(Dedico este bloco a Giorgio Tsoukalos, Erich von Daniken,
Linda Howe e reverendo Michael Carter)
POEMA
1. A antiga
casa não lhe mexam. Não procurem
desfazer-lhe os sinais que as sombras
lhe
deixaram. Os canteiros
que
fiquem com pedaços de cacos, velhas
rugas
sob os alicerces. Plantas
que o
silêncio gerou anos e anos
às
telhas se misturem.
Os
dedos, não lhos marquem
com
óleos, tintas, cores
em toda
a frontaria e nas traseiras
E as
nódoas de musgo, a cansada ferrugem, as
flores
quase desfeitas
abandonem-lhas. Não lhe pintem
também
a luz
que o
tempo debaixo do cimento faz ficar
- o
sol, o vento, a chuva -
mágoas e alegrias dum século
mais
que incolor e vago.
Absorto e parado
que
tudo sempre idêntico
sepultado nas crostas sem limites
fique como os minutos da
terra, assim desfeitos.
A
brisa, como em sons
de
vida e morte
nas
janelas abertas passe
-
lamento reflectindo a memória
lenta
das vozes.
Que
as asas lhe resguardem a quietude. Que o sol
a
vele e adormeça sua paz final. Que o Outono
lhe
acalente a ausência: porque já nada pode
agora
transtornar
a
velha moradia
- os
campos, em redor, são o disfarce
de
milhares de coisa já perdidas -
aranha minúscula subindo
os
tempos invisíveis
laços para sempre desmanchados, porta
que
se entreabre e une finito e infinito.
2. Não nos falta o sentido
que
entre inúmeras casas se tresmalha
um
Agosto ou um Fevereiro supostamente
fugaz
quando o cansaço cinge o Mundo
e
encerra
em si
mesmo
o
feroz nome que os outros meses têm.
A
guarida final
conserva o vestígio das mãos
e das
figuras
que
as casas erguem ponto a ponto.
3. A rua é mais a Sul
e tem por dentro
recordações
- velhos lugares que um
sopro desvelou -
o mar, pessoas, pedras
acumulação de signos e
raízes
que de mineral têm
apenas a ausência. No ar
se firmam
num quarto ou numa sala
como recantos cedo
destroçado
algures e em qualquer
latitude e longitude
como outrora entre a turba
alguém a quem amámos.
As
ondas na manhã
nenhum som ou sinal
erguem em nós
na
terra que começa
-
amora opalescente
até
ao horizonte
entre
pedras e folhas entre
meridianos cruzados -
e a
promessa que os troncos
anunciam
desfaz-se
(um
bosque bem real
mas
que desaparece
como
em “flashes” sucessivos)
como,
no Inverno, uma ave que passa
como
uma notícia num jornal antigo.
O dia
vai partir, parte
finalmente. O negrume parece
um negrume disforme ( e é
apenas
uma
penumbra excessiva
como
um soluço, como
o velho choro que os Pais
sempre
conhecem). As sombras, na manhã
- nessa
manhã que a memória nos oferta
para
que mais soframos, ou então
para
que o riso frio se apresente -
renovam-se e repousam
sobre
os muros desgastados. (No Café
que
havia a uma esquina
alguém crava num tabique
um
prego onde alguém pendurará
o
retrato de alguém ou calendário
de
dias que alguém terá).
A
noite, ir-te-ás tu? Provavelmente sonhas
com
as chamas que sobre os rostos ruflam
diurnas crispações
de
claridade ou de recordação
e ao
longe
como
fotografia
que
a um canto sobreviveu
o
mar faz pressentir
a
mágoa que docemente aflora
os
nossos dedos queimados.
4. Assim, que ninguém trema. Digo
entredentes e apalpo
os papéis onde luzes, corpos que
zumbem, um comboio
cobram existência. Um moscardo, mais leve
que a sua própria efígie
recomeça, na noite, o seu branco
ondear. O suor
mancha os lençóis, a camisa
que usávamos a esmo e que tão
bem
acompanhou visões e pensamentos. A cal
é como um
desejo aberto, os muros
prolongam o silêncio, como um dorso numa cama
apaziguado. Como um corpo entre duas
cidades, aguardando em silêncio
o
tempo que não veio, o tempo
entre ruas esperando para sempre.
Génesis, cartão para tapeçaria
CARTA DE SAMYAZA RAFACALE
AO SEU AMIGO AZAZELO EYQUEM DE REICHNAU, DUAS SEMANAS APÓS TEREM POUSADO NO
PLANETA NÚMERO TRÊS A QUE CHAMARAM EUROBOROS E ANTES DA MUDANÇA DE ESTAÇÕES A
QUE DEPOIS SE IRIA CHAMAR INVERNO/PRIMAVERA
Caríssimo:
Não é preciso dizer-te que isto a princípio foi
monótono: amarração, desprendimento, notação de azimutes, um pouco da Teoria
dos Contínuos, muita indecisão entre ficarmos mesmo na ilha ou irmos até ao
continente que se divisava, horas altas, para além das montanhas com as suas
cúpulas de neves eternas que pareciam sair da neblina que a certas alturas do
dia cobria o mar.
O comandante Theos Gallipoli (tu sabes, o tal que
depois foi nomeado pelo Conselho logo a seguir ao conflitozinho com os de
Inergaum o que se calhar até foi por cunhas mas não vamos agora por aí) deu
ordem para que a princípio ninguém saísse, o que constituiu uma estucha que tu
nem calculas. No entanto, a breve trecho teve de se deixar de coisas, até
porque depois de tanto tempo de navegação a malta estava realmente atormentada.
Um dia vi materializar-se, mesmo na minha frente, a figura de meu tio Asmodeu,
como sempre com um copo de boa pinga na dextra enquanto recitava pausadamente a
partir dum velho manuscrito que balançava na sinistra: “A vós, os embusteiros, que o infinito passou a provérbio / direi apenas
que havereis de ver / num canto do jardim e às escondidas / uma simples cadeira
/ um artefacto / para as mais formosas, aquelas / que melhor irão dançar. Nos
anos a vir / vos serão revelados /os certos e justos condimentos sobre as
mesas: / só sangue numas / só terra noutras mais / E por isso havereis de as
mãos passar/ sobre as colchas das alheias camas / em quartos serenos e alegres.
Havereis de saber / que a vossa imagem está por detrás / só de branco ou de
negro vestida / Como vosso pai venerável / num outono ou num verão /sem
intervalos nem sonhos.”. Pareceram-me palavras proféticas, mas não o vou
jurar. Em todo o caso posso garantir que não se tratou dum holograma nem mesmo
duma projecção mental daquelas que o velho Mummu Tiamat, disfarçado de deus do
Caos, nos propiciou para nos chatear aquando da nossa viagem a Bifrons, quando
eu ainda era tenente e tu um oficial geómetra. (Belos momentos ali passámos,
lembras-te meu colhudo, cala-te já!). Jamais te mostrarei, asseguro-te, a
fealdade do mal, falam-me em que há por aqui uns cabelos negros um pouco
encaracolados e é verdade, uns olhos assim deste tamanho, ai ai, dizendo com o
espírito que encontramos nos melhores momentos, em resumo traduzo-te sem querer
ter graça e é garantido: o Samael está a perder as penas da asa direita, mas
adiante. Ia eu dizendo que as Obras do Tempo nos fizeram passar de um plano a
outro, então eu fui ter com o comandante e resolvêmos que iria eu e vinte e
seis outros, a princípio, apalpar o ambiente. Tudo gente de gabarito, estupenda
tripulação, o Lucy à última da hora também se propôs ir connosco eu tinha
entrado no vaivém e lá foi ele num ápice a buscar o escafandro e o capacete de
esmeralda, afinal não iria fazer falta a aragem engole-se que é um regalo. Era
já noite entrada quando aterrámos. Uma lua de intensos raios iluminava tudo.
Ouviam-se risos para noroeste. Um som de flauta, um zumbido intraduzível que te
posso apenas sugerir, falta-me jeito para profeta de certos mesteres triviais,
mas crê que era tudo uma nova volúpia. No écran da esquerda nada se via. O da
direita ficara iluminado a valer. Como sabes sempre enjoei um bocado a altas
velocidades, mas o que se divisava era duma beleza inigualável: jornadas de
trinta mil quilómetros, upa, sou capaz de me aguentar daqui até lá sem beber
água, quando deixámos de pairar sobre as vagas as flores vieram todas, como
doidas, pousar-nos nos cabelos e de repente achei-me sem ar, sem negrume, sem
apetite, rodava como uma bola de vidro, entrava na velhice, coçava-me sem dar
por isso e de repente tudo acabou. Tínhamos chegado.
Eram tendas, tendas e cabanas de tijolo. Perto, um
ribeiro repleto de canaviais, salsa e hortelã, outras ervas banais e benignas,
ovelhas e cabras, um ou outro cavalo, meia dúzia de burros. E seres a que
depois chamámos homens.
De modo que cá estamos vai já para três semanas e,
crê no que te digo, ainda nem sequer apresentei relatório. Como, bebo, até me
parece que engordei um bocado. Das sete às nove leio sobre a teoria das coisas
plásticas. Eles acreditam em feitiçarias, banham-se de manhã nas águas mais
profundas, uma das morenas até me vai ensinar a pescar. Pelo meu lado,
ensino-lhe a ciência dos cosméticos. É taful, mexe-se que é um regalo e gosta
de me ouvir contar-lhe balelas. O pai é cameleiro e nunca viu mais mundo que o
que termina no horizonte. O seu antepassado, um tal Enkidu, ensinou-lhe a fazer
vinho e a tecer a lã, eu já lhe dei umas noções de ourivesaria e creio que dará
um bom ferreiro. Vamos a ver.
O Beemoth vi-o ontem: ia de braço dado com uma
garina esbelta mas de boa peida, olhos rinchões, tás a ver. Veremos o que isto
dá. Logo comunico com o lar pelas ondas alfa, dá certo conforto ver o pontinho
de luz lá no alto, mesmo sendo um sacripanta o comandante irá gostar disto
aqui, insisti com ele para que descesse. Há por estes sítios gente com
interesse, têm muitas virtualidades fora a inocência, não sei ainda se daqui a
uma semana iremos passar para as terras do lado de lá do deserto.
Há bocado ofereceram-me um assado de pavão real.
Acompanhei-o com um moscatel que não te digo nada. Sinto-me cheio de genica, o
Iblis vai retransmitir isto em diferido.
Abraça-te sem sofrimento, mesmo levando em conta a
ausência, o teu velho
Samyaza, o língua ágil
Criação do Homem, cartão para tapeçaria
UMA TARDE COM OS MARX BROTHERS
O transferidor, dizia, vai de mão a mão
com inúmeras recordações dentro: cadernos
listas de gente com telefone, pequenas
e inúteis resmas de algarismos
transformados. Suponhamos que sobre uma face
apoiamos um dedo, a ponta
dum dedo indicador: a imagem cresce
e ocupa o nosso horizonte, depois
tudo cessa. Nem figura nem número
nem ruídos repentinos e fotografias finais.
Onde estão as lembranças
dizia o outro, quais
as definitivas lembranças minhas
tuas, do que primeiro ocupou
este compartimento? Risca-se
da terra do norte à terra do noroeste
- um borrão, contudo, chama-nos à
realidade solene, de quem
acumula degradações. Recordo, de Giotto
a crucificação entre edifícios não de
todo naturais: é sempre
possível comparar, amar inteiramente
o vazio. Bandeiras
véus fugidios, tudo enfim
como se de dentro a estrutura saísse
e fosse nuvem, fosse transparência
interminável, deslocando-se incerta
multiplicada. Um bolo
e uma sandes de queijo, um livro
sujo e perdido
- prováveis como alguém que telefona
que conhece se vai ou não vai chover
que sabe usar o sim e o não
fora e dentro das manhãs. A régua
o compasso, o lápis
que carece de ser afeiçoado
- a realidade dos minutos insuspeitos.
Mas - como alguém disse um dia -
os lábios vão sangrando
imersos em negrume
sob as árvores do parque. A mão, contudo
enrosca-se
num lenço ensanguentado ou num
papel sem linhas.
Algures entre
corredores
entre pontos e traços, entre
sinais perpetuamente aparecidos e desaparecidos
os risos soltam-se
ressoam, ressaltam
e desfazem-se em ecos desenhados.
(fotos e ilustrações minhas)
1 comentário:
Por debaixo de água, digamos, percebe-se a intenção. Numa poesia significatica, pós-genésica. Já agora, sugiro aos colegas comentadores que vejam, no Canal História,o programa de Giorgio A.Tsoukalos "Ancient Aliens". Não perderão o vosso tempo, garanto.
Licínio
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