expressão, como os seus bosses pretendem mentalizar, mas por algo que andará a meio caminho entre o puro oportunismo e a falta de capacidade de erguer uma tv verdadeiramente de serviço público.



Ou jogada política e das rombas. E o resto... será conversa?

Rodrigo de Menezes

segunda-feira, 25 de março de 2013

Avis raras de boa e a má rapina

Perante a rapina efectuada por Chipre e pela "europa" à contas bancárias dos depositantes dos bancos cipriotas, alguém é capaz de me explicar por que há, em Portugal, gente presa por causa do BPN e BPP?

Sócrates e nuestros hermanos




Dou aqui relevo ao comentário de um leitor a este post do Joaquim Simões:

O espanto dos espanhóis deve-se a isto: eles, apesar de viverem aqui ao pé, não conhecem de facto os cumes de cinismo, falta de vergonha e pura canalhice a que os gestores, nomeadamente de um mídia, são capazes de descer. Zapatero, para eles, é um has been. Para estes de cá, Socas é, apesar de estar envolto em coisas alegadamente muito sujas, um potencial presidente da República, pois a bandalhice de certa gente tornou-se norma. Daí, por temerem a volta do "irmão Sócrates", pois cá tudo é possível, é que os chefões do Sist.judic. continuam a não o investigar e têm tapado o homem até às fezes. Ou seja, o que vigora cá, neste tipo de gente, é a moral de gangsters. Porque, com 120 mil ou dez assinaturas é o mesmo: uma república de fascistas disfarçados, para melhor fazerem render o peixe (podre), não larga o povinho, usa-o como o Socas fez e vai continuar a fazer com a ajuda dos lellos todos que o acolitam.

A BORBOLETA MALINESA E O VERME DA GUERRA


     
 
 
       1 Asas pousadas em sangue

Para quem souber ver, o mapa do Mali é uma borboleta. Uma enorme borboleta pousada na porção ocidental da África. A grande borboleta malinesa está agora sendo dilacerada por dentro pelo verme da guerra civil. Para salvá-la, o governo malinês, que habita sua asa sul, pediu ajuda à África, à Europa e ao mundo, a fim de conter as forças de corrosão, concentradas na asa norte. Houve, felizmente, respostas: respostas prontas e efetivas. Pois o possível dilaceramento e a consequente morte da borboleta malinesa seria o início de um período perigoso para toda a África Ocidental, espalhando os vermes da guerra, do terrorismo e da potencial desestabilização de Estados e sociedades por uma vasta área do continente, a começar pelos muitos países que as asas malinesas tocam diretamente: Argélia, Mauritânia, Senegal, Guiné, Costa do Marfim, Burkina Fasso e Níger. Os dois primeiros estenderiam a instabilidade para o norte da África e o Mediterrâneo; os três seguintes, para a costa ocidental africana e o Atlântico; os dois últimos, para a África central, com destaque para a Nigéria.

Os motivos de a morte da borboleta malinesa ser tão perigosa estão em seu predador e na própria borboleta. Quanto a esta, ela existe mais nos traços delicados do mapa do que nas duras asperezas do terreno: as fronteiras nessa parte da África, como em todo o continente, são frágeis como as asas de um inseto. Quanto ao seu predador, trata-se de um exército islamita. O termo exército foi evitado pela imprensa, que prefere milícia. Mas esta é uma acepção legal, porque em termos legais apenas forças armadas oficiais costumam ser chamadas de exércitos. No entanto, isto confunde o aspecto propriamente militar, pois milícia está associado a um pequeno grupo de indivíduos mal armados. E as forças islamitas que tentaram derrubar o governo malinês e criar um Estado islâmico no Mali eram de fato um exército. Um exército pequeno, mas um exército pequeno é mais do que uma grande milícia. Além disso, tinham força militar suficiente para tomar o frágil país. Isso quase aconteceu há poucas semanas, quando, depois de dominar a asa norte, o exército islamita ameaçou a capital, Bamako, no centro da asa sul. Foi quando o governo malinês pediu ajuda à África, à Europa e ao mundo.

Se os grupos islamistas malineses tomassem o poder, o Mali seria um novo Afeganistão dos talebans. Um desses grupos malineses, aliás, é a própria Al Qaeda, ou a sua seção africana:


AQIM (sigla em inglês de “Al Qaeda no Magreb Islâmico”)

Existente desde 1998, tem base no Mali. A maioria de seus integrantes é de origem argelina, mas também atua na Mauritânia, no Chade, Níger, Nigéria e Líbia. Tem como principal objetivo transformar esses países em estados islâmicos. Além das ligações confessas com a Al Qaeda, seus integrantes são acusados de se utilizarem de métodos como sequestros, tráfico de armas e cigarros, extorsões e lavagem de dinheiro.


MUJAO (“Movimento pela Unidade e Jihad na África Ocidental”)

Dissidência da Aqim. Seu objetivo é a implementação da jihad (guerra islâmica) na África Ocidental. A Aqim, de maioria argelina, teria se afastado desse princípio, segundo os fundadores do Mujao.

Ansar Dine (“Defensores da Fé”, em árabe)

Seu objetivo declarado é a imposição da sharia em todo o território. [...] Após a tomada da histórica cidade de Timbuctu, em abril de 2012, o fundador e líder da organização, Iyad ag Ghaly deu uma entrevista à rádio local anunciando a aplicação da sharia e seus respectivos detalhes: imediata obrigatoriedade do uso de véu nas mulheres, apedrejamento de adúlteras e mutilação de ladrões. Logo após o anúncio, boa parte da população cristã fugiu para outras cidades. O Ansar Dine nega relações com a Al Qaeda, afirma não ter envolvimento com o sequestro de reféns no campo de tratamento de gás em uma petrolífera no sul da Argélia.

Os três grupos islâmicos também contam com ajuda militar, estratégica e financeira do grupo extremista Boko Haram, baseado na Nigéria.
 
As informações acima são as mais confiáveis possíveis, pois sua origem não é a imprensa “imperialista”, mas uma matéria de um site com irrefutáveis credenciais de esquerda, o Opera Mundi: “Grupos insurgentes no Mali têm origens e objetivos diferentes” (http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/26661/grupos+insurgentes+no+mali+tem+origens+e+objetivos+diferentes.shtml). Essas “origens diferentes” se referem ao quarto grupo envolvido, de caráter étnico:


MNLA (Movimento Nacional pela Libertação de Azawad)

Muitos dos atuais insurgentes do MNLA lutaram nos dois lados na guerra civil da Líbia em 2011, que terminou com a queda do regime do coronel Muamar Kadafi (1969-2011). Formado em 23 de outubro de 2011, três dias após a morte de Kadafi. Voltaram para o Mali, em sua maioria, sem emprego, mas fortemente armados. O MNLA, formado por milicianos separatistas tuaregues, é um grupo secular. Mas, para conquistarem o norte do Mali, contaram com ajuda de grupos armados de orientação islâmica. Posteriormente à conquista da região, em abril de 2012, e a declaração (não-reconhecida) da independência de Azawad, entraram em conflito com os grupos islâmicos, perdendo o controle das principais cidades em julho. Atualmente, apoiam o governo do Mali e a intervenção francesa.
 

Para mim e para muito mais gente, incluindo o governo central malinês e o povo tuaregue do Azawad (a “asa norte” da borboleta malinesa), a situação é bastante clara: o exército islamita formado pelas forças conjuntas dos três primeiros grupos, que chegam a milhares de homens armados com equipamento militar trazido da Líbia após a derrota de Kadafi, tinha de ser derrotado. Isto impôsa ajuda militar externa, pois o governo malinês explicitou sua incapacidade de fazer frente aos agressores. A ONU, portanto, aprovou essa ajuda, a França agiu rapidamente para oferecê-la e os países africanos vizinhos se organizam lentamente para enviar tropas. As forças islamitas do Mali foram, felizmente, rechaçadas.

Sua derrota, no entanto, não será igual à sua imediata erradicação. O norte do Mali integra o Saara, as fronteiras do país são porosas, as vilas isoladas, a comunicação precária. As dificuldades para sua erradicação são mais um forte argumento para o início imediato de sua contenção. Não é o que pensam os comentadores de esquerda.
 

2 Mali, Líbia, Síria: o que pensam os que pensam mal
 

Há muito o pensamento geopolítico de esquerda patina em enorme e insuperável confusão, que só fez aumentar com os pouco claros acontecimentos da Primavera Árabe (diretamente ligada aos do Mali). Porque apesar de se tratar de revoltas populares contra governos tirânicos, nem todos os tiranos, para a esquerda, eram os tiranos “certos”. Pois o pensamento de esquerda, presa histórica de um profundo maniqueísmo, divide tudo, incluindo as tiranias, em elementos bons e elementos maus. Isso decorre de sua referência única, o antiamericanismo e, por extensão, o antiocidentalismo. No caso das tiranias árabes, havia portanto as más, ou seja, as apoiadas pelo Ocidente, com destaque para o Egito de Mubarak, e as boas, isto é, as inimigas do Ocidente, com destaque para a Líbia de Kadafi e a Síria de Assad. Por isso a esquerda se torceu e contorceu para encontrar argumentos a fim de questionar o apoio da OTAN aos revoltosos líbios, desconsiderando simplesmente, ou melhor, simplistamente, que os revoltosos líbios lutavam contra uma tirania sanguinária e ensandecida. Mas nem a loucura de Kadafi e suas décadas de poder despótico e cruel seriam suficientes para a esquerda considerar que às vezes apoiar a OTAN é a coisa certa a fazer. “Se Hitler invadisse o inferno, eu me aliaria ao diabo”, disse Churchill. Mas Churchill, naturalmente, era mais inteligente do que a maioria dos pensadores atuais da esquerda. E ajudou a salvar a Europa e o mundo do nazismo, enquanto Stálin, o Grande Líder da esquerda à época, de início preferiu se aliar a Hitler (Pacto Germano-Soviético) do que ao “diabo” ocidental... A esquerda atual, portanto, prefere o pequeno Hitler, o pequeno genocida que foi Kadafi, e o não-tão-pequeno genocida que é Assad, do que apoiar qualquer ação do referido “demônio” (agora isso se repete no Mali).

Para passar por inteligente, a burrice maniqueísta de esquerda apela então para certa “esperteza” econômica. Em resumo, a OTAN não apoiou os revoltosos líbios porque, no contexto da Primavera Árabe, a era Kadafi chegara ao fim, logo, abreviar esse fim era a coisa certa a fazer, incluindo encerrar a sangria do povo líbio, e sim porque a Líbia tem petróleo. Mas a Síria não tem. Daí a ainda maior dificuldade atual de a esquerda questionar o apoio ocidental à revolta do povo sírio contra a camarilha genocida dos Assad. Não que isso a intimide.


Entra ano e sai ano da era da hegemonia imperial norte-americana, a agenda das guerras não deixa de se alongar. Ao Afeganistão e ao Iraque se somaram a Líbia e a Síria e a lista só tende a ser maior.
 

Portanto, para este luminar da esquerda brasileira, o que ocorre na Síria é uma guerra imperialista norte-americana! Muita gente, em outras épocas, seria internada num sanatório por muito menos, mas felizmente isto não acontece mais. Voltemos, enfim, ao Mali:
 

O Mali é apenas um dos tantos casos. [...] Os ataques dos grupos que já controlam o norte e parte do centro do Mali encontram resposta armada da França, que bombardeia sistematicamente as regiões controladas pelos opositores. Mas não há nenhuma condição de ocupar esses territórios, mesmo militarmente. O conflito é um pântano em que a França se meteu e onde, cada vez mais, vai se afundar. Hoje, 75% da população francesa – por enquanto, quando ainda não chegam cadáveres de franceses – apoiam a ação militar e 84% da esquerda o apoia. Isso confirma que o elemento neocolonial francês sobrevive, e conta com os socialistas para isso. Mas a aventura vai custar caro à França e ao próprio governo Hollande.
 

O articulista parece preocupado com a França: afinal, avisa que “O conflito é um pântano em que a França se meteu e onde, cada vez mais, vai se afundar”. Mas, na verdade, não se trata de preocupação, e sim de ameaça: “a aventura vai custar caro à França e ao próprio governo Hollande”. Atente-se para o fácil truque retórico de reduzir a ação militar francesa a uma ”aventura”, como se nada de sério ou grave estivesse envolvido. Mas tais truques e tais ameaças (que, aliás, lembram muito o tom dos comunicados islamitas) são apenas a demonstração cabal das limitações argumentativas do articulista. Neste caso, ele de fato não é reconhecido pelo brilhantismo (Emir Sader, “Os epicentros das guerras imperialistas”, http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=1173). O problema é que seus argumentos se repetem sempre os mesmos, até a náusea, na imprensa de esquerda.
 

[Uma] narrativa tão frequentemente empurrada pela mídia ocidental, que estereotipa aquilo que se considera o mal, assim como temos visto a brutal guerra civil imposta na Síria.
 

Portanto, a guerra civil na Síria não é uma consequência da repressão de Assad à revolta popular, mas uma “imposição” do pérfido Ocidente! Isto segundo um articulista do “respeitado” The Independent londrino. Sigamos para o Mali:
 

A intervenção ocidental liderada pela França, apoiada pela Grã-Bretanha e com possíveis ataques dos norte-americanos, sem dúvida, estimula a narrativa promovida pelos grupos radicais islâmicos. [...] A ação no Mali vai ser retratada como "mais um exemplo de um ataque contra o Islã". Com o alcance rápido e moderno da comunicação, grupos radicais na África Ocidental usarão esta escalada de guerra como prova de outra frente aberta contra os muçulmanos. [...] Mas as consequências podem ser mais profundas. Além de espalhar caos pela região, a França já mapeou seus alvos que podem ser atingidos por terroristas, e o mesmo podem acontecer com seus aliados. É uma responsabilidade de todos nós questionar o que nossos governos estão fazendo em nossos nomes. Se não aprendermos com o que ocorreu no Iraque, Afeganistão e Líbia, então não haverá esperança (Owen Jones, “No Mali, não há uma guerra do bem contra o mal”, The Independent, http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21514&boletim_id=1504&componente_id=25569


Portanto, a França não deveria intervir porque agir militarmente contra os islamitas não os enfraquece, os fortalece. Logo, o que os enfraqueceria seria sua vitória no Mali, e a tomada do poder num grande Estado da África Ocidental... Além de mais esse raciocínio brilhante, novamente há a “preocupação” com a França, neste caso, de se tornar alvo de ataques terroristas. Mas, novamente, não é o que parece. Mesmo porque, tais comentaristas são incapazes de especular sobre o que aconteceria se acaso os islamitas tomassem o poder no Mali. De um lado, isto denota desonestidade intelectual. De outro, subentende que, para eles, não seria preocupante. E por que o seria? Os islamitas não são, afinal, também irracionalmente antiocidentais?


Para o jornalista suíço Gilles Labarthe, fundador da agência de notícia Datas, as intenções da França passam longe de termos como “guerra ao terror” e “ajuda humanitária”. Especialista em colonialismo francês e autor de livros como "L'or africain. Pillages, trafics & commerce international" (em tradução livre "O ouro africano: pilhagens, tráfico e comércio internacional"; editora Agone, 2007), ele afirma, em entrevista ao site espanhol Publico.es, que parece “claro que a França e o resto dos países implicados no Mali estão se movendo pelo interesse de assegurarem os recursos minerais da região, como já ocorreu há dois anos na Líbia”. O jornalista admite que “é mais difícil identificar que o lobby industrial está por trás de tudo”, mas ele aponta que importantes companhias extrativistas como a Aréva possuem o direito de explorar o urânio no Níger e estão a apenas 200 quilômetros da fronteira com o Mali. A empresa fechou 2012 com um crescimento de 4% a 6% no faturamento, e há perspectiva de crescimento em 2013. A França tem a energia nuclear como principal fonte de sua matriz energética, e seu governo é proprietário de 14,33% da companhia (João Novaes, “Riquezas minerais, além do combate ao terror, explicam intervenção francesa no Mali”, http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/26665/riquezas+minerais+alem+do+combate+ao+terror+explicam+intervencao+francesa+no+mali.shtml


Voltando, portanto, à “esperteza” econômica da esquerda, deve-se questionar a “honestidade” da ação francesa no Mali porque a França tem interesses energéticos no Níger... Logo, a França respondeu ao pedido de ajuda do governo malinês porque as forças islamitas, se tomarem o Mali, podem ameaçar o Níger. Em primeiro lugar, seria mais fácil, barato e seguro para a França proteger militarmente suas jazidas no próprio Níger do que lutar no Mali inteiro para isso. Em segundo lugar, se o sucesso dos islamitas no Mali é uma ameaça ao vizinho Níger, como reconhece então esse comentarista, isto demonstra que os islamitas malineses são, de fato, uma ameaça à estabilidade da África Ocidental, uma das importantes razões alegadas pela França para intervir no Mali. Não importa. Os comentaristas de esquerda são “espertos” demais para não se deixarem enganar por si mesmos... Mas, apesar de tudo, no caso da combalida borboleta malinesa, este comentarista afinal “admite que é mais difícil identificar que o lobby industrial está por trás de tudo”, enquanto o título da matéria fala em “riquezas minerais além do combate ao terror” para “explicar a intervenção francesa”. Então, mesmo para alguns dos mais petrificados comentaristas de esquerda, parece estar se tornando difícil identificar o “lobby industrial por trás de tudo”, e, portanto, negar a verdadeira ameaça à paz mundial que os grupos armados islâmicos representam.

Em termos minimamente lúcidos, o fato é que o anêmico primeir0-ministro socialista François Hollande não tinha interesse ou vontade de empreender nenhuma nova “aventura colonial” na África, principalmente no contexto dos graves problemas sociais e econômicos da crise europeia. Prova disso é ter sido deixado sozinho por seus sócios europeus. Ou seja, os demais países da UE não aproveitaram a “deixa” para também se atirar sobre as “riquezas minerais” escondidas sob as frágeis asas da borboleta malinesa. Seu raciocínio não deixa de ser, por isso, perfeitamente cínico e oportunista: se a França já está fazendo o serviço tão necessário quanto caro, sujo e arriscado, por que eu também iria me meter? O mínimo que se pode dizer é: “Vive la France!”. E que também viva, ou sobreviva, a frágil borboleta malinesa.