Jules Morot, francês de fio a pavio, não
podia deixar de ser um poeta que raciocina sobre a questão da escrita e da
literatura que se organiza sobre aquela e, naturalmente, sobre a vida que lhe
reside em torno, antes ou depois do acto.
Sendo originário do Loire, essa - e cito
- “região pacífica
da exuberante paisagem, vinhas, longas praias arenosas e sapais, salpicada de
castelos, solares e zonas de caça e na qual os prazeres bucólicos se misturam
com a fruição de cidades fascinantes”, um
pouco desse rincão encantado lhe percorre o que pensa, o que escreve, o que
inventa.
Assim sendo, é natural que se detecte
nele um fundo mágico que o lança em composições nas quais tenho percebido duas
coisas fundamentais: o amor à natureza e ao pensamento especulativo (o que se
me oferece, por exemplo, nos seus poemas “O besouro” e “Mozart” dados a lume na
DiVersos nº 7 - revista de poesia e
tradução).
Creio que o trecho que aqui vai, extraído do
seu “La chambre engloutie” (inserido na sua obra mais recente) do mesmo modo
explicita o seu mundo interior, vazado numa afirmação que afinal é interrogação
sistemática mediante os ítens que o enformam e que, ao cabo, reflectem o homem
e o autor fascinado ante os mundos de baixo e de cima – que o mesmo é dizer os
do espírito e os da luminosa materialidade.
INTRODUÇÃO - O Regresso
Eu chegava de Besançon.
Era um dia de chuva miudinha de meados de
Março e no largo da estação tomei um táxi da fila que aguardava passageiros. A
imagem de “O marido da cabeleireira” perpassou-me na mente ao efectuar o acto
tão simples de entrar no automóvel. Logo a seguir recordei o que a personagem
dizia antes de morrer: “Todo o meu passado desapareceu contigo”. E toca,
brrrr!, de se lançar às águas do rio.
Mandei seguir para a Praça Lebrun, que fica
perto da rua Lepic onde se situa o meu sóbrio apartamento de solteiro. O motorista
era magro, de cabelo escuro, bigode à inglesa, tipo de belo tenebroso. Notei que depositara no banco
do lado um livro
qualquer – mais me parecera um caderno - que pude relancear fugazmente. Tanto
mais estranho consoante ostentava na capa uma ilustração que me intrigou.
Ao passarmos nas imediações do parque
Monceau soltei uma pequena imprecação. E disse de imediato: “Esqueci-me dos
cigarros, raios!”. Então, num gesto entendível, debrucei-me ligeiramente e
passei-lhe uma notinha de 20 francos. Ele encostou o carro perto do espaço dos
jogadores de bolas deserto àquela hora, pois percebera que a demasia lhe estava destinada.
Enquanto ele se dirigia ao quiosque, num gesto rápido e decidido peguei no
livro-caderno. E compulsei-o sem demoras.
Era um manuscrito. Com entradas, que me
pareceram reflexões. Li um par de linhas. Vi que o nome posto ao alto da
primeira página correspondia ao do taxista na pequena placa identificativa do
“tablier”. Sem alardes, como faria o Arsène Lupin, meter o manuscrito no bolso
interior da gabardina e recostar-me serenamente foi uma naturalidade que não me
levou 3 segundos. Um taxista escrevente! E o par de linhas mostrara-me que o
meu rapinanço (pois se tratava dum delicioso roubo) fazia sentido. Aconcheguei
mais ao queixo a gola da sebosa, para disfarçar melhor o meu trombil. Ele
durante uns minutos não notaria a volatilização da sua menina-dos-olhos,
pensaria talvez que caíra para o espaço intermédio entre o banco e a porta. E
quando despertasse do engano já seria tarde.
Ele regressou, passou-me o maço de “gauloises”
e com um gesto dei-lhe a demasia.
Nos minutos que levou a trajectória até à
Praça Lebrun amodorrei sem má consciência. Ali apeei-me, paguei-lhe
generosamente para compensar o amargo despertar e comecei a andar como se fôsse
para a rua Vosges.
Passei por cima da relva, no separador
arborizado com que o município nos mimoseia e num cavalgar harmonioso voltei
para trás em passo estugado. O coração batia-me um pouco, como se tivesse
acabado de cometer um assassinato. Mas a alma entoava uma pequenina melodia.
Levar-me-ão a mal? Chegarão mesmo a chamar-me
ladrão, a cobrir-me de adjectivos pouco próprios? Eu, contudo, vejo o assunto
de modo bem diferente.
Já em casa, depois das abluções e dos
momentos de nostálgica retoma do ambiente familiar, despi-me calmamente e
enverguei um pijama confortável. E enquanto degustava uma colação leve mas
saborosa, deitei-me à leitura.
Estive
nisto mais duma hora, entre o irritado, o seduzido, o admirado.
Eram, com
efeito, reflexões ora sobre isto, ora sobre aquilo. Coisas do dia a dia, artes,
literaturas, o que se esperaria em quem tem muito tempo para locubrar nas horas
de uma vida de solteiro e com uma profissão pouco compaginável, pensei, com o
trabalho do pensamento. No entanto enganara-me e creio que ficara de parabéns.
Entre
esses exercícios de pensamento e, mesmo, de crítica com certa penetração, ia
contudo assomando, mesmo ressaltando, uma espécie de história delineada pelos
breves diálogos entre duas personagens identificadas apenas pelos apelidos:
Barre e Cibaljet.
***
(...)
"Cibaljet repôs o livro na prateleira de
cima duma das altas estantes em madeira encerada de cerejeira. Com um sorriso
ameno disse para Barre, enquanto vertia nos copos uma generosa porção do
líquido contido na garrafa de cristal facetado: - Na adolescência fui muito
suscitado pelo catorze. Era um número que, não sei porquê, me despertava
curiosos pensamentos. O sete duas vezes, o sete para um par de enamorados ou de
companheiros, ou de inimigos...
Quando
me tornei adulto, foi o quarenta e seis...
É um
número de grande poder, o quarenta e seis - disse Barre suavemente.Tem razão - redarguiu Cibaljet com um sorriso
- É o sete multiplicado seis vezes e, depois, adicionado do quatro. Ou seja: da
terra, da água, do ar e do fogo. "
***
"Senti isso uma vez perto de
Claremorris, no País de Gales, quando se começa já a descer até aos prados de
Ballinrobe - disse Cibaljet entre duas puxadelas do havano - A sensação de que
estamos longe, muito longe...como se fôssemos outros e nada nos prendêsse ao
que fômos.
Entendo! - redarguiu Barre com uma expressão
sonhadora - Tive a mesma experiência certa noite junto ao Bósforo, quando ainda
não me decidira a deixar a velha Europa...
Você acha que a sensação é muito habitual,
pelo menos em viajantes experimentados e decididos, com uma boa qualidade de
conhecimento de estradas e lugares? - tornou Cibaljet passando-lhe o frasco
viajeiro de aço recoberto de couro onde a bela aguardente das Cevènnes esperara
a sua vez.
Ora... - disse Barre na sua voz de baixo a que
um leve tom de barítono emprestava um timbrezinho peculiar - Tenha em conta que
a maior parte dos mortais com ou sem qualidades próprias de caminheiros se
limitam, a não ser que haja milagre, a deslocar-se para aqui ou para acolá como
se um vento os levasse..."
***
“Já
não me recordo quem teria dito a frase “Foge de alguns, foge de um, foge de
todos” - disse Cibaljet passando a Barre a tábua onde um belo naco de Brie
exalava o seu perfume sedutor para gastrónomos encartados – E quem teria dito,
diabos levem a memória, “O companheiro Deus se quiser existir que exista” ?
Puxo pela cabeça e por mais que tente não me consigo recordar...
Sim, esses lapsos são apoquentadores em
extremo – redarguiu Barre com um fino sorriso, untando a fatia de pão com
deleite e vasando nos copos um Chandelle que estava mesmo a pedi-las – No meu
caso, há anos que tento encontrar pistas do poeta que escreveu “Cuco, és tu uma
presença errante ou apenas uma voz indagadora?”. Tenho procurado em antologias,
em selectas liceais, em alfarrábios...e nada! E quem teria dito “É uma cidade
soturna e desencorajante. Certas pessoas deviam entrar directamente do hall
para o páteo e nunca lhes deveria ser franqueada a sala” ?
Por mim sou um homem confiante – tornou
Cibaljet entre duas mastigadelas – Ainda não perdi a esperança de conseguir
lembrar-me de quem foi que disse “A vida é um mistério e não um delírio”.
Barre
pousou o copo. “Sabe - soprou de mansinho – quando era garoto um parente meu
dizia que a memória atraiçoa frequentemente os que comem muito queijo...
E
talvez seja verdade... – disse Cibaljet servindo-se de outra generosa porção do
Brie que restava na tábua – Será um caso de sabedoria popular...
Mas
nenhum deles sorriu.”
***
“Meu
caro Barre: ontem, na rua do Tivoli, encontrei um alquimista. Não se ria, essa
qualidade existe. Acontece que por uma subtil concatenação de factos esse homem
é meu vizinho e tive oportunidade de lhe prestar um pequeno obséquio que o
dispôs a meu favor. É um indivíduo inteligente e desembaraçado, com um vago ar
de distância indefinível que, contudo, não o apouca.
Após
vários anos de contacto fortuito, eis que confiou em mim. Contou-me uma
história surpreendente.
Como
não saberá, mas aqui fica a revelação, os adeptos que atingem a iluminação não
precisam daí em diante de comer ou beber e consequentemente de eliminar os
resíduos líquidos ou sólidos. Habitando vinte anos atrás um solar isolado das
redondezas, entregou-se a uma curiosa actividade: esteve 4 meses sem sair do
seu quarto, imóvel numa poltrona e lendo incessante e interessadamente as obras
de Vítor Hugo. Entre um e outro livro, dormia a sono solto para se distrair com
os sonhos. Depois, recomeçava.
Os músculos não se atrofiavam pois as células
corporais, nessas pessoas, mantêm a elasticidade. Quando chegava ao fim dos
tomos, reflectia sobre as qualidades e defeitos da Obra do mestre. Adquiriu
assim a certeza de que a leitura roda no espírito humano como um planeta o faz
à volta do Sol.
Vai dentro em breve recomeçar o mesmo
périplo, desta vez com as obras de Balzac. Para isso isolar-se-á numa vivenda
que descobriu nos arredores do Languedoc, no cimo duma colina e no meio de um
bosque fora dos circuitos de quem quer que seja. Estará nisto, segundo prevê, 8
meses seguidos. Depois, será a vez de Homero, de Dante, de Borges, de John
O'Hara, de outros mais. Dará aí para coisa de 4 anos. No entanto, desta vez
acompanhará as leituras com intervalos durante os quais, cozinheiro emérito em
que se tornou por gosto e sensibilidade gastronómica, preparará pratos
sumamente apetitosos conforme a sua disposição do momento.
Disse-me que um dia, em meio às suas leituras
futuras, já os homens terão chegado a um planeta habitado fora do nosso sistema
solar. Sairá então, com o intuito de renunciar à leitura dos clássicos e
votar-se a passeios incessantes durante os quais ordenará na sua cabeça todas
as páginas que leu.
A
solidão não o assusta. A única coisa que parece preocupá-lo um pouco é que,
entrementes, uma catástrofe nuclear aniquile a nossa velha Terra. Eu disse-lhe
que deveria começar a pensar em manobrar de forma a que os governos que se
interessam pela aquisição atómica não tivessem esse ensejo.
Uma vez que dispõe de incomensuráveis
possibilidades, já de tempo já de sabedoria, isso ser-lhe-á possível a meu ver.
Ele olhou-me fixamente durante uns segundos e
depois respondeu: “Saiba que mesmo a nós é extremamente difícil inflectir a
loucura dos homens. Já outros antes de mim o souberam. Confiemos antes nas leis
do acaso”.
Despedimo-nos à porta do edifício que ambos
habitamos, em andares diferentes.
Agora estou sentado a ouvir uns trechos de Brahms,
enquanto lhe escrevo. Jantei costeletas
grelhadas com um fiozinho de molho inglês para acertar a preparação. Sinto,
contudo, uma leve inquietação que não consigo definir se vem da conversa ou do
leve zumbido que algures soa vindo do apartamento do lado, onde reside aquela
morena de que não sei se já lhe falei.
Até que nos encontremos.
Cibaljet”
***
“De
cada vez que ouço Stravinsky ou leio Maupassant sinto sempre que alguém foi
demasiado longe. Há autores que nos deslumbram e outros que nos sufocam. E o
mais grave é que ambas as coisas podem ser suplementares. Nunca consegui ler mais do que três contos de
Maupassant de uma vez só. E nunca consegui ouvir Stravinsky durante um inteiro
quarto de hora. O pássaro de fogo põe-me todo a tremer. Tal como sucede com O
colar de Maupassant. A meu ver existe algures, perdida no meio dos séculos e
das coisas, dos acontecimentos e das descobertas, uma lógica inquietante que
ainda não foi avaliada. Algo para além das frases e dos sons. Tem-se a
impressão que certos autores tocaram com o dedo nu o mistério da espécie... -
regougou Barre em voz cava
Junto
da janela, Cibaljet olhava atentamente para fora. Traçava, distraidamente,
figurinhas no vidro embaciado com a mão direita, enquanto a esquerda levava aos
lábios, intermitentemente, o charuto já meio fumado.
Vem
aí uma forte pancada de chuva... - disse enquanto se virava e apanhava o cálice
de “Napoléon” da mesinha de mogno envernizado - O céu está negro ali para
Norte...Vai ser de escachar!
Barre inclinou-se e, duma pequena taça de
cerâmica com arabescos, tirou uma boa porção de amêndoas torradas.
Gosto
da chuva quando cai numa tarde assim de princípios de primavera, como esta –
afirmou com um leve suspiro.”
***
“Lacordaire ultrapassa em muito a sua própria
lenda. Nisso está nos antípodas de Stevenson, cuja lenda é do tamanho da sua
vida vivida. Não é fantasia e sim realidade o facto de que escreveu “O médico e
o monstro” de rajada, horas depois de ter tido um sonho onde lhe foi oferecida
a imorredoira história. - E, dizendo isto, Barre estugou o passo ao longo da
álea que bordejava o canteiro de flores diversas e multicoloridas.
Sim, mas só até à segunda transformação. Daí
em diante teve ele de inventar – retorquiu Cibaljet com um leve sorriso
enquanto, tomando Barre pelo braço, o encaminhava na direcção da pérgola um
pouco mais adiante.”
***
“Caro Cibaljet: Contaram-me ontem que Marcel
Proust deixou algures, de acordo com um dos seus melhores exegetas, dois livros
inéditos. A meu ver trata-se de não mais que um boato vago, talvez incrementado
por um editor voraz e arteiro com o intuito de despertar uma nova curiosidade
pelas obras já existentes. Mas e se fôr verdade? Que novas visões isso
despertará, não acha? Críticos, leitores, simples observadores, andarão à
porfia durante sei lá que tempo em roda da obra do aristocrata mais socialista
de França. E já me revelaram que se trata de um diário e de cartas
confidenciais. Que bico de obra, que
bela jornada para duas ou três épocas!
Gostaria de ouvir a sua opinião. Até domingo
próximo e os meus respeitos à senhora sua Mãe.
Barre”
***
“Meu caro Barre: A meu aviso trata-se de um
boato, desses que surgem ciclicamente na nossa sociedade hiper-literária. Ou,
melhor dizendo, sofisticada pelos piores motivos. Mas sempre lhe digo que, a
ser verdade, teria importancia apenas nas vendas e nos fins-de-mês das
livrarias. E daria durante um lustro pano para mangas aos batalhões académicos
da especialidade, mas nada mais. Quando um autor está morto, fisicamente morto
e várias décadas passaram sobre a sua desaparição da cena, transforma-se em
História com todas as consequencias que se conhecem. Nada mais modifica, quando
muito suscita um arrepio intelectual e algumas paixões de segunda ordem.
Assim,
se por exemplo um autor, trinta anos passados sobre o seu último livro, anunciar
que vai publicar um tomo de inéditos que lhe haviam escapado, arriscar-se-á a
passar por velho relho à guisa de plagiador da sua própria obra.Tanto mais que,
entretanto, apareceram novos ritmos, novas maneiras de indagar os séculos e o
século, um novo olhar sobre a escrita.
Infelizmente e creio que digo bem, a
literatura é um pouco como as bananas, que devem ser consumidas na hora. A
novidade, tanto quanto me parece, advém-lhe sempre de novos relances, de
leitores sucessivos, não de descobertas materiais.
Seja
como fôr, a ser verdade, creia que estarei como um dos primeiros compradores
dessa iguaria, tanto mais que a frequentação das velhas glórias é uma das
características de que não abdico. E, além disso, qualquer página de Proust é
no fundo como se tivesse sido escrita mesmo agora, o que contradiz
absolutamente tudo o que lhe disse atrás.
Até
domingo, pois. E uma saudação respeitosa a seu Tio.
Cibaljet”
***
“E esta é uma das peças que me chegaram ontem – disse Barre assim que
entrou, sustendo cuidadosamente nas mãos uma peça de cerâmica de côr
esverdeada, com pequenos elementos abstractos, que Cibaljet logo se apressou a contemplar
tão-logo foi deposta sobre a toalha que cobria a mesa no centro da pequena sala
- Ainda nem sequer a coloquei junto de
outras irmãs de outras civilizações. Não é uma beleza?
Cibaljet, sem a levantar, rodou-a
cuidadosamente, quase com ternura. Olhava-a como que extasiado. Virou-se e
olhou Barre com unção.
Tão simples e no entanto tão bela! - afirmou
- Olha-se para isto e quase se ouvem os sons do passado em que esta peça foi um
elemento do dia a dia. Posso quase ver os que dela se serviam, o camponês
comendo nela o seu alimento enquanto olhava os filhos e a mulher, ou enquanto
sentado à porta de casa olhava os longes da floresta na tardinha que chegava.
Os sons dos animais que começavam a ouvir-se na noite nascente...
Neste caso – disse Barre com um trejeito,
contudo assaz delicado – temo que se engane: é um exemplar, muito bem
conservado, das taças ou tigelas, conforme queira, em que os participantes no
rito maia bebiam o sangue da vítima propiciatória que o sacerdote acabara de
degolar.”
(...)
in O quarto submerso, de Jules Morot
Trad.
nicolau saião
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