domingo, 28 de abril de 2013

PORQUE VIRARAM À DIREITA – E PARA QUAL DIREITA (PARTE III)



Nota introdutória
 
Nesta terceira e última parte de minha análise do livro Por que virei à direita, afasto-me da discussão de seu tema central, a defesa do liberalismo e da sociedade aberta contra as utopias rousseaunianas de esquerda e seu “liberticídio”, para esboçar por que esta discussão, apesar de sua importância e persistente atualidade (infelizmente), pede hoje uma ampliação de foco ou de abrangência, incluindo a hipótese radical do "decrescimento econômico".

1. O conservadorismo é um humanismo – logo, não basta

Capitalismo é produtivismo e consumismo. Dadas a inelasticidade física do meio ambiente terrestre e a elasticidade histórica da população humana e da produção capitalista, que na verdade é consumo, nas duas pontas (consumo dos produtos gerados, mas também da energia e dos insumos geradores), o capitalismo é, no limite, insustentável. Como a esquerda fracassou em sua crítica e a direita é inapetente a ela, resta, ou restaria, o ambientalismo. Este, porém, é incapaz, se não de fazer a crítica radical do capitalismo, ou seja, do consumismo, de levar tal crítica à sua consequência lógica, a concepção de um sistema socioeconômico alternativo. Porque isto implicaria em um sistema político que o implementasse. Aqui a diferença fundamental entre esquerdismo e ambientalismo se explicita: o esquerdismo, a partir do rousseaunismo, tem o homem, a história humana, a sociedade como foco e razão de ser. Já o ambientalismo tem um foco e uma razão diferentes, além de maiores ou mais abrangentes: a humanidade mais o meio ambiente terrestre. O esquerdismo é um humanismo. O conservadorismo, outro. Face aos conhecimentos contemporâneos, todo humanismo é insuficiente.

Se o esquerdismo é mudancista, ou seja, pretende mudar a sociedade para se adequar a certo ideal da condição humana, o ambientalismo é mudancista porque antimudancista, ou conservador. É surpreendente como não se costuma notar serem os termos conservador e conservacionista, originalmente, sinônimos. A diferença nos usos dos dois termos se dá em função dos objetos de conservação: os conservadores se preocupam em conservar a sociedade, os conservacionistas se ocupam em preservar o meio ambiente. Enquanto a história determinou o fracasso do pensamento de esquerda, essa diferença de foco entre os conservadores e os conservacionistas evidencia certa insuficiência do pensamento de direita. “After such knowledge, what forgiveness?”, como diria Eliot.

O conservadorismo político é hoje insuficiente porque, à semelhança do esquerdismo, mantém certa obsessão “humanista” que é, na verdade, uma forma de antropocentrismo. Luiz Felipe Pondé é, neste sentido, um caso limite e exemplar (daí a possível pertinência de se deter sobre ele): seu pensamento navega e naufraga numa insistência monótona, cansativa e algo fanática em “pensar sobre o homem”. Na prática, em denunciar como a modernidade é enganosa ao haver pretendido “solucionar o humano”: “O que caracteriza a modernidade é a utopia de que a gente vai organizar a agonia. Não resolve. O ser humano é agonia. O ser humano não é alguma coisa que tenha solução”.
[i] De fato, não tem. Não, porém, como acredita Pondé, porque “a natureza humana [...] sempre subentende um certo mistério” (a “natureza humana” e apenas ela, obviamente...).[ii] Mas sim porque se trata de um falso problema, ou de um falseamento do problema.

Sendo apenas uma espécie, ou seja, um ponto em duas redes imensuráveis, uma estendida no tempo, o continuum da história da vida, outra estendida no espaço, o continuum da biosfera, o ser humano pouco importa, no sentido de que importa pouco, ou seja, não detém informação importante, isto é, suficiente, que dirá determinante. Frise-se que não quero com isso dizer que se trata de falta de informação por parte do ser humano, mas sim que toda informação possível sobre o ser humano é insuficiente para sequer começar a compreender ou descrever o ser humano (que dirá uma realidade maior ou mais abrangente), na medida em que este não apenas não existe no vácuo como não existe por si – ou em si. E aqui não me refiro a qualquer “dimensão espiritual” ou “transcendência”, mas à biologia (apenas para citar um exemplo, nosso DNA incorpora vírus antigos que já tinham sido incorporados por espécies de que descendemos, para não falar do fato de que há mais bactérias mutualistas em nosso corpos do que células humanas; a lista poderia se estender enormemente).

O atraso de certo pensamento conservador, de que Pondé é hoje o representante brasileiro mais notório, revela-se, afinal, profundo. Pois além de pretender “pensar o ser humano”, como se ainda suficiente, insiste em que o caminho para fazê-lo passa pela religião, pela crença em Deus ou coisa parecida, como se ainda nos tempos da escolástica. Se ao lado dessa velha “espiritualidade”, que não passa da forma mais radical de narcisismo humanista (apenas humanos têm alma; Adão foi criado à imagem e semelhança de Deus; etc.), ainda houvesse espaço para um pensamento ambientalmente informado, abrangente ou includente, ela seria apenas ociosa, e afinal irrelevante. Em um conservador obscurantista como Pondé, porém, a crença em Deus serve como importante reforço do narcisismo humanista, do tardoantropocentrismo, ou seja, da ignorância orgulhosa.

2. Uma oligarquia catastrófica [iii]


Com o colapso da URSS e o fim do “socialismo real”, o refluxo perplexo da crítica ao sistema capitalista foi seguido pela desorientação generalizada da esquerda mundial. A crítica ao sistema tomaria então, a partir dos anos 1990, dois rumos principais: o primeiro, que atacava não mais o sistema em si, porém sua face mais evidente, a globalização, expresso no movimento conhecido como altermundialismo e centrado nos Fóruns Sociais, com seu slogan “Outro mundo é possível” – sem que tenha sido possível descrever esse mundo; o segundo, mais pragmático e pontual, centrado na questão ambiental, denunciando extinções, desmatamentos e poluições, sugerindo dimuição de emissões, reciclagem e o uso de energia limpa, e afinal ganhando densidade na questão do aquecimento global – porém na situação paradoxal de ver tudo encampado pelos governos, o que afinal resultou em cúpulas internacionais e impasses idem. O que fazer, afinal, se o sistema alternativo morreu (felizmente), e se o sistema sobrevivente pode levar diretamente à catástrofe?

A maior parte da superfície do globo será transformada em deserto. Os sobreviventes se agruparão em torno do Ártico. Mas não haverá lugar para todo mundo, o que gerará guerras, populações enfurecidas, senhores da guerra. Não é a Terra que está ameaçada, mas a civilização.

Quem o diz é James Lovelock, criador da conhecida hipótese Gaia. Lovelock é um cientista sério, e como tal é reconhecido por seus pares. Não é, portanto, culpa sua se a metáfora da Terra como um organismo, formulada décadas atrás, visando transmitir uma visão da clara interdependência dos sistemas biológicos quando isto ainda era uma novidade, foi depois transformada pelos “miolos moles” de plantão em “Terra viva”, versão new age da mais antiga das divindades, a Mãe Terra – que, na verdade, está mais para madrasta. Uma madrasta totalmente indiferente, incapaz de lançar uma lágrima pela morte provável de milhões de seus filhos mais ousados. Mesmo porque, estará seca.

O que fazer, então, como diria Lênin? Recomeçar do começo: pelo diagnóstico. Eis o objetivo do francês Hervé Kempf em Como os ricos destroem o planeta (São Paulo, Globo, 2010), no qual aparece a declaração de Lovelock (p. 10). Kempf era um jornalista especializado em ciência quando houve o desastre radioativo de Chernobyl, em 1986, o que o fez se tornar um ecologista radical, mas não um idiota.

A hipótese de partida de Kempf pode ser expressa em poucas palavras: a crise ambiental é ainda mais grave e, portanto, ainda mais urgente, do que se costuma reconhecer; ela não pode ser equacionada, ou seja, compreendida e muito menos resolvida, sem levar em conta sua causa central: o consumismo como ideologia, e a oligarquia mundial (sic) que o impõe, defende e sustenta.

Daí o livro denunciar, inclusive, o próprio “desenvolvimento sustentável”: “A única função real do ‘desenvolvimento sustentável’ é manter os lucros e evitar mudanças de hábito, apenas alterando um pouco o curso. Mas são justamente os lucros e os hábitos que nos impedem de mudar o curso” (p. 44).

Kempf, portanto, articula de forma direta e sintética a questão ambiental à questão sociopolíticoeconômica, apontando para a saída do impasse tanto das insuficiências ingênuas do ambientalismo como do tardoesquerdismo vazio do altermundialismo. Como o ambientalismo é manco e o altermundialismo é cego, a tarefa revela-se ainda mais difícil.

Kempf chega então à sua colocação central. E no que o livro tem de melhor. Revisitando o clássico esquecido do final do século XIX, a Teoria da classe ociosa, de Thorstein Veblen, propõe uma interpretação e uma mudança do “capitalismo de consumo” contemporâneo que faz Marx parecer quase moderado (e o “socialismo real” ser tão questionável em seu produtivismo de Estado quanto o próprio capitalismo com seu produtivismo privado). Há uma oligarquia mundial (ou “nomenklatura capitalista”) isolada socialmente e hiperconsumista materialmente, mas principalmente criadora do modelo seguido pela longa cadeia de emulações que move as classes sociais a partir do momento em que suas necessidades fundamentais estão satisfeitas (se a miséria, a falta do necessário, não se relativiza, a pobreza, a falta do desejável, é sempre relativa a algum modelo do que seja a não-pobreza; de fato, seus parâmetros mudam de país para país). Como sintetiza o título de um dos capítulos, “A classe superior define o modo de vida de sua época”. Daí seu corolário: “A oligarquia incrementa a crise ambiental”. Pois esta é, fundamental e diretamente, resultado da produção, ou seja, do uso e da transformação dos recursos naturais. Kempf advoga então uma mudança brutal de paradigma, sintetizada em outro título: “Não é preciso aumentar a produção”.

A existência de uma casta de oligarcas, de uma camada social de hiper-ricos, não é, teoricamente, um problema. Pudemos observar, no passado, que a detenção do poder caminhava junto com a apropriação de grandes riquezas. [Porém] estamos em um momento muito específico da história, o século xxi, que coloca um desafio radicalmente novo para a espécie humana: pela primeira vez desde o início de sua expansão, há mais de 1 milhão de anos, ela se defronta com os limites biosféricos de seu prodigioso dinamismo. Viver este momento significa que devemos encontrar, coletivamente, os caminhos pelos quais guiar toda essa energia de forma diferente. Trata-se de um desafio magnífico, mas difícil. Ora, essa classe dirigente predadora e ávida, desperdiçando suas sinecuras, fazendo mau uso do poder, ergue-se como um obstáculo nesses caminhos. Ela não traz consigo nenhum projeto, não é levada por nenhum ideal, não emite nenhum discurso. A aristocracia da Idade Média era uma casta exploradora, mas não apenas isso: ela sonhava em construir uma ordem transcendente, de que são testemunhas as esplendorosas catedrais góticas. A burguesia do século xix, que Marx qualificava de classe revolucionária, explorava o proletariado, mas tinha também o sentimento de estar difundindo o progresso e os ideais humanistas. As classes dirigentes da Guerra Fria eram levadas pela vontade de defender as liberdades democráticas diante de um contramodelo totalitarista. Mas hoje, depois de triunfar sobre o comunismo soviético, a ideologia capitalista não sabe fazer outra coisa que não festejar a si mesma. Todos os círculos de poder e de formação de opinião estão engolidos pelo seu pseudorrealismo, que considera impossível haver alternativas e que a única meta a ser perseguida para interferir na fatalidade da injustiça é aumentar cada vez mais a riqueza. Esse suposto realismo não é só sinistro, mas também cego. Cego diante do potencial explosivo da injustiça exposta. E cego diante do envenenamento da biosfera provocado pelo crescimento da riqueza material, envenenamento que significa a deterioração das condições da vida humana e a dilapidação das oportunidades que estarão à disposição das próximas gerações (pp. 97-8).

O desenvolvimentismo e o produtivismo são postos em cheque: pois se o título do último capítulo afirma não ser preciso aumentar a produção, seu texto argumenta que é imperativo diminuí-la. Taxas de crescimento devem ser lidas como aproximações à catástrofe, e substituídas por taxas de decrescimento.

3. Decrescimento econômico

Parece absurdo, à primeira vista. Mas apenas porque os paradigmas dominantes se transformam em ideologia, no sentido de crença política “naturalizada”. Neste caso, o crescimento indefinido da produção, sintetizado no crescimento do PIB, parece natural, entre outras coisas, porque a própria população não para de crescer. E também porque parece associado ao desenvolvimento qualitativo da civilização, evidente, por exemplo, nas conquistas tecnocientíficas, incluindo as médicas.

Começando pelo fim, tais conquistas nada têm a ver com a produção industrial. São o resultado de esforços pontuais de grupos de especialistas. Enquanto o aumento da população pode ser controlado. Isto já é verdade para a maior parte dos países ricos, em alguns dos quais a população na verdade diminui. E mesmo no Terceiro Mundo, o fim do crescimento só não é hoje maior por questões culturais. Por exemplo, entre a população muçulmana, que chega a um quinto da população mundial, com mais de 1 bilhão de indivíduos, a contracepção vai contra os princípios religiosos e as tradições sociais de grandes famílias patriarcais.

Mas talvez o maior obstáculo à aceitabilidade, antes ainda da aceitação, do contraparadigma decrescionista seja o fato de parecer apontar para a pobreza. Pois se a produção decresce, no limite, chegará a zero. Isto, porém, tampouco é verdade. Porque a parada do crescimento da produção e do consumo, e sua subsequente diminuição, devem ser acompanhadas de medidas de contenção de desperdício e de melhoria geral dos padrões de consumo, ou seja, de sua racionalização. Um artigo da presidenciável brasileira Marina Silva coloca a questão de forma clara e pontual, tratando objetivamente da problemática hidrelétrica de Belo Monte:

Estão mais do que evidentes a complexidade e os riscos envolvidos na construção da usina hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu, no Pará. [...] Vê-se o direcionamento de todos os instrumentos de políticas públicas para viabilizar um projeto estrategicamente ruim, caro e de altíssimo risco socioambiental. Enquanto isso, pouco se faz para reduzir perdas da ordem de 15% em energia no país, o equivalente a três vezes a capacidade média de Belo Monte. E o processo em curso aponta mais desperdício: Belo Monte terá uma produção energética efetiva bem menor do que sua capacidade total -4.428 mw, em função do regime hídrico do rio e da configuração do projeto, e não os 11.223 mw anunciados. Surpreendem também as condições à disposição dos interessados em comercializar a energia gerada pelo rio Xingu. Tem-se R$ 13,5 bilhões em crédito subsidiado pelo bndes, com prazo de 30 anos para pagamento, a juros de 4% ao ano. Isenção de impostos sobre os lucros, o comprometimento do capital de empresas estatais e de fundos de pensão e, de quebra, o absurdo comprometimento de licenciamento ambiental com prazo preestabelecido para a obra começar já em setembro. [...] Imaginem se todas essas condições excepcionais fossem para melhorias da eficiência do sistema elétrico e para a redução da demanda por energia.
[iv] [grifos nossos].

Na realidade, a parada do crescimento e sua diminuição ameaçam apenas a lógica do lucro atual. Sem voltar às velhas estigmatizações religioso-medievais da usura, é impossível, hoje, equacionar a questão ambiental sem chegar aos fundamentos do problema, que não é mais tão somente a poluição desse ou daquele tipo de produção ou de produto, mas a produção em si, cujo móvel primeiro é o lucro como hoje buscado e realizado. Mais exatamente, o crescimento indefinido do lucro – que não pode ser obtido sem um aumento da produção (mais ainda que o da produtividade), pois é esse aumento que gera mais produtos a partir do capital investido, ou imobilizado, produtos cuja comercialização aumentará então o retorno desse capital. Os produtos novos, impondo sua substituição, completam o quadro.

Um dos problemas centrais é o fato de que toda a atual contabilidade capitalista é falseada. Ela é falseada porque não incorpora entre seus custos os custos ambientais. Se estes são computados, e também computadas todas as ações públicas relacionadas diretamente ao consumismo, como a coleta de lixo e sua destinação, além de outras incontáveis iniciativas, como a oferta crescente de água etc., o que se constata é, de um lado, um involuntário “subsídio” pelo meio ambiente natural, e de outro, um subsídio estatal generalizado indireto de toda a atividade econômica. E como o meio ambiente natural é patrimônio comum, e como o dinheiro do Estado é dinheiro da população concentrado via impostos, a própria população subsidia parte importante dos lucros como hoje realizados. E se parte dos lucros é por ela subsidiada, essa mesma população tem o direito de questionar tal subsídio, logo, tal tipo de lucratividade.

Em termos práticos, o decrescionismo econômico, um novo pararadigma por enquanto teórico, mas que começa a emergir neste debate, propõe e pressupõe uma verdadeira “revolução cultural”, em que uma reforma radical do “capitalismo de consumo” seria criada principalmente a partir da demanda. Porém a mudança da demanda só viria da mudança de hábitos, que dependem da referida “revolução cultural”. Ao mesmo tempo, há vários exemplos de medidas práticas. Seguindo e estendendo o modelo da indústria tabagista, proibir-se-ia a publicidade e a propaganda como um todo, a partir de leis apoiadas pela população. As atividades hoje bancadas pela publicidade, como TVs abertas e jornais, seriam bancadas por assinaturas do público interessado, ou fracassariam ao não se adaptar. Reverter-se-ia a tendência da obsolescência programada dos produtos, por exemplo, taxando mais os produtos menos duráveis, e menos os mais duráveis. A taxação progressiva da renda seguiria o modelo puro e duro dos países escandinavos, com a concomitante extinção, através das instituições internacionais, de todos os paraísos fiscais. Por fim, a cultura econômica “fordista”, de produzir em massa e de massificar o consumo como ideal econômico mas também sociocultural e no limite existencial, seria revista em função do mote de Franklin Lloyd Wright: “Less is only more where more is no good”. “Menos é mais apenas onde mais não é bom”. Esse “onde” é hoje o mundo. Enfim, produzir menos, mas melhor. Consumir menos, porém mais cada produto.

Desde o século XVI, o capitalismo sofreu várias mutações, passando do modelo mercantil para o industrial, depois para o pós-industrial etc., e, por outro lado, mudando do capitalismo “dickensiano” para o do welfare. É essa capacidade de mutação, adaptação e evolução que tornam o capitalismo resiliente, enquanto mantém seu aspecto fundamental de ser o único sistema historicamente capaz de tirar a humanidade da miséria e da pobreza e, por consequência, do atraso e da servidão. Não há nada mais “capitalistamente correto” do que reformar o capitalismo, para que se mantenha como a base da modernidade, em que, como dizia o velho Marx, “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Isso também vale para o “capitalismo de consumo” atual.



[i] "A modernidade quis organizar a agonia", entrevista à Folha de S. Paulo, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2701200709.htm.
[ii] Idem.
[iii] Algumas passagens desta seção do texto parecem ter sido diretamente plagiadas do release do livro de Kempf acessável no sítio da editora Globo (http://globolivros.globo.com/busca_detalhesprodutos.asp?pgTipo=CATALOGO&idProduto=1413). De fato, são idênticas, porque eu sou o autor do referido release.
[iv] “Represa de erros”, Folha de S. Paulo, 29/04/2010.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Roger Helmer: EU is exporting jobs, industry and emissions

Sustentabilidade, segurança, de preço acessível, são os propalados vértices do triângulo da energia na "europa" mas apenas o primeiro é tido em conta: "sustentabilidade" (tralha ecologista).

Embora sejam um flop, a "europa" apenas confia nas renováveis. A Alemanha, que gastou uma colossal fortuna em tralha eólica, está a construir mais 25 centrais a carvão para resolver o problema que as eólicas não resolveram.

A "europa", que continua a tentar que o gás de xisto não seja de forma alguma explorada, acabará por ficar para trás também face aos EUA onde, e apesar das repetitivas tentativas de Obama em sabotar o processo, a exploração daquele gás vai de vento em popa provocando o renascimento da indústria.

A "europa" continua, portanto, a exportar indústria, negócio, postos de trabalho e emissões de CO2. Entretanto, embora as emissões directas na "europa" sejam baixas, as emissões provocadas pela fabricação de produtos importados é gigantesca.

Nem o preço das energia "renováveis" é sustentável nem a teoria do "aquecimento global" que as suporta.


PORQUE VIRARAM À DIREITA – E PARA QUAL DIREITA (PARTE II)


 
 
Nota introdutória

Nesta segunda parte da minha análise do livro Por que virei à direita, de João Pereira Coutinho e dos ensaístas brasileiros Luiz Felipe Pondé e Denis Rosenfield, concentro-me nas posições de Pondé, por este representar, ao contrário dos outros dois autores, não um verdadeiro liberal, mas o que eu chamo de conservador obscurantista – que acredito dever ser separado dos verdadeiros liberais, para o bem destes.

1. Ponderações sobre um obscurantista contemporâneo I
 
A defesa do conservadorismo político – ao menos, de certo conservadorismo –, apesar de toda a crítica de que a esquerda seja merecedora, guarda suas próprias armadilhas. Desmascarar certo obscurantismo antirracionalista e antimodernista que macula parte do pensamento conservador – representada por Luiz Felipe Pondé neste livro – é afinal não apenas pertinente a ele, como tão importante quanto sua análise.

Mesmo porque, a possível relevância do pensamento obscurantista de Pondé está em sua falta de originalidade. Estender-se sobre seus argumentos tem, portanto, o possível valor da exemplaridade.

O senhor acredita em Deus?

Pondé: Sim. Mas já fui ateu por muito tempo. Quando digo que acredito em Deus, é porque acho essa uma das hipóteses mais elegantes em relação, por exemplo, à origem do universo. Não é que eu rejeite o acaso ou a violência implícitos no darwinismo – pelo contrário. Mas considero que o conceito de Deus na tradição ocidental é, em termos filosóficos, muito sofisticado. Lembro-me sempre de algo que o escritor inglês Chesterton dizia: não há problema em não acreditar em Deus; o problema é que quem deixa de acreditar em Deus começa a acreditar em qualquer outra bobagem, seja na história, na ciência ou em si mesmo.
[i]



Sim, acredito em Deus. Mas... 1) Já fui ateu. 2) Porque sou elegante: “Acho Deus uma das hipóteses mais elegantes em relação à origem do universo”. Bobagem. A narrativa mítica para a origem do Universo é, na verdade, banal, arcaica e popular. Vamos a ela...

As cinco maiores religiões têm algo de fundamental em comum. Judaísmo, cristianismo, islamismo, hinduísmo e budismo possuem, no centro de suas concepções teológicas, a ideia, algo óbvia, da necessidade de uma causa das causas. Parece complicado, mas é, na verdade, simples. E não necessariamente elegante.

Se tudo tem uma causa, uma regressão na longa cadeia de causas e efeitos levaria, ou a uma causa primeira, autogerada, ou ao infinito. É evidente que a ideia de uma cadeia infinita de causas e efeitos é mais difícil de ser concebida e transmitida do que a de uma cadeia de causas e efeitos com um ponto de origem identificável – e, além disso, parecido com o homem. Não surpreende, portanto, que esta tenha sido a hipótese “elegante” escolhida por todas as grandes religiões.

Há, claro, diferenças fundamentais, antes que os adeptos dos “inconscientes coletivos” e similares se alegrem. Porém a estrutura conceitual básica dos mitos de origem de todas as grandes religiões é bastante semelhante: uma causa das causas original, não causada e parecida com o homem. Na verdade, se as grandes religiões são cinco, os grandes mitos da criação são apenas dois. O judaico, adotado também pelo cristianismo e pelo islã, e o hindu, adotado pelo budismo.

O mito judaico é conhecido: o Universo existe porque existe um Deus, que não se sabe bem por que, resolve um belo dia criar o mundo. Sua semelhança com o homem está explicitada na Bíblia, ainda que às avessas, pela afirmação de o homem ser a imagem d´Ele. No caso do hinduísmo, a semelhança mais sutil de Brahma, a causa das causas, o Uno pleno etc., com o mesmo homem está no motivo pelo qual Ele decide, um dia, se dividir, deixando de ser Neutro para se tornar Macho e Fêmea, e daí gerar as Formas, isto é, a matéria, o mundo. O motivo é a solidão de Brahma, e o fato de que Ele “não tinha nenhum prazer”.

[ii] Ingênuo, por um lado, e contraditório, por outro: pois se insiste na Plenitude de Brahma, e é de se imaginar que o Pleno não conheça, por definição, nem a solidão nem a falta de prazer. Mas estas são concepções anônimas, populares, frutos de especulações não movidas nem pela experimentação nem pelo rigor. Numa palavra, mitos. E mitos podem muito bem ser ingênuos e contraditórios, ainda que não se deva explicitar poderem ser contraditórios e ingênuos. “Eu era um tesouro oculto e desejava ser conhecido, por isso criei as criaturas”: o “eu” desejante (mais uma vez...) é aqui o próprio Alá, que assim teria se expressado a Maomé sobre a origem do mundo, segundo o misticismo islâmico.[iii]

Depois de afirmar a elegância superior contida em tudo isso (deixando desta vez implícito seu desdém obscurantista pela explicação científica), Pondé acrescenta que “o conceito de Deus na tradição ocidental é, em termos filosóficos, muito sofisticado”. Imaginei, ao ler isto, que sairíamos dos mitos de origem para, por exemplo, alguma referência a Tomás de Aquino. Não me pegaria desprevenido, nem de todo despreparado, pois li Aquino o suficiente para saber que muito do que se diz sobre ele, ou a partir dele, não resiste a uma ida à fonte (por exemplo, que ele elabora a separação entre fé e razão; isto só é verdade se se acrescenta que o faz para subordinar a razão à fé). Mas não: depois de um golpe en passant e mal disfarçado no darwinismo (outra marca do obscurantista), Pondé se sai com uma velha referência a Chesterton, tão usada e surrada quanto a de Fiódor “Se não há Deus tudo se permite” Dostoiévski: “Não há problema em não acreditar em Deus; o problema é que quem deixa de acreditar em Deus começa a acreditar em qualquer outra bobagem, seja na história, na ciência ou sem si mesmo”. Sempre achei esta afirmação de Chesterton um dos exemplos mais acabados, ora, de obscurantismo. Além de se tratar de um sofisma, como de hábito nesse tipo de argumento (incluindo o de Dostoiévski). O sofisma está na redução implícita do conhecimento a outra forma de opinião. Refiro-me aos conceitos gregos de episteme e doxa.

A religião, a fé, o mito, não é conhecimento, no sentido de não ser conhecimento demonstrável ou testável de qualquer maneira, mas, então, apenas discurso, opinião – no limite, literatura. A ciência não é, por seu lado, nem mera opinião nem um tipo de crença nem, muito menos, “outra bobagem”. Stephen Hawking: “Há uma diferença fundamental entre a religião, que se baseia na autoridade, e a ciência, que se baseia na observação e na razão”. A frase de Hawking não tem valor por ele ser um dos maiores físicos da história (não se trata, portanto, de um argumento “de autoridade”), mas porque ela é robusta em si. Para demonstrá-lo, basta inverter os termos e constatar o absurdo do resultado: “Há uma diferença fundamental entre a religião, que se baseia na observação e na razão, e a ciência, que se baseia na autoridade”.

Aqui se evidencia a radical dicotomia contemporânea entre religião e ciência, entre fé e lucidez, entre mito e comprovação, entre opinião e conhecimento, contra a qual os obscurantistas de vários matizes (incluindo relativistas e construtivistas) tanto se batem. Frisei contemporânea porque o debate, neste caso, é viciado por uma permanente retomada de suas condições passadas, a partir, principalmente, dos problemas causados pela Igreja para a pesquisa de Galileu. Não que essas questões passadas estejam ultrapassadas, no sentido de não serem mais verdadeiras ou pertinentes: tudo o que foi dito nos últimos séculos sobre os antagonismos fundamentais da religião em relação à ciência (nesta ordem) continua tão verdadeiro e tão pertinente quanto quando dito a primeira vez.
 
A religião se baseia em crenças, isto é, em certezas, daí afinal se basear em respostas e em dogmas, enquanto a ciência se baseia em questionamentos, ou seja, em dúvidas, daí afinal se basear em perguntas e em pesquisas. Isto deveria ser evidente, e, na verdade, apenas não o é por conta da insistência multissecular dos obscurantistas em pôr a ciência em questão. Noutras palavras, a religião não é, na verdade, sequer uma preocupação para a ciência, enquanto a ciência é uma verdadeira obsessão para a religião. Isto é, para os crentes, como Pondé.

2. Ponderações sobre um obscurantista contemporâneo II
 
Há, portanto, outra razão para citar aqui Hawking: o golpe en passant de Pondé no darwinismo, comum nos obscurantistas. Coutinho e Rosenfield, obviamente, não rejeitam o darwinismo. Já Pondé, não surpreendentemente, é um defensor da “alternativa” do criacionismo, ainda que, como de hábito, às vezes o assuma, outros vezes pareça negá-lo, como aqui: “Não é que eu rejeite o acaso ou a violência implícitos no darwinismo – pelo contrário”. Atente-se, porém, para a formulação ambígua e condescendente, além de pretensiosa: “Não é que eu rejeite o darwinismo...”. Tanto o rejeita que é incapaz de compreendê-lo minimamente: qualquer estudante de primeiro ano de biologia sabe que o acaso e a violência são, na verdade, explícitos no darwinismo. Compare-se, em todo caso, com outra passagem do mesmo autor:

 A controvérsia que opõe o darwinismo ao criacionismo [...] – ou teoria do “design inteligente”, herdeira direta da união entre o “primeiro motor” aristotélico e o Deus de Abraão – não é apenas uma querela sobre como a poeira cósmica começou a pensar, mas uma discussão acerca do sentido profundo da vida.
[iv]



Não há nenhuma controvérsia opondo o darwinismo ao criacionismo, mas o contrário, o que não é indiferente: o criacionismo se opõe, agressivamente, ao darwinismo. Pondé, sendo um crente, deveria ser, necessariamente, um criacionista, pois como ele mesmo afirma, Deus é uma “hipótese para a origem do Universo”. Acontece que há hipóteses excludentes: no caso do surgimento da vida, ou Deus a criou, ou a matéria inanimada regida pelo acaso. Não há como ser ambos. Pondé, de fato, desconfia do darwinismo: “O darwinismo é a teoria da autossuficiência da matéria”.

[v] Sua inconsistência e sua confusão obscurantistas, porém, fazem com que acredite poder servir a dois amos. Assim, a depender do dia, de seu humor ou do texto seu que se consulte, ele defenderá, ora o darwinismo, como no livro em questão (em que concede sentir “simpatia pela teoria de Charles Darwin” [p. 61]), ora o criacionismo, como na passagem acima, em que manifesta mais do que simpatia, mas faz dele verdadeira justificativa.

Porém não se trata, afinal, do darwinismo, e sim da própria biologia. Porque não existe biologia sem darwinismo. O problema é ser impossível conceber um ataque minimamente consistente ao gigantesco edifício da biologia, que inclui a paleontologia, a genética, a embriologia, a fisiologia, a anatomia comparada, a etologia, a bioquímica e um gigantesco etc. O darwinismo é a base conceitual unificadora de todas as ciências biológicas, que, por um lado, sem ele sequer podem existir, e que, por outro, o corroboram em seus vários campos de pesquisa. Portanto, ao atacar o darwinismo (ou defender o criacionismo), os crentes em geral e os obscurantistas em particular estão, na verdade, atacando o conjunto das ciências biológicas. Não convém, porém, explicitá-lo, primeiro, porque soa, ora, obscurantista; segundo, porque indica a imensa robustez do darwinismo; terceiro, porque demonstra implicitamente a fraqueza e a insensatez do ataque, que não pode sequer nomear seu verdadeiro alvo, o edifício das ciências biológicas, de que o darwinismo é o alicerce e o cimento. Mas por que, afinal, a necessidade de atacar a biologia?

Porque a biologia não distingue o homem dos demais animais. A biologia é a ciência da vida em seu conjunto. E as grandes religiões são antropocêntricas. A controvérsia que opõe o criacionismo ao darwinismo (e não o contrário), não é, portanto, uma discussão acerca do sentido profundo da vida, como pretende Pondé, mas do sentido profundo da vida humana.

Eis, enfim, o antagonismo fundamental entre as grandes religiões e a biologia, que centraliza o antagonismo (real, apesar dos relativistas) entre as religiões e a ciência: a biologia não reconhece nenhum sentido profundo da vida humana, que é apenas parte da vida terrestre, enquanto as religiões existem para afirmar o sentido especial da espécie. Para que as religiões tenham algum sentido, a vida humana deve ter um significado especial. Daí a biologia, na figura do darwinismo, ter de ser atacada. Não que possa ser fácil ou convincentemente atacada. Daí, enfim, a obsessão e a mal disfarçada frustração dos obscurantistas.

3. Saudades da Idade Média

Para mim, a religião é uma fonte de hábitos morais, e historicamente oferece resistência à tendência do Estado moderno de querer fazer a cura das almas, como se dizia na Idade Média – querer se meter na vida moral das pessoas.
[vi]



Eu poderia aqui falar em pura e simples ignorância histórica, mas não o farei. Prefiro pensar em obscurantismo, em sofisma, em falseamento. Mesmo porque, são argumentos não originais. A religião não oferece historicamente nenhuma resistência à “tendência do Estado moderno de querer fazer a cura das almas”. Porque não há tal “tendência”, senso lato, no Estado moderno. Este é por demais multiforme, em termos históricos, para poder ser assim reduzido (que semelhança pode haver entre a República de Weimar e a “República Popular” de Pol Pot no Camboja?). Porque se trata de mais um ataque geral e irrestrito à modernidade. E porque a defesa da religião como fonte de “hábitos morais” é o último recurso do obscurantista. Para começar, não há religião no singular. Para intermediar, existem e existiram religiões que defendem e defendiam “hábitos morais” como a poligamia, a morte de adúlteras, o infanticídio, o sacrifício humano e um interminável etc. Para finalizar, porque em termos históricos a religião é, na verdade, uma fonte inesgotável de disputas culturais e de guerras, para não falar de genocídios: o nazismo, por exemplo, não criou o antissemitismo alemão, mas sim teve no antissemitismo alemão uma de suas causas. E o antissemitismo alemão tem como causa profunda, por sua vez, o antissemitismo europeu, que é, na verdade, o antissemitismo cristão – criado e difundido como elemento central da cultura e da história europeias pela Igreja.

Um conhecido especialista em história do cristianismo não poderia ser mais explícito a esse respeito, ao comentar textos fundamentais de importantes autores cristãos dos primeiros séculos:


 
Estamos no início de uma forma de ódio antijudaico que não havia aparecido no palco da história antes do advento do cristianismo, e que foi construído sobre uma visão [...] de que as Escrituras judaicas [na verdade] testemunham sobre Cristo, que foi [portanto] rejeitado pelo seu próprio povo e cuja morte, por sua vez, leva à condenação desse povo.[vii]



 Ao contrário do que afirmam obscurantistas antirracionalistas como Pondé, a ideia de que todo um povo – incluindo os bebês – possa ser “culpado” de algo, não vem da racionalidade política – ou de qualquer racionalidade –, mas da irracionalidade mítica (a primeira referência conhecida a um genocídio está no Velho Testamento, em que é perpetrado por Deus através do dilúvio). O método do genocídio nazista foi o da moderna racionalidade instrumental, porém o objeto desse genocídio nasceu da irracionalidade mítica. E antes da modernidade.

A famosa mutação do antissemitismo religioso medieval em antissemitismo “racificado” ou “biológico”, ligado a modernos conceitos “científicos” de raça e eugenia, então se relativiza: o antissemitismo moderno não é idêntico ao medieval, mas tampouco lhe é inteiramente estranho; mesmo porque, é dele diretamente originado. Há, portanto, muitos aspectos relevantes da modernidade que não nasceram nela ou dela, mas dos quais ela é, na verdade, herdeira. Um conservador como Pondé deveria saber disso. Entre esses aspectos, está o próprio totalitarismo.

Quando estados religiosos como o Afeganistão sob o Taleban voltam a existir, torna-se mais fácil imaginar a vida na Europa cristã. Por exemplo, episódios de brutal vontade totalitária, como a expulsão de toda a comunidade judaica espanhola pelos “reis católicos” (não por acaso). Se esse episódio, em pleno século XV, já possui algo da nascente ideia moderna de Estado nacional, com sua ideia de "povo", tem muito de protototalitarismo cristão medieval – cujas manifestações incluem da conhecida censura do Index Prohibitorum às menos conhecidas destruições de comunidades “heréticas”, como a dos cátaros. A “caça às bruxas” (tampouco uma criação original do Estado totalitário moderno) começara, em todo caso, muito antes – mais exatamente, no século IV:

Todos os povos sobre os quais exercemos regência bondosa e moderada devem [...] converter-se à religião comunicada aos romanos pelo divino apóstolo Pedro [...]. Apenas aqueles que obedecem a esta lei poderão [...] chamar-se cristãos católicos. Os demais, que declaramos verdadeiramente tolos e loucos, carregarão a vergonha de uma seita herética. Tampouco poderão ser chamados igrejas seus locais de reunião. Por fim, que os persiga primeiramente o castigo divino, porém depois também a nossa justiça punitiva.




De alguma maneira, a justiça punitiva por sentença celestial vigorará até 1789, pois os reis absolutistas o eram por “direito divino”. Nada, porém, impede que Pondé, isto é, que um obscurantista, ataque desdenhosamente a racionalidade moderna e a modernidade em si:

A modernidade é uma adolescente, uma menina de 14 anos, que chega a um lugar e começa a organizar. Essa é a imagem. Imagine essa menina, que entra na empresa e começa a administrá-la. Joga fora o que foi feito até hoje, começa a inventar todos os procedimentos.
É a modernidade. Perde-se o quê nesse processo? Perde-se o que uma adolescente de 14 anos perderia administrando uma empresa. Quase tudo.


Mas talvez se ganhe algo: de Galileu a Einstein, passando por Newton e Darwin e chegando à descoberta recente do bóson Highs, base do Modelo Padrão da física contemporânea, ao lado do fim da servidão medieval e da própria emergência do capitalismo, que os verdadeiros liberais não desprezam, ao contrário, pois liberou as maiores forças produtivas (e destrutivas) da história, para usar a expressão de Marx (gerando, por exemplo, da medicina à energia atômica, e da Revolução Industrial à arte moderna, entre otras cositas más). A modernidade foi, obviamente, a maior e mais poderosa conquista da história da humanidade. Apenas um cego, um louco ou um obscurantista nega convictamente o óbvio.



[ii] Brihad Aranyaka 1.4.2, apud David L. Haberman, “Hinduísmo upanixádico: a busca do conhecimento último”, in Leslie Stevenson e David L. Haberman, Dez teorias da natureza humana, São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 68.
[iii] Albert Hourani, Uma história dos povos árabes, São Paulo, Cia das Letras, 2007, p. 237.
[iv] “A vida em suspensão”, Mais!, Folha de S. Paulo, 29/10/2006.
[v] Idem.
[vii] Bart D. Ehrman, Evangelhos perdidos, Rio de Janeiro, Record, 2008, p. 221. A arrogância heurística cristã não pode ser exagerada.
[viii] Decreto imperial de Teodósio I (Cunctos populos, a. D. 380), apud Matthias von Hellfeld, “Cristianismo tornou-se religião de Estado do Império Romano em 380 d. C.”, in Os europeus, http://www.dw-world.de/dw/article/0,,4224599,00.html.
[ix] “A modernidade quis organizar a agonia", entrevista à Folha de S. Paulo, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2701200709.htm.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

PORQUE VIRARAM À DIREITA – E PARA QUAL DIREITA (PARTE I)



Nota introdutória
 
 
Há poucos dias, nosso grande José Gonsalo publicou neste sublime blogue um breve comentário sobre um importante livro recém-saído no Brasil, Por que virei à direita, em que três respeitados ensaístas, um deles o conhecido João Pereira Coutinho (acompanhado dos brasileiros Luiz Felipe Pondé e Denis Rosenfield), defendem o ideário liberal enquanto criticam o pensamento e a prática política de esquerda. Aproveito, então, para dar à luz em terras portuguesas uma análise que fiz há pouco do mesmo livro. Como a análise é extensa, será aqui publicada em três partes diárias consecutivas.

Na verdade, meu texto parte da análise do livro, mas nela não se detém. Porque seus argumentos permitem ampliar a discussão para duas outras questões igualmente importantes: as diferentes vertentes do pensamento conservador, incluindo a que chamo de obscurantista (neste caso, personificada por Luiz Felipe Pondé) e a possível insuficiência do pensamento conservador (apesar de qualquer virtude e da necessidade da crítica à esquerda).        


1. Direita, volver!


A esquerda surgiu, historicamente, durante a Revolução Francesa. Mas não tinha, então, o significado de alternativa ao sistema capitalista na economia e à democracia representativa na política – mesmo porque, o primeiro não estava inteiramente desenvolvido e a segunda não existia. A esquerda como a reconhecemos nasceu na segunda metade do século XIX – e teve como certidão de nascimento o Manifesto comunista de Marx e Engels (1848). Ela, porém, logo morreria, soterrada pela queda do muro de Berlim (novembro de 1989). Mas se o socialismo como alternativa de poder ao capitalismo deixou então de existir, isto não resultou nas duas consequências lógicas ou necessárias: 1) o abandono de um (agora) tardoesquerdismo tão impotente quanto renitente e, afinal, caricato (cuja figura recente exemplar é o “companheiro bolivariano” Hugo Chávez); 2) uma nova crítica radical do capitalismo, livre do fracasso histórico e do ranço ideológico da esquerda (e baseada, talvez, nos pressupostos do ambientalismo – se este conseguisse conceber um novo modelo socioeconômico, o que parece tão improvável quanto a múmia de Lênin se erguer na Praça Vermelha).

Enquanto o pensamento de esquerda sobreviveu como uma fantasmagoria ideológica, assombrando principalmente (mas não exclusivamente) a academia, em particular as ciências humanas, o pensamento de direita revelou-se incapaz de ir muito além da repetição de uma constatação histórica: o próprio fato de que a esquerda fracassou. Haveria uma justificativa para tal reiteração da direita: a insistência da mesma esquerda em seu discurso esvaziado, de negar ou desdenhar o capitalismo apesar de não poder mais sustentar um modelo alternativo. Assim, se o discurso de esquerda se recusa a incorporar a principal lição da história contemporânea (ou seja, que o capitalismo é o pior sistema socioeconômico, fora todos os demais), a direita parece disposta a não deixar o discurso da esquerda em paz. Além disso, e talvez mais importante, há as práticas residuais “de esquerda” ainda sustentadas ou defendidas por tal discurso, como o ridículo mas não inócuo “socialismo bolivariano” de Chávez, ou o “aparelhamento” do Estado brasileiro pelo lulo-petismo.

Por que virei à direita – três intelectuais explicam sua opção pelo conservadorismo (São Paulo, Três estrelas, 2012) contém exemplos das principais vertentes do discurso conservador. Como destaca a “orelha”, João Pereira Coutinho discute “os riscos das utopias propagadas pelas esquerdas”; Luiz Felipe Pondé, mais metafísico, insiste em que “o pensamento progressista tem uma falha essencial: ignora aquilo que é próprio do ser humano”; Denis Rosenfield, por fim, ao (re)analisar a “teleologia da esquerda, que vê o Estado como a encarnação máxima da moral, faz também dura crítica à ‘democracia participativa’ implementada pelo PT”.


2. Como virar à direita e se separar


João Pereira Coutinho, na verdade, revisita o conhecido receituário do (e alguns dos autores clássicos sobre o) “cético”, que, neste caso, é outro nome para o não-rousseauniano. Tenho plena simpatia pela antipatia de Coutinho (característica dos liberais) com o Rousseau de “os homens nascem bons e a sociedade os corrompe”. Porque este pressuposto é falso e autoritário (além de mera paráfrase do mito judaico-cristão do Paraíso e da queda): falso por não corresponder aos fatos, autoritário por se travestir de verdade axiomática. E porque apenas o nazifascismo seria capaz de cometer mais crimes do que o “campo rousseauniano”, nascido dessa crença do “homem bom versus sociedade má”.

Um dos méritos do texto de Coutinho é reiterar, a partir de Michael Oakeshott, o contraponto entre “fé” e “ceticismo” em política, além de explicitar que a “fé” é um mal que acomete, na verdade, tanto a esquerda quanto a direita, na forma de utopias cuja base é a crença (ou a “fé”) de que tal ou qual sistema “corrigirá” a sociedade, para adequá-la à “bondade natural” do homem. Daí o totalitarismo: pois para corrigir a sociedade é preciso, ora, corrigir a sociedade.

O texto de Luiz Felipe Pondé, em seguida, é, sob alguns aspectos, muito parecido com o de Coutinho. Há, porém, diferenças fundamentais. Começando pelas semelhanças mais evidentes, ambos os textos, de caráter ao mesmo tempo analítico e memorialístico, chegam à mesma conclusão/afirmação sobre seus autores: Coutinho se diz um “estrangeirado” em seu Portugal natal, com isso querendo dizer-se anglicizado: “As múltiplas referências anglo-saxônicas [...] denunciam-me como um ‘estrangeirado’” (p. 47). Pondé diz-se a mesma coisa: “Penso como um britânico” (p. 81). Não é por acaso: trata-se do bom e velho pensamento liberal inglês, da linhagem que liga Edmund Burke e David Hume a Isaiah Berlin. O primado do indivíduo, do ceticismo e do empirismo versus a primazia do coletivo, da fé e da teoria/ideologia. Ler os dois textos em seguida, porém, é revelador: pois suas semelhanças, incluindo a lista de autores citados, servem, afinal, para destacar suas profundas diferenças.

Há direitistas e direitistas. Só o esquerdista mais insano (ou mais estúpido) seria capaz de afirmar que Churchill e Mussolini significam a mesma coisa. Se todo fascista é conservador, nem todo conservador é fascista. Alguns (na verdade, muitos) são liberais. E ser liberal significa, de certa forma, não ser, sequer, de fato conservador. A direita é, talvez, ainda menos homogênea ou monolítica do que a esquerda.

Pois a esquerda, cujos métodos variam do reformismo gradualista da social-democracia “clássica” ao revolucionarismo voluntarista bolchevique, tem em comum a crença na existência (e no reconhecimento, pela própria esquerda) da verdadeira “natureza humana”, a bondade “natural” rousseauniana. O papel da política seria, então, criar uma sociedade que não a “corrompesse”, para usar o termo de Rousseau, como todas as sociedades históricas. No limite, isto leva, como já dito, ao totalitarismo, ou seja, ao stalinismo (cujo verdadeiro nome deveria ser leninismo). Existe igualmente, porém, o totalitarismo de direita, cuja expressão máxima é o nazismo. Nazismo que não deixa de ser também rousseauniano. A diferença fundamental está no nazismo ser particularista, e não universalista. Acredita, assim, na “bondade” ou “virtude” ou “pureza” de parte da humanidade, a “raça ariana” (corrompida, então, não por certa organização social, mas por outra “raça”, a judaica). E assim chegamos a uma diferença pouco conhecida ou reconhecida entre esquerda e direita: esta é, ao fim e ao cabo, mais contraditória (felizmente). Pois se, no fundo, toda esquerda é rousseauniana, parte da direita também o é, enquanto outra parte é radicalmente antirrousseauniana. Esta parte se chama liberalismo.

Tão importante quanto reiterar os conhecidos males do rousseaunismo/esquerdismo e o possível antídoto do liberalismo (o que os três textos, a seu modo, fazem), seria, no entanto, apontar as possíveis insuficiências do próprio liberalismo, o que principalmente Coutinho esboça.

Como referido no início, se o fim do socialismo como alternativa de poder ao capitalismo não matou o tardoesquerdismo, tampouco fez surgir uma nova crítica radical do capitalismo, livre do fracasso histórico e do ranço ideológico da esquerda. Faz sentido: pois, obviamente, essa nova crítica, se não poderia vir mais da esquerda, tampouco pode, apesar disso, vir da direita. Se a direita é perfeitamente capaz de fazer a crítica radical do esquerdismo como prática e como ideologia, como nos três ensaios do livro, não se mostra apetente em fazer a crítica radical do capitalismo. Mesmo porque, esta é uma característica do pensamento de esquerda. Dados o fracasso histórico deste e a inapetência daquela, fica o "capitalismo de consumo" atual livre de qualquer crítica abrangente, apesar de ainda possível e necessária.


3. A inveja narcísica e o chifre do unicórnio


No contexto do livro, em que o liberalismo é defendido com rigor e argúcia por Coutinho (enquanto Rosenfield se detém no caso particular da esquerda brasileira), Pondé revela-se, afinal, um liberal inconsistente, ou falso, porque não é um cético consistente, ou verdadeiro.

Assim como os esquerdistas acreditam haver e creem conhecer a essência ou a natureza humana, que seria a "bondade" rousseauniana, Pondé acredita haver e crê conhecer a mesma coisa, com a única diferença de uma troca de sinal, para a “maldade” no sentido cristão, ou decaimento pelo pecado original:


Ainda criança, comecei a ter esse temperamento de desconfiar das utopias, por perceber nelas um ódio essencial ao mundo tal como ele é – ódio que não sinto. Para mim, o mundo era antes de tudo uma das faces da insuficiência humana, carregando consigo a deformação de nossa dor crônica e infinita.
[i]


É difícil entender, a princípio, que Pondé não perceba suas gritantes inconsistências. Depois, desconfia-se fazerem parte da receita (que se descobre não ser original). Aqui ele se apodera de um dos principais argumentos dos céticos, dos laicos, dos descrentes e da ciência – que rejeitam a crença e os deuses, justamente, por aceitar o mundo tal como ele é, enquanto a religião, como se sabe, o odeia, repele e “condena”. O cristianismo, por exemplo (que Pondé não cansa de propagandear), vê o mundo real, o mundo do dia a dia, como um lugar de pecado, corrupção e concupiscência, e rejeita “a carne” em nome do “espírito”, o mundo material em nome do “reino do céu”, o presente em nome do futuro (qualquer semelhança com as utopias políticas não é coincidência). Numa palavra, rejeita a vida e adora a morte, que chama de verdadeira vida. Não satisfeito em aplicar o famoso argumento contra a crença religiosa às utopias, mas às utopias somente, livrando, assim, a crença religiosa, Pondé afirma, em seguida, que o “mundo tal como ele é” é insuficiente e deformado: “O mundo é antes de tudo uma das faces da insuficiência humana, carregando consigo a deformação de nossa dor crônica e infinita”...

A dor provocada por aquela tragédia e o silêncio raivoso [de um irmão do morto] são exemplos do que entendo como condição do homem diante de Deus. Relendo o mito da queda de Adão e Eva, muitos anos depois, vi que esse sentimento é a matriz do pecado: a revolta contra Deus era inevitável. É essa inevitabilidade da revolta, sustentada por uma inveja atroz da imortalidade dos deuses, que me fascina.
[ii]

A mim não fascina, mas espanta, por ser, no limite, incompreensível. Como se pode, em sã consciência, invejar o inexistente? Seria o mesmo que um cavalo invejar o chifre do unicórnio. Se invejasse o chifre do rinoceronte, vá lá. Mas um cavalo que invejasse o unicórnio estaria invejando uma miragem. Ou um mito. Tal cavalo não teria um verdadeiro problema existencial, já que unicórnios não existem, mas psicológico. A diferença pode ser sutil, mas é real. Se nosso cavalo imaginasse o unicórnio e desejasse ser como ele, estaria expressando um desejo, uma fantasia. Mas o passo seguinte, sentir inveja de seu objeto imaginário, de sua própria autoimagem idealizada, não é evidente nem necessário. É, na verdade, infantil – portanto, deveria ser normal (ou da norma, além da normalidade) apenas em crianças, não em cavalos nem em adultos. Pois seria o mesmo que um menino “invejar” o Super-homem. Essa “inveja” de uma fantasia pode ser verdadeiramente angustiante para uma criança, mas adultos são indiferentes a isso. Não porque ser adulto signifique ser perfeitamente lúcido, mas sim imperfeitamente fantasista: a imaginação infantil é maior. Um adulto pode invejar, e muitas vezes inveja, vidas que edulcora, mas habitualmente não vai além disso: acreditar que certa celebridade vive uma vida perfeitamente maravilhosa não é o mesmo que acreditar que tal pessoa possa levitar. Quem perderia tempo se angustiando por não poder levitar? Principalmente, angustiando-se por sentir inveja de certa pessoa que acredita poder levitar? Afinal, sabe-se que ninguém pode levitar. É contra a natureza das coisas. Ora, a imortalidade não é menos, mas muito mais fantasista do que a levitação. Apesar disso, a maioria das pessoas não é crente, ou seja, não acredita na existência real de seres imortais, os deuses? Sim. Mas, em primeiro lugar, a crença na existência de algo não é suficiente para que esse algo exista de fato; em segundo lugar, a verdade não é democrática. A verdade não depende da quantidade dos que a afirmam, mas da qualidade dos argumentos que a apontam (daí a fábula A roupa nova do rei). Um verdadeiro liberal sabe bem disso, como bem o sabia Alexis de Tocqueville, ao apontar a “ditadura da maioria” como um dos perigos da democracia moderna. Pondé, aliás, cita e recita Tocqueville, o que naturalmente não basta para torná-lo um liberal verdadeiro.

Ao contrário de Coutinho e também de Rosenfield, Pondé não se satisfaz, portanto, com a rejeição das utopias políticas da modernidade, mas dá mais um passo, assumindo, agressivamente, a rejeição da própria modernidade. Tal rejeição não evidencia o liberal, mas esconde (mal) o obscurantista.



[i] “A formação de um pessimista”, in Por que virei à direita, p. 51.
[ii] Idem, p. 52.

Albert Einstein NEVER BEFORE HEARD: plays Mozart KV378 Sonata for Violin and Piano in B-flat


sábado, 20 de abril de 2013

CORREIO DE FIM-DE-SEMANA – DOIS EXEMPLOS PARA RECREAR





   Creio que muitos dos caros confrades ainda se lembrarão dos tempos em que, sem trabalho dobrado mas apenas por boa estruturação dos velhos CTT, se recebia correio todos os dias. E, como diz a obra maestra de James Cain, o carteiro tocava sempre duas vezes…

   Durante anos, nos rankings da estrutura própria que mede esses desideratos, os Correios eram mesmo considerados um exemplo de boa condução enquanto empresa pública.

  Em certos países, nomeadamente os EUA, a Inglaterra, a França, etc, ainda assim é. Usando de uma hábil e competente coordenação, nesses países onde ainda existe um certo progresso não se deixa o cidadão e o continente societário, durante dois dias, a apanhar bonés no que à ausência de carteação ou outros contactos diz respeito.




  Felizmente que agora há a rede, a redezinha, esta interactiva que nos permite que também nos fins-de-semana nos cheguem coisas oportunas e interessantes, por belas e comprazedoras.

  Hoje, comigo, foi assim – e estes dois bons exemplos, gostosos e salutares,  um vindo do Brasil e outro de Cabo Verde (onde o seu autor agora reside), aqui ficam com o proverbial abrqs e desejo de que tudo vos siga correndo bem.



Uma recordação de Nuno Rebocho

Espiões e jornalistas: um relacionamento difícil

   Que as más relações entre a Comunicação Social e os serviços secretos são, em democracia política, mais do que escaldantes fica certo e sabido. É dos livros e o que vai por aí não foge à praxe. Quanto ao que se passava nos tempos da polícia política salazarenta e da estúpida e coronelesca censura nem é bom falar: basta me recordar dos tempos do jornal cor-de-rosa, o “Comércio do Funchal”, em que tive que usar pseudónimo (L. H. Afonso Manta) se quisesse ser impresso e ter voz, para ser assaltado por tanta memória que até apetece vomitar. Não vem agora ao caso falar desses amordaçados tempos de que tantas histórias há que contar, muito embora haja (infelizmente) muitos que, oportunisticamente se dizem “vítimas”, não passaram de obedientes colaboracionistas com o Estado Novo. Se fosse a contar… olhem, que não faltam provas… Eu, pelo menos, tenho-as, para que não venham com coisas.

   Bem, é da atual espionagem em Portugal que hoje saco da viola. Poucos sabem que essas más relações entre espiões e jornalistas datam de 1985/6 e nasceram no jornal “A Tarde” (que os estultos afirmam ser de “direita”, embora acobertasse mais anos de cadeia política no lombo da sua redação que o jornal comunista “Diário” – coisas que a porca propaganda oculta). Eu era na altura subchefe de redação de “A Tarde”, quando o fotógrafo, o Duarte, me veio alertar: “há movimentos estranhos em volta do jornal. Estão uns gajos parados na rua, sentados nos bancos e junto dos candeeiros, a fingir que estão a ler jornais mas a observar atentamente quem entra e quem sai daqui”.


   Avisado de que algo de estranho se estava a passar, mandei-o ir tirar, à socapa, fotos dos meliantes. Nas fotografias apareciam também uns tipos postados nas esquinas. Peguei, depois, nos “bonecos” e coloquei-os diante do diretor, o Jaime Nogueira Pinto. Pouco após, foi o bom e o bonito quando o Jaime telefonou para os Serviços Secretos, informando-os da situação e pedindo que executassem as necessárias providências - com surpresa, o homem desmontou-se em desculpas. Que os sujeitos eram, afinal, agentes da espionagem, acabados de se formar e tinham sido colocados ali, junto do jornal da Rua Augusta, “para prestar provas”! Má sorte a sua. Pediu-nos imensas desculpas e o caso foi “abafado”.

   Bem que então avisei o Nogueira Pinto: até seria “educativo” anunciar que os aprendizes dos nossos “bufos” foram apanhados com a boca na botija. Talvez assim eles aprendessem a respeitar a Imprensa e a tomar cuidado. Mas não: optou-se pelo facilitismo e agora andamos com a Ongoing às costas.

   Esta história que aqui recordo (e muito papalvo desconhece, por isso deita cá para fora um chorrilho de disparates e asneiras), não apaga que, por vezes, possam existir boas relações entre a espionagem e a Comunicação Social e, mesmo, dentro de determinados limites, uma leal colaboração. Por exemplo, eu próprio passei informações, em 1976, sobre os aprisionados em Angola pelo regime de Neto (e cujas cabeças era necessário salvar de um assassinato que, de outra forma, seria quase certo) a um agente da BOSS, o Peter – um jovem de origem russa que estava deslocado em Lisboa. Claro que foram respeitadas as normas éticas do Código Deontológico dos Jornalistas.


   E, anos mais tarde, enquanto chefe de redação do semanário “O Diabo” (em breve vos falarei desses tempos), sosseguei dois agentes da CIA que me visitaram na redação procurando recolher informações para acautelar a vinda a Portugal de Ronald Reagan, então Presidente dos Estados Unidos. Aí eram questões de segurança que imperavam e o bom nome de Portugal que estavam em causa.

   Se não houver conveniente e ajustado racionalismo neste relacionamento (nem tanto ao mar, nem tanto à terra: todos os fundamentalismos são um péssimo serviço e acabam por ser prejudiciais) dá-se prova de imbecil cegueira profissional e política. Livrem-se dela.
                                                                                                        Nuno Rebocho
                                                                          



Um poema de Floriano Martins


XXII

Acaso conheces o deus que quer morar em ti?
Tens idéia do que ele criaria uma vez em teu íntimo?
Residente em túmulo ou santuário,
ele seria um deus morto ou vivente?
A árvore erguida no centro dessa união,
sabes dizer a quem pertenceria?
A quem atribuir as faltas dele, seus pudores e pecados?
E como esperas que ele retribua as tuas oferendas?
Qual dos dois um dia apunhalaria o outro?
Não crês que todos os deuses se temam entre si?
Quem julga o outro mais sábio, justo ou soberano?
Por que não se sentam todos e compartem uma mesma fatia de luz?
À imagem e semelhança de quem exatamente foram criados?
E antes que não me escutes mais, quantos pensas que somos?


(imagem obtida aqui


(do livro LEMBRANÇAS DE HOMENS QUE NÃO EXISTIAM (2013),
poemas de Floriano Martins a partir de retratos do escultor Valdir Rocha)

sexta-feira, 19 de abril de 2013

"Porque virei à direita"





Chegou-me às mãos, dias atrás, este livro, editado pela Três Estrelas, de S. Paulo. Com pouco mais de 100 páginas , é constituído por três textos de filosofia política, assinados por Luiz Felipe Pondé, Denis Rosenfield, ambos brasileiros, e pelo português João Pereira Coutinho. O prefácio é de Marcelo Consentino. Deixarei de lado os textos de Pondé e Rosenfield, para me centrar no de Pereira Coutinho.

Conhecia-o das suas participações em programas televisivos de debate sobre a actualidade política em Portugal bem como das crónicas que assina regularmente no jornal Correio da Manhã. Em ambos os casos, o que distingue as suas participações das dos restantes comentadores ou cronistas é a elegante irreverência e, frequentemente, a subtil ironia (haja alguém!) com que costuma responder ao que lhe perguntam ou tratar o que se sentiu motivado a abordar.

O texto incluído neste livro mantém essas características, aliadas a um tom mais intimista, tornando a sua leitura muitíssimo fluida. E surpreende ainda duplamente quem avalie a dimensão intelectual de João Pereira Coutinho pela inevitável maior leveza dessas suas intervenções públicas.

Em primeiro lugar, porque nele se organiza e estrutura, sinteticamente mas com rigor, uma reflexão documentada e aprofundada sobre a relação possível entre racionalidade, utopia e Estado, sobre as oposições entre “políticas de fé” e “políticas de cepticismo” (para utilizar os termos de um inspirador maior de qualquer dos três ensaístas: Michael Oakeshott  - cuja obra continua, quase completamente, por traduzir, sinal inequívoco do obscurantismo a que o reinante e opressivo quadro mental da esquerda nos conduziu). Em segundo lugar, porque consegue que as sucessivas conclusões, mesmo as mais complexas, sejam facilmente apreensíveis pela sua formulação numa linguagem do melhor (leia-se: mais sábio) e delicioso senso-comum.

Um texto a descobrir, com a urgência justificável pelo vazio de ideias que, dia a dia, vai engolindo irremediavelmente o país.