sábado, 28 de junho de 2014

CHAMAS DESPORTIVAS… NUM TEMPO SOB MEDIDA




   Este pequeno mas esclarecedor e creio que oportuno texto de Radovan Ivsic foi dado a lume pela primeira vez no catálogo da exposição internacional “L'ECART ABSOLU" (1965) e, depois, republicado no volume de ensaios do autor intitulado “CASCADES” (Editora Gallimard 2006).

    Agradecimentos são devidos a Laurens Vancrevel por mo ter enviado, bem como a Joaquim Simões que pulcramente o traduziu.


 “Estou firmemente convicto de que o desporto é o melhor meio de produzir uma geração de cretinos perniciosos”, escrevia Léon Bloy, sem suspeitar de que estas palavras proféticas poderiam em breve ser aplicadas a numerosas gerações de todos os continentes. Sob a máscara do jogo, de que é a caricatura senão mesmo a negação, ou, melhor ainda, do apolitismo e desta forma falaciosa do internacionalismo acerca do qual já Charles Maurras dizia: «esse internacionalismo não eliminará as pátrias, antes as fortificará», o desporto alastra desde há um século como uma elefantíase imunda. Nele não poupam os dirigentes de todos os países, não somente por o considerarem um complemento do serviço militar mas porque – denuncia-o também Benjamin Péret – enquanto «meio de embrutecimento» leva seguramente a palma aos demais. O célebre treinador americano Knut Rockne não imaginava até que ponto era certeiro quando afirmava: «Logo a seguir à Igreja, a melhor coisa é o futebol». Mais explícito ainda, o barão Pierre de Coubertin, promotor dos Jogos Olímpicos modernos, esclarece: «A primeira característica essencial do antigo olimpismo bem como do olimpismo moderno é o de ser uma religião. Ao cinzelar o corpo pelo exercício à semelhança do escultor modelando a sua estátua, o atleta antigo “honrava os deuses”. Copiando-o, o atleta dos nossos dias exalta a pátria, a raça, a bandeira». Esta passagem torna-se tanto mais significativa quanto é extraída de um prefácio à escandalosa olimpíada de 1936, inaugurada em Berlim por Hitler, onde o barão desportivo, promotor da «arte de criar o puro-sangue humano», saudará «um dos maiores espíritos construtores do nosso tempo», que «serviu magnificamente, sem o desfigurar, o ideal olímpico».

Os ensurdecedores espectáculos dos ringues e dos estádios retratam a organização da vida contemporânea, baseada na rivalidade e na concorrência, numa palavra, na competição, cujos efeitos não poderiam ser mais prejudiciais ao associativismo de Fourier. O campeão torna-se, em geral, graças a ela, num profissional, num trabalhador modelo que, à força de abstinência, paciência e suor, conquista o seu lugar ao sol poeirento das grandes provas. Far-se-á dele um homem-sanduíche à escala da grande imprensa e da televisão ou, melhor ainda, uma vedeta nacional, desde que, note-se, a sua vida em família seja exemplar. Quer para o adepto activo quer para o infame passivo, a suposta cultura física é habilmente erguida numa barragem aos excessos da vitalidade libertadora do indivíduo, que tenta escapar às garras do progresso técnico sem derramamento de sangue ou aos danos de uma educação esclerosada. De origem escolar, o desporto transforma-se numa dura escola onde, sob a orientação do instrutor técnico, se aprende «a paixão da docilidade». O estádio é a porta grande que leva ao mundo dos robots.

No centro desta exposição, a máquina de lavar todos os jornais, de L’Aurore ao L’Humanité, e do New York Herald Tribune ao Quotidiano do Povo, de Pequim, terá de branquear, entre outras, uma profusão de omnipresentes páginas desportivas. Tanto pior para algumas raras e, por vezes, magníficas fotos de bólides em chamas invadindo arquibancadas a transbordar, antes de explodirem: tal flash solene é a única luz apropriada a estes locais sinistros. 

Radovan Ivsic



segunda-feira, 23 de junho de 2014

Sobre a pátria do cão de Obama...





... mais três crónicas de Alberto Gonçalves:



O pensamento mágico

Após o heróico 0-4 com a Alemanha, as televisões foram naturalmente à cata de transeuntes frustrados. Encontraram imensos, cada um com a sua justificação para a derrota. Algures em Lisboa, à porta de um daqueles antros que congregavam os militantes do falecido BE, uma rapariga com ar de militante do falecido BE explicava que o pior nem era a goleada: era a goleada perante os alemães e, evidentemente, a sra. Merkel.

Apesar do profundo e até certo ponto indescritível absurdo da opinião, esta esteve longe de ser isolada e circunscrita ao Bairro Alto. Contaram-me que, na Sport TV, o ex-futebolista Carlos Manuel, com um sorriso onde em tempos medrava farto bigode, dissertava antes do jogo sobre a necessidade de vencer a chanceler alemã. O também funcionário da casa Pedro Henriques, que não conheço de lado nenhum e que é o único comentador televisivo que, no futebol e no resto, escapa ao ridículo, informou o sr. Manuel que a sra. Merkel trata de defender os interesses dos seus eleitores, e que teria sido preferível os nossos governantes destes 40 anos procederem de forma idêntica em vez de alimentar bodes expiatórios para a inépcia e a trafulhice.

Do que o País precisava era de um Pedro Henriques em cada esquina. Infelizmente, tal não se vislumbra possível, pelo que convém aceitar a realidade: muitos portugueses não aceitam a realidade. O tipo de cerebelo que julgava vingar as frustrações pátrias num jogo da bola é o mesmo que atribui a terceiros a responsabilidade pelos erros próprios. Por improvável que pareça, havia gente que ansiava por ver no relvado uma compensação face à "arrogância" da sra. Merkel. Sem surpresas, é a mesma gente que decidiu unilateralmente a obrigação da sra. Merkel em patrocinar-nos sem condições. Trata-se, sem tirar nem pôr, daquilo que os antropólogos designam por "pensamento mágico".

O pensamento mágico estabelece nexos de causalidade entre acções ou eventos independentes entre si. Imaginar que a queima de uma madeixa de cabelos implica que o seu antigo proprietário irrompa em chamas é igual a imaginar que um remate certeiro de Cristiano Ronaldo afectaria a economia alemã. Ou a imaginar que a prosperidade da economia alemã é que maldosamente impede o Estado indígena de gastar tudo o que gostaria. Estamos no reino, ou na república, do puro vudu, típico em sociedades primitivas e, pelos vistos, na portuguesa.

A má notícia é que o pensamento mágico é obviamente irrelevante para o mundo exterior. A boa notícia é que pode ser exercido com absoluta liberdade. Se o confronto em Salvador da Bahia não correu bem, nada impede a menina do BE de humilhar a Alemanha numa partida de poker com o Franz do InterRail, ou o ex-futebolista Carlos Manuel de exibir mestria nos dardos contra um retrato do ministro Schauble. Claro que o ideal seria um país capaz de escolher a racionalidade e lidar com as coisas como elas são. Mas isso já entra no domínio do sonho, e convém deixar o pensamento mágico aos especialistas.


O sexo e a idade

Uma Sociedade Portuguesa de Psicologia da Saúde realizou um estudo sobre a implementação da educação sexual nas escolas. Os resultados são dúbios. Por um lado, de acordo com o Jornal de Notícias, "os alunos do ensino secundário gostariam ainda de estar mais envolvidos nas atividades relativas à educação sexual nas escolas, manifestando disponibilidade para serem "mentores, em atividades informativas e formativas com colegas mais novos"". Por outro lado, os alunos em geral sentem-se desmotivados - sempre uma maçada nestas questões - e "criticaram a forma "idêntica e sem progressão" de apresentação" dos assuntos. Vamos por partes.

Desde logo, é bom sinal que os petizes mais crescidos pretendam ser "mentores" (um óbvio eufemismo) dos mais pequenitos no que toca ao sexo. Sempre indicia que a existência dos adolescentes contemporâneos não se esgota na PlayStation e no Facebook conforme se chegou a temer. Pelo menos alguns percebem que, em matéria de possibilidades reais, a Patrícia do 8.º G é preferível a Lara Croft.

Em contrapartida, talvez não se aconselhe ouvir as recomendações de crianças a propósito das disciplinas a sério. No caso da Educação Sexual, que não serve para nada, excepto para preencher horários e convencer pedagogos da sua própria modernidade, o problema não se põe. Mas imagine-se que se passa a ouvir os meninos e as meninas acerca dos conteúdos e dos processos de ensino em Matemática, Física e coisas assim: na perspectiva optimista, arrasa-se num ápice com o que resta da exigência educativa. Na perspectiva pessimista, essa exigência faleceu há muito, pelo que ouvir crianças, pais, tios, sindicatos, professores, tutelas ou os órgãos sociais da Associação Recreativa de Massarelos não faz diferença nenhuma.


A terceira via em "collants"

Ainda haverá alguém com vontade de rir das pantominices de "Tozé" Seguro? Bastou espevitar as ambições do dr. Costa para o ainda secretário-geral parecer, por comparação, um paradigma de sensatez. No início da sua caminhada triunfal rumo ao poder, o dr. Costa, que, segundo artigo biográfico no Público, praticou ballet com os "filhos de operários e de prostitutas", começou por adoptar o exacto vazio retórico do seu concorrente. A estratégia motivou, entre a escassa opinião publicada que não venera o antigo bailarino, acusações diversas, ou sobretudo a acusação de que, salvo pela tez de um e as sobrancelhas do outro, era impossível distinguir o dr. Costa do dr. Seguro.

Alarmado, o ex-colega dos filhos de operários e de prostitutas convocou o staff a fim de adoptar novo plano: se a emissão de vacuidades comuns não funcionava, havia que passar a emitir vacuidades absolutamente tresloucadas de modo a elevar-se acima da concorrência - ou, na pior das hipóteses, abaixo.

O primeiro fruto desta visão revisionista surgiu sob a forma de uma pérola de economia alternativa. De acordo com o dr. Costa, o primeiro-ministro "ou aumenta os impostos para aumentar a receita ou faz corte dos salários para baixar a despesa. Ora, nós não podemos viver neste quadro de opções tão limitado e temos que dizer ao primeiro-ministro que percebemos que ele não sabe sair dessa receita". Por felicidade, "há uma outra receita", "uma terceira via" que Passos Coelho "não sabe, nem quer aprender", mas há que "lhe ensinar": "aumentar a riqueza".

Repito, para que não restem dúvidas: num demi plié arrebatador, o dr. Costa propõe aumentar a riqueza. E é isto que distingue os eleitos. Enquanto a comum cavalgadura se debate com um cobertor que ora cobre a cabeça ora cobre os pés, os que desenvolveram o génio junto da descendência de proletários e marginais arranjam um cobertor maior. Desde a Maria Antonieta da lenda e dos brioches que não se via rasgo assim: para não sermos pelintras basta que sejamos milionários, evidência cujas aplicações são ilimitadas. O cidadão hesita entre a bicicleta e os transportes públicos? É melhor comprar um Mercedes. Férias em Tenerife ou no Algarve? Quinze dias no Sandpiper em Barbados. T0 em Campo de Ourique ou T2 no Cacém? T4 tangencial a Washington Square.

A continuar neste ritmo, o dr. Costa já não irá a tempo de ensinar a terceira via ao pobre dr. Passos Coelho. Mas arrisca-se a conquistar a chefia do PS, a liderança do Governo, um ou dois Nobel e um lugar de solista no Bolshoi.

domingo, 15 de junho de 2014

Modelo de Acta de Conselho de Turma (recebido por e-mail)




Só quem não está por dentro das situações poderá pensar que isto haja sido escrito como quem escreve uma piada:

“Relativamente ao aproveitamento, o Conselho de Turma caracterizou-o como hilariante, uma vez que os níveis atribuídos pouco têm a ver com o desempenho dos alunos, mas sim com outros fatores, nomeadamente: o desejo de nunca mais os ver na sala de aula, o que se conseguirá se transitarem todos para o ciclo seguinte; a necessidade de cumprir as anedóticas metas de sucesso, de forma a evitar o paleio justificativo no relatório de avaliação de desempenho e demais documentação; a vontade de evitar recursos por três ou quatro encarregados de educação, previamente referenciados pelo conselho de turma como "carraças parentais obcecadas com a entrada dos descendentes para o curso de medicina" [soou uma gargalhada geral].------------

Os docentes de Expressões acrescentaram que também não têm vontadinha nenhuma de aturar os comentários infelizes de vários quadrantes sobre a importância das suas áreas curriculares, pelo que o nível mínimo que atribuíram foi quatro, este para penalizar o Zezinho por nunca ter levado sapatilhas para Educação Física, nem papel e lápis para Educação Visual.-----------------------------------------------------------------------------

A docente de Inglês esclareceu que mais de metade da turma não distingue ainda “yes” de “no”, mas que lhe é impossível chumbar toda essa gente, com medo do que poderá acontecer [nesse momento, fez-se silêncio temeroso].---------------------------------------------------------------

As docentes de Matemática e de Português desataram em prantos, lembrando-se da discrepância que certamente existirá entre avaliação interna e notas dos exames nacionais, impedindo-as de se manterem camufladas na “bondade avaliativa” como os demais [soaram exclamações de compreensão e comiseração]. A docente de Matemática classificou ainda de “melgas inúteis” os pais e demais parentes que acompanham vários alunos na realização dos TPC e que os instruem no sentido de pôr em causa tudo o que acontece nas suas aulas, embora a maioria nem o nono ano tenha concluído [interjeições de concordância], ao passo que a docente de Português desabafou que às vezes tem ganas de imitar Espanca, só para não ter que voltar a ler a rambóia de disparates e facadas na bela Língua Lusitana. Nessa altura, a professora de Educação Visual contou que fora interpelada na rua pela mãe da Tikinha, que lhe explicara que a desconcentração da criança se devia à sua tendência artística e sonhadora [mais galhofa]. -------------------------------------------------
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Os docentes de Ciências Naturais e de Ciências Físico Químicas explicaram ao conselho que, no âmbito da interdisciplinaridade, tinham decidido uniformizar os critérios de avaliação, a saber: nível três para quem tivesse pulsação, nível quatro para quem também respirasse sozinho e nível cinco para quem emitisse cumulativamente sons [olhares de admiração]. -------------------------------------------------------------------------------

As docentes de História e Geografia declararam que não abdicavam dos seus princípios, pelo que tinham atribuído nível dois a um aluno que nunca compareceu [silêncio constrangedor]. O diretor de turma sugeriu que se alterasse para “dois mais”, o que mereceu concordância de todos, quanto mais não fosse para não terem que aturar os chiliques pedagógicos do Gabinete de Psicologia. ------------------------------------- (...)”


Os sapos cozem-se, vivos, devagar

O que os marxistas fazem hoje (BE, PCP, o escarro Os Verdes e o PS-BE) por onde podem e um pouco por todo o lado, especialmente nas democracias onde a todos convencem estar a dita bem sedimentada:

Numa primeira fase encrencam o regime ao ponto de conseguirem condicionar pelo menos uma legislatura. Com a colaboração de militantes (da ideologia, não necessariamente do partido) especialmente bem colocados (no TC, por exemplo), limitam a acção do governo para, "provarem" que não há alternativa.:

A seu tempo apresentam-se como salvadores da pátria.:

Entretanto, outras lutas internas, entre marxistas, limpam o caminho aos mais fascistas e, logo que possível, soltam a máscara de fascistas e revelam a de comunistas. Deixam de ser movimentos que toleram a iniciativa e propriedade privadas (fascistas), muito embora tudo façam para mandar em tudo quanto é privado (regulamentação e impostos), para se transmutarem em movimentos que 'prescindem' da propriedade privada transferindo, a decisão sobre a posse dessa propriedade para komités religiosamente mantidos pelo partido hegemónico que sobreviver à refrega.:

Ponham os olhos no Brasil e está lá tudo.

Leiam o que escreve Olavo de Carvalho e aprendam. Ou aprendem ou perderão por falta de comparência. Aquela gente, pestilenta, trabalha a longo prazo. É devagar que se cozem sapos vivos.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Do país da rataria...




... escrevia assim Alberto Gonçalves no passado domingo, no DN:


Um país à escala do Rato

Uma história engraçada a correr por aí é a do medo que António Costa suscita na direita. Em primeiro lugar, não sei o que se entende por "direita", se os partidos no Governo ou se as pessoas que não apreciam um Estado intrometido e salteador (ambas as instâncias parecem-me algo incompatíveis). Em segundo lugar, garantiram-me que uma sondagem "interna" coloca o portentoso "carisma" do Dr. Costa um ou dois pontos percentuais acima do pobre rival nos gostos do eleitorado em geral. Por conveniência, admitamos que PSD e CDS andam assustadíssimos e que as facções empenhadas em enxotar o Dr. Seguro têm razão.

Ainda assim, não é esse o ponto. O ponto é a tese que resume os apetites dos insurgentes no PS: trocar o líder A pelo líder B é vital na medida em que A não é capaz de devolver os socialistas ao poder (ou o poder ao partido) e B talvez o faça. Pelo menos a franqueza é louvável. Claro que todos os partidos actuam em benefício daquilo que os coloca próximos do mando, mas costumam disfarçar a cobiça sob o simulacro de um debate interno e vagamente ideológico. O PS do Dr. Costa, ou que se serve do Dr. Costa, não disfarça. Ali não existe a menor intenção de distinguir o pensamento do autarca lisboeta do pensamento do secretário-geral, tarefa de resto impossível na medida em que nunca qualquer deles revelou possuir semelhante excentricidade. B é preferível a A porque sim.


Marx, o bom e velho Groucho, esclarecia: estas são as minhas convicções; se não gostarem, arranjo outras. No PS não há convicções nenhumas, excepto a certeza de que se está mais confortável a decidir orçamentos do que a votar contra eles, a satisfazer clientelas do que a pedir-lhes paciência, a afundar a economia do que a acusar Pedro Passos Coelho do mesmo. Não ocorre aos socialistas que à margem das intrigas há alguns milhões de cidadãos, certamente cansados de austeridade e provavelmente abismados com o brutal egoísmo dos que lhe prometem o fim da austeridade. Em suma, discute-se o melhor para o PS como se se discutisse o melhor para o País. Por acaso, e por norma, costuma funcionar ao contrário. Nesse sentido, e só nesse, o Dr. Costa mete medo.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Azulejos para Madagáscar


Jules Morot


 Com a delicadeza típica dos grandes espíritos, das pessoas de razão e coração que temos por vezes a sorte de ter por amigos, dias atrás recebi uma carta do Jules Morot - há dois anos a leccionar em Madagáscar - na qual o excelente autor de "Récits du parc" me solicitava se eu não poderia vender-lhe (vender-lhe!) um cartão para azulejo para ele ornamentar a sua casa de La Jolle. No género dum daqueles que, pouco mais que há um par de anos, eu lhe dera para o seu entreposto (adega e salão de provas) bem situado nos campos perto de Tours. Sugeria mesmo se não poderia ser um igual ao que eu mesmo tenho na sala de cima da minha cabana de Arronches. É que quando ele me visitara - e que visita mais ou menos helénica foi aquela!, pois se fizera acompanhar, para além da sua esposa Julienne, de uma boa dúzia de garrafas do seu afamado tintol "Pérouse", aquele de se dar estalos co'a língua bem colocada - dizia eu, gostara do maroto do painelzito (bondade dele).

   Com fraternal sadismo, disse-lhe que não. Com efeito, porque não vendo os meus quadros (surrealista que sou, tenho este hábito, confesso que mau, de os fazer para meu próprio gozo...e de alguns amigos que iam a mostras que dantes fazia mas já não faço). Manias. Mas bom: que a seguir disse-lhe que, como me sentia ligeiramente pachorrento não lho vendia mas...lho dava. E, como me empolgara, que ia executar uma versão um pouco diferente do outro, embora seguisse o mesmo figurino e estilo. E, num exagero de doçura, que lhe ia mandar não um...mas quatro. (É que não me esquecera da semana que há 3 aninhos passei na sua mansão, onde petisquei do fino e engorlipei do bom, sempre tudo posto num ambiente fraternal com que os franciús que se prezam, acho eu, gostam de acatitar convivas).

  Foi nessa altura que ele me deu, para que eu o traduzisse, um dos seus poemas, que em anexo apresento aos caros confrades para aquilatarem da categoria real deste criador de vinhos doublé de professor, de gastrónomo e de poeta em pleno. 

  E fiz seguir os cartões. No fundo o privilégio era meu. E não digo isto a reinar!



   (... Em meados do próximo ano lá os irei contemplar, estes filhos emigrados (como muitos portugueses dest'época algo surpreendente...).



     E, o que será muito melhor, enquanto ambos os dois, mais a Julienne anfitriã de brios, degustarmos calmamente assim umas coisinhas deliciosas. Evohé!


   
O URSO GANIMEDES
Ele levanta-se
coitado dele
e nós sentimos aquele arrepio inquietante
da sexta-feira ligeiramente escura
Cristãos comunistas desportistas consumidores de alcachofras
e mesmo outros de crânio em silhueta contra a luz da lua
no meio do frio glacial do continente antártico
se bem me entendo  financistas agentes de câmbio
comerciantes  ruidosos alunos de artes polícias
personagens que fazem navegar os barquinhos nos tanques dos seus
jardins da infância
Velhos capões
Notamos dizia eu  ou melhor    notam vocês os que
ainda por aí têm sonhos
a sua poderosa silhueta de comedor de bagas de zimbro
de fruta da época se a conseguia apanhar   
de uma perna descarnada de montanhês
nos tempos da grande solidão feliz
 O urso que outrora ia de Somner Valley a Livington pelo meio
das gramíneas das faias das nogueiras até às primeiras encostas
da grande montanha verde e negra

                                  ***
O meu urso
suave como um lilás
como um carvalho das Ardenas
sem saber ler sem saber escrever
O de muito perto da terceira subida nas Rochosas
ou mesmo da quinta ou da sétima
lá onde havia entre os abetos seculares um pequeno
lago sonolento
e se dizia que por ali emigrantes antigos tinham rebentado
no inverno coloquial de Wyoming evocado em Toulouse

Aquela senhora conferencista de boa perna dava-me volta ao miolo
Até me fazia sentir câmbrias

de Santa Fé a Colorado Springs
o meu urso  meu é claro ainda que de mil transeuntes contentinhos
Aquele que virando a cabeça   erecto   nos faz recordar o Quaternário
na sua imensa estrutura de velha fera indolente.

O Ganimedes
calmo empregado entre funcionários engravatados
pensa que pelas ruas faria dar gritinhos às raparigotas sem cuecas
a moda mais na moda de agora   imaginem vocês
a sua companheira ursa perdida com a barriga ao léu
                                    
                                          ***

Ganimedes
No Zoo parisiense ele é um senhor cheio de categoria
mau-grado o seu silêncio habitual
chegam a atirar-lhe maçãs   muitos lhe lançam
amendoins ou nozes de Agosto
e avelãs e até um maço de cigarros amarfanhado

O meu urso
Primo do meu primo Ribonard e dum grandalhão
mais tosco que a rocha Tarpeia
taberneiro merceeiro em La Jolle  onde eu ia com o tio Lenôtre
comprar botas de caçador de perdizes
de cigarrinho mais que malcheiroso sempre ao canto da bocarra
sempre ensopado em branco e aguardente barata.
Ganimedes

sob o luar e os planetas libertos aguarda o momento de estoirar.