segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Mais umas quantas crónicas exemplares...










Sua Excelência, o autarca

Há dias, li um jornalista jurar que a Lisboa actual está sempre em festa, cheia de animação, eventos culturais, artes de rua e "iniciativas" em geral, logo (sublinho o "logo"), o jornalista em causa apoia a reeleição de António Costa. Ainda que não fosse essa a intenção, é difícil resumir melhor a relação dos portugueses com o poder, e sobretudo com o poder local.

Para o cidadão comum, aquilo que acontece numa cidade, Lisboa ou outra, é necessariamente resultado das decisões - ou da falta delas - dos senhores que ocupam a autarquia. Se a cidade é pródiga em bares, espectáculos musicais, exposições e homens-estátua, o mérito é da câmara municipal. Se a cidade anda mortiça, a culpa é da câmara municipal. Os munícipes, criaturas sem vontade própria que seguem as decisões autárquicas como os zombies seguem mioleira fresquinha, não são para aqui chamados, excepto para exaltar a sumidade que espevitou a vida urbana ou criticar a nulidade que deixa a vida urbana desligar-se às sete da tarde. Aparentemente, ninguém é capaz de se instalar a servir copos, organizar concertos ou espirrar três vezes sem o aval, e talvez o patrocínio, de Sua Excelência, o autarca. A ausência de vida para além dos Paços do Concelho não só é uma concepção absurda: se calhar, é verdadeira.

Em países civilizados, é possível visitar uma cidade, ler sobre uma cidade ou espreitar um documentário alusivo a uma cidade e nem sequer notar a existência do senhor presidente da câmara. Em Portugal, isso seria tão estranho quanto um vereador balbuciar uma frase que não inclua a palavra "valências". Não há "apontamento de reportagem" acerca de qualquer lugarejo sem depoimento do senhor presidente. Não há jornal local sem 37 fotografias do senhor presidente. Não há procissão de Nossa Senhora dos Aflitos sem a presença do senhor presidente junto da protagonista. Não há instalação instalada em galeria sem autorização do senhor presidente. Não há garrafa de vodca aberta às duas da madrugada sem uma vénia ao senhor presidente, que afinal criou as "condições" para que os súbditos se embriagassem com galhardia. O senhor presidente, emanação do Estado, encontra-se por toda a parte, numa consumação assustadora das "políticas de proximidade" que o jargão da classe promete "incrementar".

Puro Terceiro Mundo? Obviamente. Ou, se não apreciarem a expressão, herança de séculos de pobreza e dependência, que mantêm o povo petrificado, à espera das migalhas largadas por quem manda. Se a "festa" lisboeta se deve de facto ao dr. Costa, a "festa" é uma exibição do nosso permanente atraso, hoje, aliás, celebrado em eleições.




Uma fraude e uma ofensa

Antes de mais, a boa notícia: um estudo da universidade inglesa de East Anglia confirmou que a Terra um dia se aproximará demasiado do Sol e nenhuma forma de vida sobreviverá. A má notícia é que esse dia só ocorrerá daqui a 1,75 mil milhões de anos, no mínimo, ou 3,25 mil milhões de anos no máximo. Ou seja, por um lado Keynes tinha razão quando sugeria que gastássemos à tripa forra, já que "no longo prazo", cito, "estaremos todos mortos". Por outro, teremos muito tempo para suportar as consequências de tão desvairada filosofia e a retórica de gente como António José Seguro.

Num discurso em Coimbra, durante a campanha das "autárquicas", o dr. Seguro explicou pela enésima vez que "O Estado social não é um capricho dos socialistas, mas uma necessidade dos portugueses para combater as desigualdades sociais". E acrescentou: "Quem defende um Estado mínimo, a única coisa que está a dizer é que os portugueses ficam entregues à sua sorte." A primeira frase é uma demonstração de iliteracia económica, a segunda um insulto pouco velado à população.

Vamos por partes. Mesmo sem perceber o que é que o "Estado mínimo" tem que ver com o Governo em funções e mesmo sem discutir as hipotéticas virtudes do Estado dito "social", no fundo uma maneira de submeter recursos aos critérios redistributivos de quem manda e, com frequência, um sistema de perpetuação da desigualdade, a verdade é que até as necessidades dos portugueses, ou pelo menos as necessidades decretadas pelo dr. Seguro, dependem dos meios existentes para financiá-las. Prometer maravilhas sem acautelar o dinheiro que as paga talvez excite a ala esquerda do PS e algum eleitorado, mas constitui de qualquer modo uma burla.

E a segunda frase acima constitui, repito, uma ofensa. Qual é o mal de os portugueses ficarem entregues à sua sorte? Salvo casos excepcionais de miséria ou invalidez, a posse do próprio destino é uma bênção e uma prerrogativa da liberdade. Infelizmente, os senhores que passeiam superioridade moral e preocupação para com o povo entendem que o povo padece de rematada estupidez. E, quando lhes confia a vida, o povo dá-lhes certa razão.




A carteira e a vida

É costume os media divulgarem extasiados que uma publicação ou um site quaisquer distinguiram Lisboa, ou o Porto, ou o Douro, ou o Algarve, ou o Cacém como o "melhor destino turístico" da Terra, ou da Europa, ou da Península Ibérica, ou dos países mediterrânicos cujo nome começa pela letra pê.

O êxtase foi menor quando um teste da Reader"s Digest colocou Lisboa no último lugar em honestidade entre 16 cidades. Ou no primeiro lugar em desonestidade. Eis o teste: espalharam-se 12 carteiras recheadas com documentos pessoais e 30 euros (ou o equivalente) por cada uma das cidades. E depois esperou--se a devolução. Em Helsínquia, 11 carteiras regressaram ao dono. Em Bombaim, nove. Em Nova Iorque e em Moscovo, oito. Em Lisboa, uma. Uma, abaixo de Madrid, Praga, Rio de Janeiro e Bucareste, os lugares seguintes na tabela da pilhagem de ocasião.

Conclusões? A dimensão e a aleatoriedade do teste não chegam para tanto. No máximo, o teste ajuda a desmontar o mito de que os pobres são menos propensos à rectidão. Curiosamente, trata-se de um mito tão propagado pela direita "darwinista" quanto pela esquerda "conscienciosa". Uma acha que a pobreza reflecte os traços de inferioridade dos que a sofrem, incluindo a preguiça ou a tendência para a trapaça. A outra sonha com uma multidão de pobres que subverta o "sistema" através do crime. No mundo real, naturalmente, as condições económicas não influenciam o carácter.

Mas isso já se sabia. E, no resto, o alcance da brincadeira do Reader"s Digest é limitado. Será que, por coincidência, o teste encontrou os únicos 11 indivíduos malformados a operar na capital? Será que no Porto, em Braga, em Faro ou em Coimbra os resultados mudariam ou o problema é nacional? Será que os turistas que confessam deixar cá um pedacinho de si estão a elogiar a hospitalidade pátria ou literalmente a constatar um facto?




Falar sobre o tempo

Parece-me que os peritos procuram novidades da crise económica internacional nos indicadores errados. A maior evidência de que o pior já terá passado está no regresso em força do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), que anda outra vez a alertar para o Apocalipse.

Nos últimos cinco anos, em parte pelas falcatruas que desacreditaram o organismo, em parte pelo facto de as pessoas terem coisas mais sérias com que se ocupar, o IPCC praticamente sumiu do que agora se chama "espaço mediático". O "aquecimento global", e sobretudo o "aquecimento global" com origem na actividade humana, afinal o evangelho do IPCC, viu-se trocado na atenção pela "bolha" imobiliária, as complexas operações da alta finança, os resgates da banca, os gastos dos governos e, principalmente, os apertos das populações, mais preocupadas em chegar ao fim do mês do que em assegurar que o Pólo Norte chegue ao fim do século.

Assistir, em 2013, às manchetes sobre o clima que faziam furor em 2007 é, além de um consolo nostálgico, um sintoma de que a economia internacional se encontra em recuperação e de que, não tarda, poderemos voltar a consumirmo-nos com ninharias especulativas. As promessas do fim do mundo são sempre uma garantia de que o mundo vai benzinho, obrigado.




Novidades literárias

Não sei o que é mais engraçado, se o anúncio de que o eng. Sócrates escreveu um livro, se o facto de o livro versar a tortura, se a circunstância do prefácio ser assinado por Lula da Silva, esse fenómeno de integridade e rectidão que assolou - e, por interposta gente, ainda assola - o Brasil. Por este andar, assistiremos em breve ao lançamento da "Nova Gramática da Língua Portuguesa", obra de Manuel Almeida, candidato do PTP à autarquia de Gaia. Com prefácio de Jorge Jesus.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

As Verdades que a Imprensa Brasileira Omite - Bolsonaro

Um cheirinho do nosso futuro, temporariamente travado mas "aproveitado" para desenvolvimento de teses sobre "tortura".

Jornalismo de excelência


Teresa Caeiro chega à ação de campanha


Não conheço a senhora deputada Teresa Caeiro. Nem me inspira especial simpatia. Quanto ao seu consorte, a quem também nunca fui apresentado, provoca-me irreprimível repugnância intelectual e de carácter. Feitios...

Ao ler, porém, esta notícia, publicada no sábado passado pelo DN...

por Valentina Marcelino, 21 setembro 2013

A deputada Teresa Caeiro esteve na feira de artesanato de Porto Salvo a dar apoio à campanha de Paulo Freitas do Amaral. Deixou sorrisos nos rostos que a conheceram

A chegada de Teresa Caeiro não podia ter sido mais notada. De boleia no Mini-cooper descapotável de um dos elementos da comitiva ("o meu carro é um 'Golf' com mais de 15 anos", apressou-se a informar), calças brancas, blusa de seda preta, óculos clássicos Ray Ban e os seus cabelos louros brilhantes. Ao lado Paulo Freitas do Amaral, o candidato do CDS à câmara de Oeiras e um grupo com cerca de duas dezenas de apoiantes.

A versão feminina do tradicional "Paulinho das feiras" (do tempo em que o presidente do CDS fazia campanhas na rua, o que não aconteceu ainda nestas eleições autárquicas) chegou e deixou, pelo menos, um sorriso, em cada banca por onde passava. A "Teresinha das feiras" é envolvente. Pára, conversa, pega no rosto da pessoas e dá beijos sentidos e abraços apertados. A meio da visita ouviu-se a voz aguda de Flora Varela, uma das feirantes: "ninguém me compra carteiras, não há dinheiro, quem me compra qualquer coisa?" perguntava. Teresa Caeiro aproximou-se "De que se queixa esta querida senhora?", questionou. Flora respondeu "Queixo-me da falta de emprego, de falta de dinheiro, de filhos a mais e de abonos a menos". A deputada acenou com a cabeça, "compreendo a senhora". E abraçaram-se. "Tão simpática", sorria Flora.

Mas a banca que mereceu o maior tempo de Teresa Caeiro foi a de Inês, uma jovem, com trissomia 21. Ali a 'estrela' Teresinha demorou-se. Falou com a mãe de Inês, Manuela, que se queixou da falta de projetos para a sua filha e a falta de apoios para os jovens com necessidades especiais. Inês manifestou o seu descontentamento com os políticos e disse que ia votar em branco. Teresa disse-lhe que compreendia, "mas não podia deixar de dizer que era "muito injusto, porque nem todos o políticos são iguais. Era a mesma coisa que agora dizer que todos os feirantes são aldrabões", explicou. Inês aquiesceu e baixou os olhos. Numa banca ao lado Teresa não resistiu a comprar mas rifas. "Sou viciada em rifas", admitiu e questionada pelo DN sobre que políticos gostaria de "rifar" nesta campanha, respondeu: "todos os que andam a denegrir a política e a democracia a tentar comprar votos com porcos, dinheiro ou promessas inacreditáveis que nunca vão cumprir". Não quis "fulanizar", mas Paulo Feitas do Amaral não pode deixar de recordar que a "campanha do PSD anda a dar porco assado nos bairros sociais".

Já de saída da feira, a caminho do mini-cooper ouve-se uma voz a chamar Teresa. É Inês, que vem ofegante. Oferece-lhe um quadrado de bolo de chocolate, embrulhado em celofane, com um laço azul. "Fui eu que fiz. É isto que eu faço", declarou, emocionando Teresa. Há tempo que nunca é perdido. Nem em campanha eleitoral.

... fico a pensar se a jornalista a teria redigido da mesma forma caso Teresa Caeiro houvesse chegado ao local num veículo familiar, como, por exemplo, o popular Citroën Picasso, cujo preço  é superior ao do Minicooper. Descapotável.

Pressinto, não sei porquê, que tal lhe diminuiria a excelência da prosa e o desafio que esta faz à argúcia do leitor. O que constituiria uma perda lamentável para a qualidade do jornalismo que demonstra ser sua intenção oferecer aos compatriotas.

Adenda (às 15:08)

Ligou-me mesmo agora um amigo dizendo-me que dois candidatos, de diferentes partidos de esquerda, aos cargos autárquicos locais ou municipais de onde ele reside, também possuem automóveis descapotáveis. Mas nunca, nunca andam neles durante as eleições.
Que pena! O colorido que nos fazem perder estas renúncias...!

Da tribunalícia governação

Parece que estamos no filme de António Gramsci. Segundo ele, a esquerda manter-se-ia eternamente no poder se conseguisse ir lentamente penetrando as instituições, todas elas, e fossem quais fossem os sapos que tivesse que engolir. Olavo de Carvalho bem o explica.

Já bem agarrada às instituições, caberia a cada militante servir de agente de dinamização do que a ela interessasse ou de agente de resistência passiva ao que não lhe interessasse.

A recente mania de tudo se enviar para tribunal (providências cautelares, etc) vai nessa linha. A recente recusa da AR em clarificar o que pretende com a lei das incompatibilidades de autarcas, idem. Este imiscuir do TC em assuntos de governação em geral, ibidem.

Esta é a esquerda de Lula, do mensalão, de que Sócrates é pupilo. É a esquerda do perfeito idiota útil sul-americano tendo Cuba como exemplo inspirador.

Com as instituições já bem tomadas por dentro, pode parece haver uma democracia, mas quem for eleito governa apenas na parte que conseguir furar à esquerda-das-instituições.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

QUEM FALA ASSIM NÃO É GAGO



O ministro do Interior francês, Manuel Valls, reiterou hoje as polémicas declarações contra os ciganos e que estão a provocar grande polémica em França, incluindo no Governo e no Partido Socialista, que sustenta o executivo.

"A maioria (dos ciganos) deve ser levada até à fronteira (...) o nosso papel não é acolher estas populações", disse à estação de televisão BFMTV o responsável pelo Ministério do Interior.

As declarações foram proferidas um dia depois de Valls ter provocado polémica política ao afirmar que os "ciganos devem regressar à Roménia ou à Bulgária", onde têm que "fazer esforços para se integrarem".

Várias figuras do Partido Socialista e do próprio Governo já criticaram as palavras do ministro do Interior, que "estigmatizam os ciganos".

O ministro da Indústria, Arnaud Montebourg, afirmou que as declarações de Manuel Valls foram "excessivas" e que devem ser "corrigidas".

Mesmo assim, o ministro do Interior já respondeu diretamente ao colega de Governo, ao afirmar que não há nada para corrigir e que as declarações que fez sobre os ciganos "só incomodam aqueles que não conhecem o assunto".

(Dos jornais)


***


O meu comentário:

   Sectores bem determinados, com intenções tristemente bem conhecidas, têm sistemática e matraqueantemente tentado estabelecer esta regra absurda: criticar certos grupos, díscolos ou mesmo brutalizadores, é racismo e é xenofobia.

   Essa ação destina-se a paralisar os ditos críticos, oficiais ou não, criando a impunidade alvar no seio desses grupos.

   Dá-se isso hoje em relação a sectores islâmicos ou gitanos - como dantes se dava em relação a comunistas.

   Eles visam viver numa espécie de limbo branqueado, inimputável.

   É uma ação concertada, ilegitimamente subversiva!


   E o resto é conversa...

Autárquicas, Isabel A Endocrinologista, Marco Mouro na Costa





Alberto Gonçalves dixit:





Clima de festa

Parece que o presidente da Câmara Municipal de Esposende (CME), João Cepa, gastou 5266,80 euros dos cofres do município para oferecer dois mil terços a outros tantos idosos do concelho. Não satisfeito, acrescentou 16560 euros, naturalmente públicos, para alugar 32 autocarros e enviar os ditos idosos numa peregrinação a Fátima. Na página do Facebook da CME, conclui-se que a viagem foi um sucesso, com direito a missa, piquenique junto ao santuário e, cito, "a partilha dos farnéis e o convívio entre os participantes, em clima de festa e alegria". Os que defendem o social-democrata João Cepa, leia-se o próprio, explicam que o homem não é candidato nas próximas eleições autárquicas. Os que o atacam evocam a separação entre o Estado e a Igreja.

É evidente que concordo com os segundos, embora me pareça que a restrição não baste. Além de se separar o Estado da Igreja, proeza que, aliás, já foi razoavelmente consumada há décadas, convinha com urgência separar o Estado do dinheiro alheio. A menos que se ache que o único problema desta história passa pelo carácter religioso das prendas e do destino. Se o sr. Cepa tivesse oferecido ao povo duas mil garrafas de espumante e um passeio à Bairrada, o caso seria diferente? Suponho que não.

Limitar a generosidade dos autarcas apenas nas matérias da fé é continuar a dar-lhes livre trânsito para estraçalharem o rendimento de quem trabalha em pândegas sem eucaristia, rotundas sem evangelho, "multiusos" sem sacerdote, "requalificações" de "envolventes" sem redenção. E isto para ficarmos pela iconografia mais representativa do entusiasmante "poder local".

Se quisermos ir um bocadinho além, consultar o portal base.gov.pt é descobrir todo um universo de despesas peculiares em que as autarquias também se especializaram. Há os cinco mil euros gastos pela CM de Faro nos serviços de "manutenção e suporte" de um "software de gestão desportiva", os sete mil euros gastos pela CM de Miranda do Corvo em bilhetes de avião para a Turquia, os 42 mil euros gastos pela CM de Barcelos num misterioso "compressor Nitrox", os 24 mil euros gastos pela CM da Amadora na "concepção de um desdobrável para as eleições", os dez mil euros gastos pela CM de Sousel num espectáculo com "o artista "Quim Barreiros"" (curiosamente, "artista" aparece sem aspas), os quatro mil euros gastos pela CM de Loulé em máquinas de musculação ("e stepper"), os 54 mil euros gastos pela CM de Serpa na "aquisição de serviços para a direcção do Centro Musibéria", os 6500 euros gastos pela CM de Aljustrel num "monobloco em betão", os 50 mil euros gastos pela CM de Vila Pouca de Aguiar na "tradicional Feira das Cebolas" e, para não cansar e terminar em grande, as largas dezenas de milhares de euros gastos pela CM de Lisboa em incontáveis passagens aéreas para Dublin, Odense, Belfast, Luxemburgo, Helsínquia e onde calha.

Tudo isto, acreditem ou não, são exemplos colhidos na semana agora finda, em suposta época de crise. Multipliquem-nos pelas cerca de duas mil semanas de municipalismo democrático e não se esqueçam: no dia 29, corram às urnas. O voto é um direito e um dever. E, para eles, uma festa e uma alegria.




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Bombocas à noite

O jornal i entrevistou Isabel do Carmo, a endocrinologista que, pelo aspecto, possui a legitimidade de um alcoólico que é cirurgião hepático, e a ex-terrorista que lutou à bomba pelo tipo de sociedade que admirava. Podia ter sido pior: em vez de uma entrevista amável, o i podia ter concedido uma comenda à senhora. Mas disso o antigo presidente Jorge Sampaio já se encarregara.

Ainda assim, a referida entrevista é suficientemente comovente. Desde logo, pela preocupação que a dra./camarada Isabel dedica ao futuro do SNS, regime que acha merecer a exclusividade total dos médicos. E se a dra./camarada Isabel acumulava há décadas o serviço público com o privado, isso deveu-se apenas a razões logísticas. Ou, como ela explica: "A certa altura, é um caminho irreversível." Porquê? Porque "a pessoa ganha uma certa notoriedade que torna difícil voltar atrás". E porque o Estado só é bom quando rouba os outros: "Ando a trabalhar no privado para pagar os impostos do público." Muitos andamos, minha senhora.

Espantosamente, a entrevista consegue melhorar. Não é todos os dias que uma jornalista faz uma questão tão pertinente quanto: "É o jeito para mobilizar que liga a Isabel do Carmo de 73 anos à jovem das Brigadas Revolucionárias?" Porém, o segundo grande momento da História da Imprensa Ocidental é a pergunta: "Sendo médica, como é que se gere a defesa da luta armada?" O primeiro momento é a resposta: "Gere-se bem."

O resto da peça mantém este nível. A dra./camarada Isabel conta que se reunia em hospitais com "Zeca" Afonso (um excelente aproveitamento de recursos), invoca a aprovação de Otelo (esse baluarte do juízo), informa que se limitava a colocar "bombas à noite" (e que a classificação de bombista é uma calúnia "da direita e da extrema-direita") e garante que hoje não voltaria à luta armada na medida em que não lhe "apetecia ir para a cadeia [risos]" (a moral é uma mariquice que não a detém). A terminar, a jornalista exibe extraordinária coragem: "Tem algum doce preferido?" "Bombocas?"




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A renegociação a 500 euros/mês

Marco António (Costa) é daquelas coisinhas tão pequeninas e engraçadas que apetece levar para casa. Mas não para a minha. Um destes dias, para que não parecesse que o CDS era o único membro da coligação a alinhar nos clichés contra o Fundo Monetário Internacional, Marco António (Costa), todo lampeiro, insurgiu-se: o FMI padece de "hipocrisia institucional", já que os seus responsáveis terão afirmado num alegado relatório que a austeridade aplicada a Portugal é excessiva. E depois os malvados "mantêm-se inflexíveis" nas negociações.

Coitadinho do Marco António (Costa), que ainda não percebeu a enrascada pátria. Mesmo que tal afirmação e tal relatório sejam verdadeiros, importam menos os estados de alma de algum funcionário da entidade do que os factos, e estes mostram que a intervenção local do FMI, acompanhado pelos dois terços não tão benignos da troika, só existe porque a classe política a que Marco António (Costa) pertence e o bom povo que a legitima criaram uma situação que tornou a intervenção necessária: eles mandam; nós colocámo-nos a jeito de ser mandados. A alternativa, de que pelos vistos ele não se lembra, era a bancarrota absoluta. Assim, estamos numa bancarrota assistida, na qual uns senhores emprestam (a juros) o suficiente para que isto possa fingir que é uma nação soberana e inúmeras figuras gradas da nação querem mandar os senhores pentear macacos (embora por palavras mais viris). O patriotismo é muito lindo.


Infelizmente, os patriotas não explicam onde arranjaríamos o crédito caso os credores decidissem abandonar-nos à nossa sorte. Ou explicam, o que é igual. A ideia consiste em preservar a troika só que em versão boazinha: eles continuam a mandar-nos o dinheiro; nós dispensámo-nos de condições aborrecidas como a de ter de pagá-lo. Ou, no máximo, obrigamo-nos a pagar em suavíssimas prestações, semelhantes à que a autarquia de Vila Nova de Gaia, que contou durante anos com os brilhantes préstimos de Marco António (Costa), cobra ao FC Porto pelo centro de treinos ou lá o que é. O centro custou aos contribuintes 16 milhões. O clube abate 500 euros mensais. Daqui por 2666 anos - por extenso: dois mil, seiscentos e sessenta e seis -, aquilo estará pago. A Câmara Municipal de Gaia é generosa com o que não é seu. O FMI é cioso do que é. Vá-se lá compreender o mundo. Não admira que Marco António (Costa) nem tente.



terça-feira, 24 de setembro de 2013

SOBRE JULES MOROT




      Jules Morot, francês de fio a pavio, não podia deixar de ser um poeta que raciocina sobre a questão da escrita e da literatura que se organiza sobre aquela e, naturalmente, sobre a vida que lhe reside em torno, antes ou depois do acto.
      Sendo originário do Loire, essa - e cito - “região pacífica da exuberante paisagem, vinhas, longas praias arenosas e sapais, salpicada de castelos, solares e zonas de caça e na qual os prazeres bucólicos se misturam com a fruição de cidades fascinantes”, um pouco desse rincão encantado lhe percorre o que pensa, o que escreve, o que inventa.
      Assim sendo, é natural que se detecte nele um fundo mágico que o lança em composições nas quais tenho percebido duas coisas fundamentais: o amor à natureza e ao pensamento especulativo (o que se me oferece, por exemplo, nos seus poemas “O besouro” e “Mozart” dados a lume na DiVersos nº 7 -  revista de poesia e tradução).
   Creio que o trecho que aqui vai, extraído do seu “La chambre engloutie” (inserido na sua obra mais recente) do mesmo modo explicita o seu mundo interior, vazado numa afirmação que afinal é interrogação sistemática mediante os ítens que o enformam e que, ao cabo, reflectem o homem e o autor fascinado ante os mundos de baixo e de cima – que o mesmo é dizer os do espírito e os da luminosa materialidade.
                                                                                                                         
INTRODUÇÃO - O Regresso

    Eu chegava de Besançon.
  Era um dia de chuva miudinha de meados de Março e no largo da estação tomei um táxi da fila que aguardava passageiros. A imagem de “O marido da cabeleireira” perpassou-me na mente ao efectuar o acto tão simples de entrar no automóvel. Logo a seguir recordei o que a personagem dizia antes de morrer: “Todo o meu passado desapareceu contigo”. E toca, brrrr!, de se lançar às águas do rio.
  Mandei seguir para a Praça Lebrun, que fica perto da rua Lepic onde se situa o meu sóbrio apartamento de solteiro. O motorista era magro, de cabelo escuro, bigode à inglesa, tipo de  belo tenebroso.  Notei que  depositara  no  banco do lado um livro qualquer – mais me parecera um caderno - que pude relancear fugazmente. Tanto mais estranho consoante ostentava na capa uma ilustração que me intrigou.
   Ao passarmos nas imediações do parque Monceau soltei uma pequena imprecação. E disse de imediato: “Esqueci-me dos cigarros, raios!”. Então, num gesto entendível, debrucei-me ligeiramente e passei-lhe uma notinha de 20 francos. Ele encostou o carro perto do espaço dos jogadores de bolas deserto àquela hora, pois percebera que a demasia lhe estava destinada. Enquanto ele se dirigia ao quiosque, num gesto rápido e decidido peguei no livro-caderno. E compulsei-o sem demoras.
  Era um manuscrito. Com entradas, que me pareceram reflexões. Li um par de linhas. Vi que o nome posto ao alto da primeira página correspondia ao do taxista na pequena placa identificativa do “tablier”. Sem alardes, como faria o Arsène Lupin, meter o manuscrito no bolso interior da gabardina e recostar-me serenamente foi uma naturalidade que não me levou 3 segundos. Um taxista escrevente! E o par de linhas mostrara-me que o meu rapinanço (pois se tratava dum delicioso roubo) fazia sentido. Aconcheguei mais ao queixo a gola da sebosa, para disfarçar melhor o meu trombil. Ele durante uns minutos não notaria a volatilização da sua menina-dos-olhos, pensaria talvez que caíra para o espaço intermédio entre o banco e a porta. E quando despertasse do engano já seria tarde.
   Ele regressou, passou-me o maço de “gauloises” e com um gesto dei-lhe a demasia.
   Nos minutos que levou a trajectória até à Praça Lebrun amodorrei sem má consciência. Ali apeei-me, paguei-lhe generosamente para compensar o amargo despertar e comecei a andar como se fôsse para a rua Vosges.
  Passei por cima da relva, no separador arborizado com que o município nos mimoseia e num cavalgar harmonioso voltei para trás em passo estugado. O coração batia-me um pouco, como se tivesse acabado de cometer um assassinato. Mas a alma entoava uma pequenina melodia.
  Levar-me-ão a mal? Chegarão mesmo a chamar-me ladrão, a cobrir-me de adjectivos pouco próprios? Eu, contudo, vejo o assunto de modo bem diferente.
  Já em casa, depois das abluções e dos momentos de nostálgica retoma do ambiente familiar, despi-me calmamente e enverguei um pijama confortável. E enquanto degustava uma colação leve mas saborosa, deitei-me à leitura.
  Estive nisto mais duma hora, entre o irritado, o seduzido, o admirado.
  Eram, com efeito, reflexões ora sobre isto, ora sobre aquilo. Coisas do dia a dia, artes, literaturas, o que se esperaria em quem tem muito tempo para locubrar nas horas de uma vida de solteiro e com uma profissão pouco compaginável, pensei, com o trabalho do pensamento. No entanto enganara-me e creio que ficara de parabéns.
  Entre esses exercícios de pensamento e, mesmo, de crítica com certa penetração, ia contudo assomando, mesmo ressaltando, uma espécie de história delineada pelos breves diálogos entre duas personagens identificadas apenas pelos apelidos: Barre e Cibaljet.


***

   


(...)

 "Cibaljet repôs o livro na prateleira de cima duma das altas estantes em madeira encerada de cerejeira. Com um sorriso ameno disse para Barre, enquanto vertia nos copos uma generosa porção do líquido contido na garrafa de cristal facetado: - Na adolescência fui muito suscitado pelo catorze. Era um número que, não sei porquê, me despertava curiosos pensamentos. O sete duas vezes, o sete para um par de enamorados ou de companheiros, ou de inimigos...  
  Quando me tornei adulto, foi o quarenta e seis...
  É um número de grande poder, o quarenta e seis - disse Barre suavemente.Tem razão - redarguiu Cibaljet com um sorriso - É o sete multiplicado seis vezes e, depois, adicionado do quatro. Ou seja: da terra, da água, do ar e do fogo. "


***

  "Senti isso uma vez perto de Claremorris, no País de Gales, quando se começa já a descer até aos prados de Ballinrobe - disse Cibaljet entre duas puxadelas do havano - A sensação de que estamos longe, muito longe...como se fôssemos outros e nada nos prendêsse ao que fômos.
  Entendo! - redarguiu Barre com uma expressão sonhadora - Tive a mesma experiência certa noite junto ao Bósforo, quando ainda não me decidira a deixar a velha Europa...
  Você acha que a sensação é muito habitual, pelo menos em viajantes experimentados e decididos, com uma boa qualidade de conhecimento de estradas e lugares? - tornou Cibaljet passando-lhe o frasco viajeiro de aço recoberto de couro onde a bela aguardente das Cevènnes esperara a sua vez.
 Ora... - disse Barre na sua voz de baixo a que um leve tom de barítono emprestava um timbrezinho peculiar - Tenha em conta que a maior parte dos mortais com ou sem qualidades próprias de caminheiros se limitam, a não ser que haja milagre, a deslocar-se para aqui ou para acolá como se um vento os levasse..."


***

  “Já não me recordo quem teria dito a frase “Foge de alguns, foge de um, foge de todos” - disse Cibaljet passando a Barre a tábua onde um belo naco de Brie exalava o seu perfume sedutor para gastrónomos encartados – E quem teria dito, diabos levem a memória, “O companheiro Deus se quiser existir que exista” ? Puxo pela cabeça e por mais que tente não me consigo recordar...
  Sim, esses lapsos são apoquentadores em extremo – redarguiu Barre com um fino sorriso, untando a fatia de pão com deleite e vasando nos copos um Chandelle que estava mesmo a pedi-las – No meu caso, há anos que tento encontrar pistas do poeta que escreveu “Cuco, és tu uma presença errante ou apenas uma voz indagadora?”. Tenho procurado em antologias, em selectas liceais, em alfarrábios...e nada! E quem teria dito “É uma cidade soturna e desencorajante. Certas pessoas deviam entrar directamente do hall para o páteo e nunca lhes deveria ser franqueada a sala” ?
  Por mim sou um homem confiante – tornou Cibaljet entre duas mastigadelas – Ainda não perdi a esperança de conseguir lembrar-me de quem foi que disse “A vida é um mistério e não um delírio”.
 Barre pousou o copo. “Sabe - soprou de mansinho – quando era garoto um parente meu dizia que a memória atraiçoa frequentemente os que comem muito queijo...
  E talvez seja verdade... – disse Cibaljet servindo-se de outra generosa porção do Brie que restava na tábua – Será um caso de sabedoria popular...
  Mas nenhum deles sorriu.”


***

  “Meu caro Barre: ontem, na rua do Tivoli, encontrei um alquimista. Não se ria, essa qualidade existe. Acontece que por uma subtil concatenação de factos esse homem é meu vizinho e tive oportunidade de lhe prestar um pequeno obséquio que o dispôs a meu favor. É um indivíduo inteligente e desembaraçado, com um vago ar de distância indefinível que, contudo, não o apouca.
   Após vários anos de contacto fortuito, eis que confiou em mim. Contou-me uma história surpreendente.
  Como não saberá, mas aqui fica a revelação, os adeptos que atingem a iluminação não precisam daí em diante de comer ou beber e consequentemente de eliminar os resíduos líquidos ou sólidos. Habitando vinte anos atrás um solar isolado das redondezas, entregou-se a uma curiosa actividade: esteve 4 meses sem sair do seu quarto, imóvel numa poltrona e lendo incessante e interessadamente as obras de Vítor Hugo. Entre um e outro livro, dormia a sono solto para se distrair com os sonhos. Depois, recomeçava.  
  Os músculos não se atrofiavam pois as células corporais, nessas pessoas, mantêm a elasticidade. Quando chegava ao fim dos tomos, reflectia sobre as qualidades e defeitos da Obra do mestre. Adquiriu assim a certeza de que a leitura roda no espírito humano como um planeta o faz à volta do Sol.
  Vai dentro em breve recomeçar o mesmo périplo, desta vez com as obras de Balzac. Para isso isolar-se-á numa vivenda que descobriu nos arredores do Languedoc, no cimo duma colina e no meio de um bosque fora dos circuitos de quem quer que seja. Estará nisto, segundo prevê, 8 meses seguidos. Depois, será a vez de Homero, de Dante, de Borges, de John O'Hara, de outros mais. Dará aí para coisa de 4 anos. No entanto, desta vez acompanhará as leituras com intervalos durante os quais, cozinheiro emérito em que se tornou por gosto e sensibilidade gastronómica, preparará pratos sumamente apetitosos conforme a sua disposição do momento.
  Disse-me que um dia, em meio às suas leituras futuras, já os homens terão chegado a um planeta habitado fora do nosso sistema solar. Sairá então, com o intuito de renunciar à leitura dos clássicos e votar-se a passeios incessantes durante os quais ordenará na sua cabeça todas as páginas que leu.
   A solidão não o assusta. A única coisa que parece preocupá-lo um pouco é que, entrementes, uma catástrofe nuclear aniquile a nossa velha Terra. Eu disse-lhe que deveria começar a pensar em manobrar de forma a que os governos que se interessam pela aquisição atómica não tivessem esse ensejo.  
  Uma vez que dispõe de incomensuráveis possibilidades, já de tempo já de sabedoria, isso ser-lhe-á possível a meu ver.
  Ele olhou-me fixamente durante uns segundos e depois respondeu: “Saiba que mesmo a nós é extremamente difícil inflectir a loucura dos homens. Já outros antes de mim o souberam. Confiemos antes nas leis do acaso”.
  Despedimo-nos à porta do edifício que ambos habitamos, em andares diferentes.
   Agora  estou sentado a ouvir uns trechos de Brahms, enquanto lhe escrevo.  Jantei costeletas grelhadas com um fiozinho de molho inglês para acertar a preparação. Sinto, contudo, uma leve inquietação que não consigo definir se vem da conversa ou do leve zumbido que algures soa vindo do apartamento do lado, onde reside aquela morena de que não sei se já lhe falei.
  Até que nos encontremos.
  Cibaljet”

 ***

  “De cada vez que ouço Stravinsky ou leio Maupassant sinto sempre que alguém foi demasiado longe. Há autores que nos deslumbram e outros que nos sufocam. E o mais grave é que ambas as coisas podem ser suplementares.  Nunca consegui ler mais do que três contos de Maupassant de uma vez só. E nunca consegui ouvir Stravinsky durante um inteiro quarto de hora. O pássaro de fogo põe-me todo a tremer. Tal como sucede com O colar de Maupassant. A meu ver existe algures, perdida no meio dos séculos e das coisas, dos acontecimentos e das descobertas, uma lógica inquietante que ainda não foi avaliada. Algo para além das frases e dos sons. Tem-se a impressão que certos autores tocaram com o dedo nu o mistério da espécie... - regougou Barre em voz cava
   Junto da janela, Cibaljet olhava atentamente para fora. Traçava, distraidamente, figurinhas no vidro embaciado com a mão direita, enquanto a esquerda levava aos lábios, intermitentemente, o charuto já meio fumado.
   Vem aí uma forte pancada de chuva... - disse enquanto se virava e apanhava o cálice de “Napoléon” da mesinha de mogno envernizado - O céu está negro ali para Norte...Vai ser de escachar!
   Barre inclinou-se e, duma pequena taça de cerâmica com arabescos, tirou uma boa porção de amêndoas torradas.
   Gosto da chuva quando cai numa tarde assim de princípios de primavera, como esta – afirmou com um leve suspiro.”


***

  “Lacordaire ultrapassa em muito a sua própria lenda. Nisso está nos antípodas de Stevenson, cuja lenda é do tamanho da sua vida vivida. Não é fantasia e sim realidade o facto de que escreveu “O médico e o monstro” de rajada, horas depois de ter tido um sonho onde lhe foi oferecida a imorredoira história. - E, dizendo isto, Barre estugou o passo ao longo da álea que bordejava o canteiro de flores diversas e multicoloridas.
  Sim, mas só até à segunda transformação. Daí em diante teve ele de inventar – retorquiu Cibaljet com um leve sorriso enquanto, tomando Barre pelo braço, o encaminhava na direcção da pérgola um pouco mais adiante.”


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   “Caro Cibaljet: Contaram-me ontem que Marcel Proust deixou algures, de acordo com um dos seus melhores exegetas, dois livros inéditos. A meu ver trata-se de não mais que um boato vago, talvez incrementado por um editor voraz e arteiro com o intuito de despertar uma nova curiosidade pelas obras já existentes. Mas e se fôr verdade? Que novas visões isso despertará, não acha? Críticos, leitores, simples observadores, andarão à porfia durante sei lá que tempo em roda da obra do aristocrata mais socialista de França. E já me revelaram que se trata de um diário e de cartas confidenciais.  Que bico de obra, que bela jornada para duas ou três épocas!
   Gostaria de ouvir a sua opinião. Até domingo próximo e os meus respeitos à senhora sua Mãe.
   Barre”


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   “Meu caro Barre: A meu aviso trata-se de um boato, desses que surgem ciclicamente na nossa sociedade hiper-literária. Ou, melhor dizendo, sofisticada pelos piores motivos. Mas sempre lhe digo que, a ser verdade, teria importancia apenas nas vendas e nos fins-de-mês das livrarias. E daria durante um lustro pano para mangas aos batalhões académicos da especialidade, mas nada mais. Quando um autor está morto, fisicamente morto e várias décadas passaram sobre a sua desaparição da cena, transforma-se em História com todas as consequencias que se conhecem. Nada mais modifica, quando muito suscita um arrepio intelectual e algumas paixões de segunda ordem.
   Assim, se por exemplo um autor, trinta anos passados sobre o seu último livro, anunciar que vai publicar um tomo de inéditos que lhe haviam escapado, arriscar-se-á a passar por velho relho à guisa de plagiador da sua própria obra.Tanto mais que, entretanto, apareceram novos ritmos, novas maneiras de indagar os séculos e o século, um novo olhar sobre a escrita.
   Infelizmente e creio que digo bem, a literatura é um pouco como as bananas, que devem ser consumidas na hora. A novidade, tanto quanto me parece, advém-lhe sempre de novos relances, de leitores sucessivos, não de descobertas materiais.
   Seja como fôr, a ser verdade, creia que estarei como um dos primeiros compradores dessa iguaria, tanto mais que a frequentação das velhas glórias é uma das características de que não abdico. E, além disso, qualquer página de Proust é no fundo como se tivesse sido escrita mesmo agora, o que contradiz absolutamente tudo o que lhe disse atrás.
   Até domingo, pois. E uma saudação respeitosa a seu Tio.
  Cibaljet”


***

   “E esta é uma das peças que me chegaram ontem – disse Barre assim que entrou, sustendo cuidadosamente nas mãos uma peça de cerâmica de côr esverdeada, com pequenos elementos abstractos, que Cibaljet logo se apressou a contemplar tão-logo foi deposta sobre a toalha que cobria a mesa no centro da pequena sala -  Ainda nem sequer a coloquei junto de outras irmãs de outras civilizações. Não é uma beleza?
   Cibaljet, sem a levantar, rodou-a cuidadosamente, quase com ternura. Olhava-a como que extasiado. Virou-se e olhou Barre com unção.
   Tão simples e no entanto tão bela! - afirmou - Olha-se para isto e quase se ouvem os sons do passado em que esta peça foi um elemento do dia a dia. Posso quase ver os que dela se serviam, o camponês comendo nela o seu alimento enquanto olhava os filhos e a mulher, ou enquanto sentado à porta de casa olhava os longes da floresta na tardinha que chegava. Os sons dos animais que começavam a ouvir-se na noite nascente...
   Neste caso – disse Barre com um trejeito, contudo assaz delicado – temo que se engane: é um exemplar, muito bem conservado, das taças ou tigelas, conforme queira, em que os participantes no rito maia bebiam o sangue da vítima propiciatória que o sacerdote acabara de degolar.”
                                                      
  (...)

in O quarto submerso, de Jules Morot
Trad. nicolau saião