terça-feira, 27 de março de 2012

O QUE TEM DE SER TEM MUITA FORÇA




Nicolau Saião, Para que a Terra não esqueça (180x200)


Nada de estórias. O regime dos mullahs, com o seu cinismo chico-esperto, tem estado a pedi-las. Na verdade, representam um perigo para todo o mundo e não apenas para Israel. Pese à agit-prop incessante das quintas-colunas bem espalhadas pela Europa das pátrias que, não há muito tempo ainda, vociferavam nas estâncias onde gostavam de se pavonear, "Antes vermelhos que mortos".
 Os de melhor memória, ou menos velhacos, lembrar-se-ão decerto.
 De modo que é assim:  se os (não tenhamos medo das palavras) islamofascistas, pé-ante-pé, continuarem a tomar-nos a todos por parvos, na boa tradição dos seus émulos, embora ocidentais Hitler e Estaline, é necessário e imperioso serem travados - antes que num rasgo de vivacidade e porque o Allah é muito grande, escaqueirem o mundo habitável.
 O cartão para tapeçaria que vai junto, feito com a mão esquerda por causa das moscas, dedico-o aos heróicos soldados israelitas que terão como missão honrosa e honrada fazerem morder o pó ao seráfico Amadinejhad e seus capangas.
 E que a Terra não esqueça...

quinta-feira, 22 de março de 2012

DUAS INCURSÕES NO ESCURO DA NOITE E DO SOL


 Nicolau Saião, No escuro da noite e do sol

  “A mais bela artimanha do diabo é a de persuadir-nos de que não existe” – Baudelaire


INTRODUÇÃO

   Organizei este pequeno ensaio em duas entradas num período em que o meu país saía de uma grave situação que num futuro podia ter caído em algo irreversível. Um período em que sucessivos esqueletos saltam dos armários anteriormente construídos por uma administração pública liderada por aventureiros políticos que visou – percebemo-lo agora claramente – estabelecer um ambiente autoritário/cleptocrático de tipo peculiar, ainda que não original e que George Orwell aflorou, embora com recorrências imaginativas, numa das suas encenações literárias.
   Eu poderia dizer, parafraseando ironicamente Georges Arnaud, o famoso autor de O salário do medo, que “Esta sociedade, por exemplo, não existe. Eu sei-o, vivi lá!”.
   Como na obra de Samuel Beckett, Malone está a morrer, é referido a dada altura, “O que interessa é só prestar atenção aos sobressaltos”. Ou, para citarmos Jules Morot no seu O espírito do bem, “A casa/ou da vida ou da morte/ costuma sempre ficar um bocadinho mais ao lado”.
   Por outras palavras menos simbólicas, mais chãs e terra a terra: se estamos vivos já nem sequer é por acaso, como assinalava algures Jean Rostand, mas sim porque os senhores do mundo nos consentem, por altamente lhes convir, que existamos em todos os pontos cardeais… E o resto é conversa.
   As 2 análises seguintes, ainda que se refiram a livros diferentes de autores de diferentes origens, apontam para algo que lhes é comum e que, a meu ver, explica um específico universo conceptual e societário em que hoje existimos nesta parte do mundo - a violência camuflada da parte de sectores privados, a “suave brutalidade” de cunho estatal e, por último, o que num geral mundial se apresenta inquietantemente às consciências: o relativo desconhecimento da insídia e dos manejos nefandos de seres criadores/dependentes de um mundo pervertido pela desrazão que subscrevem.
   Não é por acaso que todos eles têm por cenário ou invólucro a escrita e as suas diversas faces do eventual conhecimento, de potencial acesso à sabedoria (ou a sua negação absoluta) e as armadilhas e perversões que eles podem possibilitar ou esconder.
   Dito isto, comecemos. 


1.      SOBRE “VERSÃO ORIGINAL”

ENTRE OS FUMOS DO AMOR E DA MORTE DE BILL BALLINGER


     “Obrigam-nos a engraxar sapatos e depois alegam que só servem para engraxadores” – Langston Hughes

   Chega-se ao fim desta novela discretamente temerosa, uma das mais belas e perturbadoras da literatura de mistério, com uma sensação de perda e de amargura. De relativa surpresa, que contudo possui uma indicação norteadora.
   Nesta tragédia poderosamente encenada e magnificamente urdida na sua progressão enquanto matéria escrita, o acento tónico recai sobre a questão das realidades e dos enganos que estas podem ter em si, uma vez que não é dado ao Homem saber o que está além do que se toma por verdadeiro e afinal contém todo um universo de falsos indícios, de falsas indicações, de desconhecimento dos sentimentos que realmente forjam as relações entre os seres. E que num outro contexto tudo teriam de criativo e de salubre ultrapassando a fábula dos desencontros.
   “Se abro o bico sem ser com um tipo fixe, estou liquidado. E, além disso, quem acreditaria em mim?”, pergunta-se o protagonista logo na abertura desta ópera de dois tons em que o discurso pessoal é contrapontado no itálico dos capítulos que explicitam o que, para além dele, vai sucedendo no quotidiano que o ultrapassa. “A coisa não faz sentido. Não faz mesmo nenhum sentido. Tenho pensado no assunto vezes sem conta, debatido a coisa comigo mesmo. E no fim só consigo obter vagas imagens” – continua Dan April (Abril, significativo nome de mês) a questionar-se numa tentativa de entender os acontecimentos que o rodearam e que se transformaram num “retrato de fumo” (o título original é esse) iniciado numa noite do Illinois, nessa Chicago enevoada ou ardente de sol, “quente e preguiçosa”, essa cidade também brumosa devastada anos atrás por um incêndio que a História registou.
    Mas a breve trecho o leitor suspeita, e acaba por concluir devido ao seu estatuto, que a coisa de facto faz sentido, ou melhor: que há um sentido singular, ainda que temível, oculto nesta novela que por seu turno, ao contrário de outras que analisámos, resulta dos próprios limites do conhecimento ou se debruça, digamo-lo desta maneira, sobre o que se pensa saber.
   É por assim dizer, simbolicamente, uma representação desse labirinto ou desse fumo sulfuroso que se depara ao ”laborator per ignem” numa fase em que este caminha para a Segunda Obra e em cujos meandros tem de enfrentar as figuras enganadoras ou sinistras dos dragões velhos cuspindo lava ou lamas mefíticas.
    “Krassy Almauniski abriu os olhos e distendeu-se na cama. Ficou quieta uns momentos antes de se espreguiçar de novo. – Dezassete de Março…Dia de São Patrick – disse para si mesma com satisfação – o dia dos meus anos! – Saltou da cama e caminhou sobre o soalho nu até junto dum pequeno espelho que estava suspenso de um fio passado num gancho pregado à parede. Desabotoou a camisa de seda de homem, passajada, que lhe chegava até quase aos pés e despiu-a.
 - A partir de hoje – disse para si mesma – as coisas vão modificar-se”.
  Por representação, enquanto Dan é a parte de sonho Krassy é a parte de realidade prática que a novela vai explicitar enquanto progride.
   Citemos para melhor compreensão, sem irmos demasiado longe – o que retiraria ao leitor a surpresa da sequência do relato – o texto de apresentação inserido na contracapa: “Ao percorrer os arquivos da Agência de Cobranças que comprara no dia anterior, Danny April encontrou o retrato de uma rapariga.
   Mas ele conhecera aquela rapariga… dez anos antes… Que seria feito dela?
   A ideia de a ver novamente tornou-se uma obsessão… Finalmente encontra-lhe a pista. Mas essa pista onde o conduz? À rapariga de outrora, que ele sonhava meiga e delicada, ou a uma criminosa que, à custa dos mais pérfidos ardis, subira, partindo do nada, até à mais elevada situação financeira e social?
   A acção passa-se em Chicago, a cidade dos mil contrastes, e decorre durante e após a 2ª guerra mundial”.
   Deste núcleo, à volta dessa busca que o protagonista enceta com esperança e a pouco e pouco se transforma em encontro e, depois, em desespero, o autor pinta-nos um fresco sugestivo de situações, de personagens e de imagens que nos subjugam através da progressão do relato.
   Nem sempre o que parece é ou, de forma ainda mais cruel (o que é constitui a verdadeira face do drama mas noutro espaço e num outro tempo, daí o itálico em que esses capítulos estão vazados) Dan April é a figuração clara do mal-amado, do indivíduo cuja existência nunca poderia, num mundo cuja hostilidade a todo o momento se manifesta a despeito das aparências, ir dar aos lugares de felicidade que se lhe antolhava merecer.
    Neste relato, ao contrário do que sucede noutras novelas policiais, não é o autor que funciona como “deus ex machina” mas sim o leitor – que assiste a tudo sem nada no entanto poder fazer. O enigma não se apresenta ante o leitor mas ante a personagem masculina, limitada pelos sentimentos que a envolvem.
    Personagem trágica, tem sem que o suspeite, do outro lado, outra trágica personagem que se desconhece enquanto tal, que não pôde ou não soube guindar-se a um patamar de salutar formulação. Por outras palavras: Danny, ser vencido de antemão, conserva contudo a pureza dos que se lançam na vida com toda a carga de boa-fé, de decência pessoal e de lealdade que confere humanidade à existência, numa mistura de coração e de razão que frequentemente acaba mal. A razão de Krassy é contudo outra e é essa razão, estranhamente – porque não caldeada pelo coração - que irá provavelmente (digamo-lo desta forma) destruir a ambos ainda que por vias dissemelhantes.
    Fábula dos desencontros? Mais lhe chamaria fábula sobre a impossibilidade de, num determinado contexto, a matéria se unir ao espírito – usando esta metáfora dos antigos alquimistas. O que é, na verdade, como os nossos tempos mostram à saciedade e esta novela confere com aprumo, arte e evidente desembaraço, muito mais vulgar do que as diversas moralidades procuram estabelecer ou escamotear…
   
  
2.      A PROPÓSITO DE EXTERMÍNIO NO 31º ANDAR

A AURORA BOREAL DE PER WAHLOO

“Porque vos ensinam eles a amá-los, se é para vos tratar assim? Porque não vos deixam eles em paz?” – William Irish

“O homem é perecível; pode ser. Mas pereçamos resistindo – e se ao fim o que nos reservam é o vazio e o nada, façamos com que isso seja uma injustiça” – Étienne de Senancour

     Há livros assustadores. Uns pelo espírito, como por exemplo o Lázaro, de Andreiev, que nos coloca de chofre e sem complacências em frente do facto de que uma vida de ressuscitado seria, afinal, tão angustiante e repugnante como a degustação de uma refeição apodrecida. Outros, pela letra, como o Drácula, de Bram Stoker, sobre o qual já se disse que só um leitor completamente destituído de sensibilidade conseguirá ler numa casa deserta e pelas horas mortas da noite.
   Outros, por seu turno – e é o caso desta “utopia negra” vazada nas luzes boreais que conformam as sociedades escandinavas – porque o que neles se encena está a acontecer paulatinamente. E não só naqueles rincões.
   O caso sucedido tempos atrás na politicamente correcta Noruega, onde os monstros particulares são produto de uma administração cuja tenaz cegueira é a prova do seu cinismo suave e perito em enterrar a cabeça na neve (e já não, como os avestruzes, na areia do deserto) para sagração de um oportunismo que finge supor que os cidadãos são um resíduo angélico para que se não vejam as partes demoníacas do seu poder governativo, mostra-o sem véus e sem disfarces.
    Nesta obra de entrecho quase linear, duma secura de estilo necessária para que a sugestão resulte, Per Wahloo (que com sua mulher Maj Sjowal deu na época a lume um belo punhado de polars bem inseridos no género, mas com um timbre de novidade que os distinguiu) segue passo a passo os sete dias duma investigação que um inspector da polícia efectua para que naquela sociedade pacífica e onde o Estado mais ou menos cordial procura que o cidadão viva sem traumas (e onde o único crime significativo e punido aliás sem muita violência expressa é a embriaguez, que entretanto se multiplica) tudo continue a ser sereno.
   Nesta sociedade o controle é exercido pela leitura: leitura de revistas e de jornais com visão positiva, onde o próprio fenómeno desportivo (fautor de paixões e frequentemente de conflitos) não recebe muita atenção a não ser a que possibilita que se possa epigrafar televisivamente o sucesso das vedetas que o integram.
   O consórcio que o domina é constituído por gente esclarecida e de “boa formação” partidária e propugnadora de uma igualdade social estabelecida de maneira amena e que até quando despede dos empregos o faz cordatamente: o indivíduo ou indivídua em causa recebe uma reforma razoável e um diploma por bons serviços, assinado por altas individualidades. E o além está muito longe…mesmo quando ao virar da esquina.
    Mas há sempre alguém que, com impetuosidade maldosa, “sem olhar à felicidade social a que se conseguiu chegar” (sic), resolve meter um pauzinho na engrenagem. Por puro sadismo (como se diz neste ocidente cristão, civilizado e culto) ou por maldoso anarquismo (como há dias disse publicamente um comandante da polícia metropolitana inglesa, que ao mesmo tempo solicitou aos cidadãos britânicos que, e cito, denunciassem os vizinhos que soubessem que perfilhavam ideias anarquistas – o que quer que isto seja…)? Ou, ainda, por impiedade, como se diz naqueles países do oriente que têm a dita de existir em teocracias?
    Alguém, portanto, usando precisamente uma folha anexa não preenchida dum desses diplomas, (uma vez que o papel é pacificamente controlado), endereçou às autoridades uma carta inquietante, sugerindo que inquietantes acontecimentos iriam dar-se. E embora as forças vivas tenham essa carta por eventual simples brincadeira, tal como uma outra insistência significante, nunca fiando – a própria brincadeira indicaria já um escabroso, quiçá injusto, desvio e Jensen - polícia compenetrado e eficiente sofrendo no entanto de um doloroso e crónico desarranjo gástrico que nem a comida cientificamente confecionada e posta à disposição dos cidadãos pelo ministério da saúde que tem a seu cargo as dietas racionais consegue tranquilizar – mergulha num universo de entrevistas e de encontros que pouco a pouco lhe patenteia os meandros do jornalismo, se jornalismo se lhe pode chamar, e da criação escrita quando a criação escrita é apenas um simulacro que ora leva ao suicídio dissimulado (ou assistido) ora à entrega a um ambiente de mundanidade, de sucesso e de notoriedade bastante semelhantes ao que usa utilizar-se nesta Europa das pátrias e, suspeito-o com alguns tremores relativos, nas sociedades alfabetizadas de outros continentes…
   Homem sério e bom profissional, ético tanto quanto as circunstâncias peculiares o permitem, nesta viagem iniciática de uma semana nem sequer negra em que a desesperança do protagonista é irmã colaça da desesperança sentida pelo leitor enquanto mergulha na naturalidade do relato, a regra da “detective novel” é subvertida, ou melhor: invertida. Os chefes que o comandam preferiam não saber e a demanda de Jensen dirige-se não à descoberta mas à ocultação. Nas sociedades racionalmente policiadas, como por exemplo a sociedade lusa, o polícia, (que funciona como Némesis justiceiro) age preferencialmente como aquele que camufla o enigma ou, dizendo ainda mais esclarecedoramente, faz com que o enigma seja uma camuflagem que garante ou sustenta o “equilíbrio” entre as classes, para que a paz e o progresso coabitem salutar e airosamente…
    No entanto, nem nestas mansões quase celestiais as coisas são como deviam ser (ou se esperava que fossem).
   Dizia António Maria Lisboa, numa frase bem respigada por Cesariny, que “Todo o acto premeditado ou todo o acto leviano tem a sua guilhotina própria”.
    A mim sempre me pareceu que ele tinha razão ao cunhar este conceito. E, se o pudesse ter lido, creio que Jensen – e muito mais os seus chefes – teriam dolorosamente entendido a verdade que assistia ao infausto poeta surrealista lusitano.
   À sua deles própria custa – mas isso seria já uma outra estória…  


quarta-feira, 21 de março de 2012

PRIMAVERA ÁRABE OU INVERNO ISLÂMICO?

(imagem recolhida aqui)

                Perguntaram certa vez a um líder chinês contemporâneo a sua opinião sobre a Revolução Francesa. Ele respondeu que não poderia responder, porque o fato era muito recente. A chamada “primavera árabe” é tão recente que sequer terminou de começar. Na Síria ainda se luta para derrubar a ditadura, o Bahrein segue sob lei marcial, na Líbia as milícias não foram desarmadas. No entanto, algumas respostas já podem ser dadas.
               
               Mesmo porque, algumas independem dos fatos, pois dependem somente das expectativas. A começar do próprio nome geral dos eventos. Se, de um lado, aqui a “primavera” evoca, em termos gerais, o fim do “inverno” político das ditaduras, por outro também evoca um acontecimento histórico particular: o fim do império soviético e a “primavera democrática” que semeou a flor da liberdade política (horrível, mas pertinente) nos países do Leste Europeu, na última década do século XX. Na verdade, esta conotação é a mais relevante, pois o fim em si de uma ditadura não garante o que irá substituí-la. No Irã, por exemplo, a ditadura ocidentalizante do xá foi substituída, depois de uma revolução popular, pela ditadura teocrática dos aiatolás. Portanto, a “primavera árabe”, mais do que a constatação da queda das ditaduras, é a manifestação da expectativa de que elas sejam substituídas por democracias. Neste sentido, não apenas nada é recente demais para ser compreendido, como se pode mesmo prever o futuro.
               
              Não há como o resultado das revoltas árabes ser o florescimento democrático. Porque este não se dá em função de expectativas, mas de fatos, ou seja, de condições necessárias. Enterrar uma pequena pedra e esperar que dali nasça uma flor não é uma expectativa razoável. E expectativas não-razoáveis, por definição, não podem ser realizadas. Plantas só podem nascer de sementes, e de solos férteis e bem regados. Nenhuma dessas condições existe no caótico jardim atual da política árabe.
                
              É verdade que algumas plantas se desenvolvem por enxertia. A democracia, porém, não é desse tipo. Fosse assim, poderia ser facilmente transplantada para terrenos em que jamais vicejou, o que não acontece. E plantas em que a enxertia não funciona só podem mesmo nascer de sementes – mais ainda, da vitalidade de uma semente capaz de lançar raízes antes de florescer.

Se a “semente” da democracia é uma ideia, ou seja, a ideia da soberania popular, do poder do povo e de seus representantes soberanamente indicados, suas raízes são a sociedade civil, e seu terreno, a liberdade econômica, a liberdade de organização e a liberdade de expressão. Estas três liberdades civis fundamentais, no sentido duro da palavra, ou seja, que fundamentam a prática da democracia, podem ser criadas literalmente por decreto, isto é, por leis. Porém não podem ser praticadas por decreto.

Uma das explicações – se mitos carecem de explicações – para os quarenta anos que Moisés demorou para levar o povo judeu através dos poucos quilômetros do Sinai, é que ele o fez de propósito. E seu propósito era deixar que todos os nascidos no cativeiro egípcio morressem, e que todos os recém-chegados ao novo país não tivessem sido escravos. Porque não se constrói um novo país com escravos. De modo semelhante, não se constrói uma democracia sem uma sociedade civil.

Uma sociedade civil vicejante pode, em certas circunstâncias históricas, ser posta sob uma ditadura, como aconteceu no Chile em 1973, ou na França em 1941, com a invasão alemã. Mas o contrário não é verdadeiro: uma população em que a sociedade civil não existe não pode criar a democracia. A prova maior são os próprios países árabes.

A pergunta mais importante sobre a “primavera árabe” é por que ela foi necessária. E a resposta não se limita à luta contra a ditadura. Em países onde a ditadura sufocou a sociedade civil e a democracia, o fim da ditadura foi o retorno à democracia – a própria instalação da ditadura fora motivada pela necessidade de alguns grupos políticos de extinguir a democracia para impor seu programa político. Não é o caso árabe. Os países árabes não têm qualquer forma de democracia em sua história, passando da submissão ao Império Otomano à tutela das potências europeias às ditaduras contemporâneas. Daí, em parte, jamais terem desenvolvido uma sociedade civil – que pressupõe uma sociedade com algum grau de autonomia em relação aos soberanos, da qual a democracia será a máxima expressão política.

A outra parte da explicação é sociocultural. As sociedades árabes não conheceram, como o Ocidente, o desenvolvimento do Estado nacional moderno, para lá tardiamente transplantado pelos poderes coloniais europeus. A organização sociopolítica histórica árabe é a tribal. Apesar de ter havido reinos árabes antes de sua incorporação ao Império Otomano, as relações políticas eram de vassalo e senhor, entre o governante central e os chefes tribais, enquanto a totalidade da população se constituía, em termos político-jurídicos, de servos, pois faltos de verdadeiros poderes políticos, sem qualquer autonomia ou representatividade. Além disso, o patriarcalismo puro e duro impunha às mulheres a condição de servos de servos, numa intensidade sem paralelo no Ocidente. Sem uma sociedade nacional, ou transtribal, e sem alguma autonomia e representatividade política centrada nos indivíduos, possibilitando que se tornem verdadeiros agentes políticos, não existe sociedade civil. Os países árabes ainda não chegaram a esse estágio.

Desenvolvida a sociedade civil, a construção da democracia pressupõe um enfraquecimento do poder do Estado absolutista, na exata medida em que aumenta a soberania popular, manifestada nas liberdades civis, para não falar na tradução prática dessas liberdades civis em organizações civis e políticas minimamente representativas. Todo esse processo, historicamente, precede a criação da democracia formal.

O caso mais claro e mais clássico é o inglês, em que a democracia não nasceu de nenhuma revolução, mas sim de um lento processo histórico de transferência de poder do rei, primeiro para a nobreza, depois para a burguesia, e por fim para as classes médias e trabalhadoras. A burguesia e as classes médias, assim como as determinantes liberdades civis, existiam antes da democracia formal, que foi sua consequência, e não contrário.

                Por que, afinal, povos em que o tribalismo e o patriarcalismo islâmico ainda são as forças socioculturais mais evidentes construiriam de repente e do nada uma democracia nacional que mereça o nome? Por que a ditadura se exauriu como opção aceitável? O caso iraniano, persa/xiita, prova o contrário: ainda resta testar a teocracia sunita nos países árabes. Pois “a ditadura”, na verdade, não é singular, e sim plural. Há muitas formas de ditadura. Portanto a ditadura, que no singular sequer existe, não está exaurida. Rejeitar uma ditadura não é causa ou mecanismo suficiente para construir uma democracia.

                Por má-fé ou por ignorância, fala-se muito, hoje, no “modelo turco”, como “prova” de que islã e democracia não são água e óleo, de que democracia e islã são compatíveis, e de há afinal um “caminho islâmico” para a democracia. Bem, se a Turquia é a melhor prova disso, ainda falta uma prova boa o bastante. Em primeiro lugar, a Turquia não é árabe. A relevância disso está no fato de o povo turco ser, em si mesmo, uma única e grande tribo, a dos turcos otomanos. Portanto, inexiste o problema do tribalismo. Em segundo lugar, a Turquia era o centro do Império Otomano, portanto, a existência de um Estado centralizado não lhe é estranha. Em terceiro lugar, o próprio Estado turco, através do exército, sob a liderança do coronel Kemal Mustafá, o “Ataturk” (“Pai dos Turcos”), impôs uma radical e brutal desislamização do país a partir dos anos 1920, mantendo depois, ao longo de todo o século XX, o papel de guardião da secularidade do Estado. A recente chegada ao poder de um partido islamita, sob o comando do atual líder turco, Recep Erdogan, prova portanto o contrário do que se pretende: apesar da desislamização promovida pelo exército no início do século XX, e apesar de sua agressiva tutela secularista ao longo de quase um século (incluindo golpes militares quando partidos islâmicos se aproximaram do poder), a Turquia se vê ainda hoje ameaçada pela reislamização. A Turquia é, na verdade, a prova cabal das dificuldades aparentemente instransponíveis de fazer de um país muçulmano um Estado democrático.

                O Egito acaba de encerrar suas primeiras eleições legislativas da era-pós Mubarak. Nada menos do que 75% do novo Parlamento ficaram nas mãos de dois grupos islâmicos, a historicamente infame Irmandade Muçulmana, e o não menos infame grupo salafista egípcio, para o qual a Irmandade não é islâmica o bastante... Algo semelhante aconteceu na Tunísia, primeiro país onde a “primavera árabe” desabrochou, e no Marrocos, apesar da tutela anti-islamita do rei. Esses resultados, porém, não foram tão alardeados pela mídia quanto o súbito e momentoso florescer da “primavera árabe”. Infelizmente, talvez não seja possível postergar por muito tempo a constatação de que essa efêmera “primavera árabe”, na verdade, não passou do início de um longo, escuro e frio inverno islâmico.

(Este artigo foi escrito em cima do encerramento dessas eleições, para ser publicado neste blogue)

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