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Asas pousadas em sangue
Para quem souber ver, o mapa do Mali é uma
borboleta. Uma enorme borboleta pousada na porção ocidental da África. A grande
borboleta malinesa está agora sendo dilacerada por dentro pelo verme da guerra
civil. Para salvá-la, o governo malinês, que habita sua asa sul, pediu ajuda à
África, à Europa e ao mundo, a fim de conter as forças de corrosão,
concentradas na asa norte. Houve, felizmente, respostas: respostas prontas e
efetivas. Pois o possível dilaceramento e a consequente morte da borboleta
malinesa seria o início de um período perigoso para toda a África Ocidental,
espalhando os vermes da guerra, do terrorismo e da potencial desestabilização
de Estados e sociedades por uma vasta área do continente, a começar pelos muitos
países que as asas malinesas tocam diretamente: Argélia, Mauritânia, Senegal, Guiné,
Costa do Marfim, Burkina Fasso e Níger. Os dois primeiros estenderiam a
instabilidade para o norte da África e o Mediterrâneo; os três seguintes, para
a costa ocidental africana e o Atlântico; os dois últimos, para a África
central, com destaque para a Nigéria.
Os motivos de a morte da borboleta malinesa
ser tão perigosa estão em seu predador e na própria borboleta. Quanto a esta,
ela existe mais nos traços delicados do mapa do que nas duras asperezas do
terreno: as fronteiras nessa parte da África, como em todo o continente, são
frágeis como as asas de um inseto. Quanto ao seu predador, trata-se de um
exército islamita. O termo exército foi
evitado pela imprensa, que prefere milícia.
Mas esta é uma acepção legal, porque em termos legais apenas forças armadas
oficiais costumam ser chamadas de exércitos. No entanto, isto confunde o
aspecto propriamente militar, pois milícia
está associado a um pequeno grupo de indivíduos mal armados. E as forças islamitas
que tentaram derrubar o governo malinês e criar um Estado islâmico no Mali eram
de fato um exército. Um exército pequeno, mas um exército pequeno é mais do que
uma grande milícia. Além disso, tinham força militar suficiente para tomar o frágil
país. Isso quase aconteceu há poucas semanas, quando, depois de dominar a asa
norte, o exército islamita ameaçou a capital, Bamako, no centro da asa sul. Foi
quando o governo malinês pediu ajuda à África, à Europa e ao mundo.
Se os grupos islamistas malineses tomassem o
poder, o Mali seria um novo Afeganistão dos talebans. Um desses grupos malineses,
aliás, é a própria Al Qaeda, ou a sua seção africana:
AQIM
(sigla em inglês de “Al Qaeda no Magreb Islâmico”)
Existente
desde 1998, tem base no Mali. A maioria de seus integrantes é de origem
argelina, mas também atua na Mauritânia, no Chade, Níger, Nigéria e Líbia. Tem
como principal objetivo transformar esses países em estados islâmicos. Além das
ligações confessas com a Al Qaeda, seus integrantes são acusados de se
utilizarem de métodos como sequestros, tráfico de armas e cigarros, extorsões e
lavagem de dinheiro.
MUJAO (“Movimento pela Unidade e Jihad na África Ocidental”)
Dissidência
da Aqim. Seu objetivo é a implementação da jihad (guerra islâmica) na África Ocidental.
A Aqim, de maioria argelina, teria se afastado desse princípio, segundo os
fundadores do Mujao.
Ansar
Dine (“Defensores da Fé”, em árabe)
Seu
objetivo declarado é a imposição da sharia em todo o território. [...] Após a
tomada da histórica cidade de Timbuctu, em abril de 2012, o fundador e líder da
organização, Iyad ag Ghaly deu uma entrevista à rádio local anunciando a
aplicação da sharia e seus respectivos detalhes: imediata obrigatoriedade do
uso de véu nas mulheres, apedrejamento de adúlteras e mutilação de ladrões. Logo
após o anúncio, boa parte da população cristã fugiu para outras cidades. O
Ansar Dine nega relações com a Al Qaeda, afirma não ter envolvimento com o
sequestro de reféns no campo de tratamento de gás em uma petrolífera no sul da
Argélia.
Os
três grupos islâmicos também contam com ajuda militar, estratégica e financeira
do grupo extremista Boko Haram, baseado na Nigéria.
As informações acima são as mais confiáveis
possíveis, pois sua origem não é a imprensa “imperialista”, mas uma matéria de
um site com irrefutáveis credenciais
de esquerda, o Opera Mundi: “Grupos
insurgentes no Mali têm origens e objetivos diferentes” (http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/26661/grupos+insurgentes+no+mali+tem+origens+e+objetivos+diferentes.shtml). Essas “origens diferentes” se referem
ao quarto grupo envolvido, de caráter étnico:
MNLA (Movimento Nacional pela
Libertação de Azawad)
Muitos dos atuais insurgentes do MNLA lutaram nos dois
lados na guerra civil da Líbia em 2011, que terminou com a queda do regime do
coronel Muamar Kadafi (1969-2011). Formado em 23 de outubro de 2011, três dias
após a morte de Kadafi. Voltaram para o Mali, em sua maioria, sem emprego, mas fortemente armados. O MNLA, formado por milicianos
separatistas tuaregues, é um grupo secular. Mas, para conquistarem o norte do
Mali, contaram com ajuda de grupos armados de orientação islâmica.
Posteriormente à conquista da região, em abril de 2012, e a declaração
(não-reconhecida) da independência de Azawad, entraram em conflito com os
grupos islâmicos, perdendo o controle das principais cidades em julho.
Atualmente, apoiam o governo do Mali e a intervenção francesa.
Para mim e para muito mais gente, incluindo o
governo central malinês e o povo tuaregue do Azawad (a “asa norte” da borboleta
malinesa), a situação é bastante clara: o exército islamita formado pelas
forças conjuntas dos três primeiros grupos, que chegam a milhares de homens
armados com equipamento militar trazido da Líbia após a derrota de Kadafi, tinha
de ser derrotado. Isto impôsa ajuda militar externa, pois o governo malinês
explicitou sua incapacidade de fazer frente aos agressores. A ONU, portanto,
aprovou essa ajuda, a França agiu rapidamente para oferecê-la e os países africanos
vizinhos se organizam lentamente para enviar tropas. As forças islamitas do
Mali foram, felizmente, rechaçadas.
Sua derrota, no entanto, não será igual à sua
imediata erradicação. O norte do Mali integra o Saara, as fronteiras do país
são porosas, as vilas isoladas, a comunicação precária. As dificuldades para
sua erradicação são mais um forte argumento para o início imediato de sua
contenção. Não é o que pensam os comentadores de esquerda.
2 Mali, Líbia, Síria: o que pensam os que pensam mal
Há muito o pensamento geopolítico de esquerda
patina em enorme e insuperável confusão, que só fez aumentar com os pouco
claros acontecimentos da Primavera Árabe (diretamente ligada aos do Mali). Porque
apesar de se tratar de revoltas populares contra governos tirânicos, nem todos
os tiranos, para a esquerda, eram os tiranos “certos”. Pois o pensamento de
esquerda, presa histórica de um profundo maniqueísmo, divide tudo, incluindo as
tiranias, em elementos bons e elementos maus. Isso decorre de sua referência
única, o antiamericanismo e, por extensão, o antiocidentalismo. No caso das
tiranias árabes, havia portanto as más, ou seja, as apoiadas pelo Ocidente, com
destaque para o Egito de Mubarak, e as boas, isto é, as inimigas do Ocidente,
com destaque para a Líbia de Kadafi e a Síria de Assad. Por isso a esquerda se
torceu e contorceu para encontrar argumentos a fim de questionar o apoio da
OTAN aos revoltosos líbios, desconsiderando simplesmente, ou melhor,
simplistamente, que os revoltosos líbios lutavam contra uma tirania sanguinária
e ensandecida. Mas nem a loucura de Kadafi e suas décadas de poder despótico e
cruel seriam suficientes para a esquerda considerar que às vezes apoiar a OTAN
é a coisa certa a fazer. “Se Hitler invadisse o inferno, eu me aliaria ao
diabo”, disse Churchill. Mas Churchill, naturalmente, era mais inteligente do
que a maioria dos pensadores atuais da esquerda. E ajudou a salvar a Europa e o
mundo do nazismo, enquanto Stálin, o Grande Líder da esquerda à época, de
início preferiu se aliar a Hitler (Pacto Germano-Soviético) do que ao “diabo”
ocidental... A esquerda atual, portanto, prefere o pequeno Hitler, o pequeno
genocida que foi Kadafi, e o não-tão-pequeno genocida que é Assad, do que
apoiar qualquer ação do referido “demônio” (agora isso se repete no Mali).
Para passar por inteligente, a burrice
maniqueísta de esquerda apela então para certa “esperteza” econômica. Em
resumo, a OTAN não apoiou os revoltosos líbios porque, no contexto da Primavera
Árabe, a era Kadafi chegara ao fim, logo, abreviar esse fim era a coisa certa a
fazer, incluindo encerrar a sangria do povo líbio, e sim porque a Líbia tem
petróleo. Mas a Síria não tem. Daí a ainda maior dificuldade atual de a
esquerda questionar o apoio ocidental à revolta do povo sírio contra a
camarilha genocida dos Assad. Não que isso a intimide.
Entra ano e sai ano da era da hegemonia imperial
norte-americana, a agenda das guerras não deixa de se alongar. Ao Afeganistão e
ao Iraque se somaram a Líbia e a Síria e a lista só tende a ser maior.
Portanto, para este luminar da esquerda
brasileira, o que ocorre na Síria é uma guerra imperialista norte-americana!
Muita gente, em outras épocas, seria internada num sanatório por muito menos,
mas felizmente isto não acontece mais. Voltemos, enfim, ao Mali:
O Mali é apenas um dos tantos casos. [...] Os ataques dos
grupos que já controlam o norte e parte do centro do Mali encontram resposta
armada da França, que bombardeia sistematicamente as regiões controladas pelos
opositores. Mas não há nenhuma condição de ocupar esses territórios, mesmo
militarmente. O conflito é um pântano em que a França se meteu e onde, cada vez
mais, vai se afundar. Hoje, 75% da população francesa – por enquanto, quando
ainda não chegam cadáveres de franceses – apoiam a ação militar e 84% da
esquerda o apoia. Isso confirma que o elemento neocolonial francês sobrevive, e
conta com os socialistas para isso. Mas a aventura vai custar caro à França e
ao próprio governo Hollande.
O articulista parece preocupado com a França:
afinal, avisa que “O conflito é um pântano em que a França se meteu
e onde, cada vez mais, vai se afundar”. Mas, na verdade, não se trata de
preocupação, e sim de ameaça: “a aventura vai custar caro à França e ao próprio
governo Hollande”. Atente-se para o fácil truque retórico de reduzir a ação
militar francesa a uma ”aventura”, como se nada de sério ou grave estivesse
envolvido. Mas tais truques e tais ameaças (que, aliás, lembram muito o tom dos
comunicados islamitas) são apenas a demonstração cabal das limitações
argumentativas do articulista. Neste caso, ele de fato não é reconhecido pelo
brilhantismo (Emir Sader, “Os epicentros das guerras imperialistas”, http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=1173). O problema é que seus argumentos se
repetem sempre os mesmos, até a náusea, na imprensa de esquerda.
[Uma] narrativa tão frequentemente empurrada pela mídia
ocidental, que estereotipa aquilo que se considera o mal, assim como temos
visto a brutal guerra civil imposta na Síria.
Portanto, a guerra civil na Síria não é uma
consequência da repressão de Assad à revolta popular, mas uma “imposição” do
pérfido Ocidente! Isto segundo um articulista do “respeitado” The Independent londrino. Sigamos para o
Mali:
A intervenção ocidental liderada pela França, apoiada
pela Grã-Bretanha e com possíveis ataques dos norte-americanos, sem dúvida,
estimula a narrativa promovida pelos grupos radicais islâmicos. [...] A ação no
Mali vai ser retratada como "mais um exemplo de um ataque contra o Islã".
Com o alcance rápido e moderno da comunicação, grupos radicais na África
Ocidental usarão esta escalada de guerra como prova de outra frente aberta
contra os muçulmanos. [...] Mas as consequências podem ser mais profundas. Além
de espalhar caos pela região, a França já mapeou seus alvos que podem ser
atingidos por terroristas, e o mesmo podem acontecer com seus aliados. É uma
responsabilidade de todos nós questionar o que nossos governos estão fazendo em
nossos nomes. Se não aprendermos com o que ocorreu no Iraque, Afeganistão e
Líbia, então não haverá esperança (Owen Jones, “No Mali, não há uma guerra do
bem contra o mal”, The Independent,
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21514&boletim_id=1504&componente_id=25569
Portanto, a França não deveria intervir
porque agir militarmente contra os islamitas não os enfraquece, os fortalece. Logo,
o que os enfraqueceria seria sua vitória no Mali, e a tomada do poder num
grande Estado da África Ocidental... Além de mais esse raciocínio brilhante, novamente
há a “preocupação” com a França, neste caso, de se tornar alvo de ataques
terroristas. Mas, novamente, não é o que parece. Mesmo porque, tais
comentaristas são incapazes de especular sobre o que aconteceria se acaso os
islamitas tomassem o poder no Mali. De um lado, isto denota desonestidade
intelectual. De outro, subentende que, para eles, não seria preocupante. E por
que o seria? Os islamitas não são, afinal, também irracionalmente
antiocidentais?
Para o jornalista suíço Gilles Labarthe, fundador da
agência de notícia Datas, as intenções da França passam longe de termos como
“guerra ao terror” e “ajuda humanitária”. Especialista em colonialismo francês
e autor de livros como "L'or africain. Pillages, trafics & commerce
international" (em tradução livre "O ouro africano: pilhagens,
tráfico e comércio internacional"; editora Agone, 2007), ele afirma, em
entrevista ao site espanhol Publico.es,
que parece “claro que a França e o resto dos países implicados no Mali estão se
movendo pelo interesse de assegurarem os recursos minerais da região, como já
ocorreu há dois anos na Líbia”. O jornalista admite que “é mais difícil
identificar que o lobby industrial está por trás de tudo”, mas ele aponta que
importantes companhias extrativistas como a Aréva possuem o direito de explorar
o urânio no Níger e estão a apenas 200 quilômetros da fronteira com o Mali. A
empresa fechou 2012 com um crescimento de 4% a 6% no faturamento, e há
perspectiva de crescimento em 2013. A França tem a energia nuclear como
principal fonte de sua matriz energética, e seu governo é proprietário de
14,33% da companhia (João Novaes, “Riquezas minerais, além do combate ao
terror, explicam intervenção francesa no Mali”, http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/26665/riquezas+minerais+alem+do+combate+ao+terror+explicam+intervencao+francesa+no+mali.shtml
Voltando, portanto, à “esperteza” econômica
da esquerda, deve-se questionar a “honestidade” da ação francesa no Mali porque
a França tem interesses energéticos no
Níger... Logo, a França respondeu ao pedido de ajuda do governo malinês
porque as forças islamitas, se tomarem o Mali, podem ameaçar o Níger. Em
primeiro lugar, seria mais fácil, barato e seguro para a França proteger
militarmente suas jazidas no próprio Níger do que lutar no Mali inteiro para
isso. Em segundo lugar, se o sucesso dos islamitas no Mali é uma ameaça ao
vizinho Níger, como reconhece então esse comentarista, isto demonstra que os
islamitas malineses são, de fato, uma ameaça à estabilidade da África
Ocidental, uma das importantes razões alegadas pela França para intervir no
Mali. Não importa. Os comentaristas de esquerda são “espertos” demais para não se
deixarem enganar por si mesmos... Mas, apesar de tudo, no caso da combalida
borboleta malinesa, este comentarista afinal “admite que é mais difícil
identificar que o lobby industrial está por trás de tudo”, enquanto o título da
matéria fala em “riquezas minerais além
do combate ao terror” para “explicar a intervenção francesa”. Então, mesmo
para alguns dos mais petrificados comentaristas de esquerda, parece estar se
tornando difícil identificar o “lobby industrial por trás de tudo”, e,
portanto, negar a verdadeira ameaça à paz mundial que os grupos armados
islâmicos representam.
Em termos minimamente lúcidos, o fato é que o
anêmico primeir0-ministro socialista François Hollande não tinha interesse ou
vontade de empreender nenhuma nova “aventura colonial” na África, principalmente
no contexto dos graves problemas sociais e econômicos da crise europeia. Prova
disso é ter sido deixado sozinho por seus sócios europeus. Ou seja, os demais
países da UE não aproveitaram a “deixa” para também se atirar sobre as
“riquezas minerais” escondidas sob as frágeis asas da borboleta malinesa. Seu
raciocínio não deixa de ser, por isso, perfeitamente cínico e oportunista: se a
França já está fazendo o serviço tão necessário quanto caro, sujo e arriscado,
por que eu também iria me meter? O mínimo que se pode dizer é: “Vive la France!”. E que também viva, ou
sobreviva, a frágil borboleta malinesa.
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