Uma vez mais Alberto Gonçalves, no DN:
Questionada
por um canal televisivo, uma das organizadoras do movimento "Que se Lixe a
Troika" explicou que um Governo que não cumpre o programa eleitoral deve
ser demitido, pressuposto que tornaria inúteis quaisquer governos e,
consequentemente, quaisquer eleições. Aliás, suspeito que o objectivo não anda
longe disso: quando a seguir lhe perguntaram se defendia a marcação de
"legislativas" antecipadas, a senhora hesitou e, um bocadinho
contrariada, lá acabou por responder que "essa é uma das formas",
ainda que o importante seja atender à "vontade do povo". A senhora
esqueceu-se de descrever como é que a "vontade do povo" se expressa
na ausência de sufrágio universal, embora não custe imaginar que a coisa
passaria por um sumário processo "directo" que depositasse a senhora
e os heróis/amigos/primos da senhora no poder e merecidamente desprezasse os
escassos milhões de reaccionários que teimam em votar no PSD e no PS.
Não pretendo insinuar que os milhares de participantes nas
manifestações de ontem partilham esta curiosa interpretação da democracia.
Sucede que, ao participarem na folia, acabam por legitimar as alucinações dos
respectivos mentores. E as alucinações são diversas.
Uma das mais bizarras está explícita na designação daquilo.
Mandar lixar a troika é um gesto nobre. Infelizmente, é também um gesto
estúpido, sobretudo quando não se parece estar preparado para suportar as
consequências da exclusão dos famosos mercados, talvez do euro e, um épico dia,
da União Europeia. Para já, enxotar a troika equivale a abdicar dos empréstimos
que mantêm isto a funcionar e, apesar dos apertos, conferem ao País um
simulacro de normalidade. Os manifestantes do "2 de Março" (a profusão
de datas "históricas" tende a preencher o calendário inteiro) não
pensam assim.
Na verdade, dificilmente se pode dizer que pensem de todo. O
"raciocínio", desculpem o exagero, é o seguinte: na ausência da
troika, a austeridade termina e Portugal, na prática sem dinheiro para mandar
cantar Stevie Wonder, fica teoricamente abonado e, enquanto diminui os
impostos, volta a apostar no "investimento público", na
"modernidade" e no "progresso social". Dito de outra
maneira, recuse-se o crédito, diminua-se a receita e aumente-se a despesa, tese
que para um leigo faz tanto sentido quanto doar uma prótese dentária a um
cadáver decapitado, mas que para os especialistas em economia que desfilam pela
ruas constitui a solução evidente. Meus caros, contas assim são compreensíveis
no cerebelo do sr. Arménio da CGTP, nos peculiares empresários da CIP e nas
medidas regeneradoras do dr. Seguro, não em cidadãos que se querem
responsáveis.
Ou se calhar não querem. Se quisessem, antes da troika
teriam mandado lixar os sujeitos que tornaram a troika inevitável. Se
quisessem, antes da austeridade marchariam contra o Estado cuja preservação
obriga à austeridade. Se quisessem, antes de berrar lugares--comuns,
reflectiriam no absurdo dos mesmos. O Governo é péssimo? Com certeza, porque
assalta os cidadãos a fim de garantir o statu quo de que os cidadãos, pelo
menos os que desfilam em protesto, não abdicam. Que, com os seus defeitos,
interesses e ilusões, a troika insista em patrocinar semelhante manicómio não é
um cataclismo: é um milagre. E, a prazo, provavelmente uma inutilidade.
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