domingo, 7 de abril de 2013

Outras quatro crónicas exemplares...


(imagem obtida aqui)




Donzelas e galdérias

Sem pompa nem circunstância, encerraram os Centros Novas Oportunidades. As NO responderam às carências do País em matéria de certificações sem responder às carências do País em matéria de aprendizagem. Ou seja, as pessoas entravam formal e tecnicamente desqualificadas nos espaços de formação e, decorridos meses, deles saíam apenas tecnicamente desqualificadas. Pelo meio, a troco de "histórias de vida" e conversa fiada, ganhavam um papel que lhes garantia a posse do 9.º ou do 12.º ano. Mil e oitocentos milhões de euros depois, 400 mil portugueses são os confusos proprietários do tal papel e os candidatos ao desemprego ou a profissões desvalorizadas que sempre haviam sido. Ao contrário do que alguns charlatães chegaram a afirmar, criticar as NO não significava insultar os incautos que por elas passaram: ao arregimentar incautos para efeitos de propaganda, as NO eram o insulto. E a abolição de um insulto é uma boa notícia.

Estranhamente, essa notícia não mereceu os festejos suscitados por uma segunda notícia feliz e quase simultânea, a da demissão do ministro Miguel Relvas, que obtivera uma licenciatura à custa do exacto tipo de equivalências imaginárias que fundamentavam as NO. Mais estranho é que muitos dos que defendiam as NO sejam os mesmos que, com alguma razão e escassa legitimidade, acharam o processo do "dr." Relvas um atentado à democracia. Se o processo do "dr." Relvas é misterioso, não se compara ao mistério das reacções que fomentou.

Uma reacção típica consistiu em afirmar que a demissão pecou por tardia. Nada a obstar: por lealdade, necessidade ou pura dependência, o dr. Passos Coelho deixou que os estragos provocados pelo currículo "académico" do "dr." Relvas se prolongassem indefinidamente, com custos que o Governo dispensava. Apesar disso, o "dr." Relvas lá acabou por sair, o que nem sempre se pode dizer de governantes com licenciaturas igualmente duvidosas que se agarraram ao poder e sobreviveram à revelação das trapalhadas universitárias.

Outra reacção à saída do "dr." Relvas indigna-se com Nuno Crato, que alegadamente guardou por dias ou semanas o relatório da Inspeção-Geral da Educação e Ciência acerca do famoso canudo. Os indignados esquecem-se de que é inédito um ministro concordar com uma decisão que coloca em causa um seu colega. Sobretudo esquecem-se de que o antecessor desse ministro contemplou indiferente uma aldrabice similar à do "dr." Relvas (indiferente, vírgula: fechou a universidade em questão sem beliscar os respectivos beneficiados).

Uma terceira reacção trata de esclarecer que o "dr." Relvas não era, cito, "um ministro qualquer", logo a confirmação das habilidades praticadas na Lusófona abala gravemente o Governo. Acho óptimo que abale, ainda que ache esquisito o facto de governos anteriores escaparem ilesos à revelação de habilidades semelhantes praticadas por um membro que também não era um ministro qualquer: era o primeiro.
Entre as donzelas ofendidas com a novela do "dr." Relvas há inúmeras galdérias em novelas passadas. Hoje, puxam da virtude com o zelo com que ontem disfarçavam o vício. Levá-las a sério é reduzir Portugal a uma anedota. Como o "dr." Relvas, mas não só o "dr." Relvas.


Novas da Primavera

No Egipto, que desde a deposição de Mubarak é uma terra devotada à democracia e à liberdade de expressão, em dois dias a justiça local acusou dois comediantes por blasfemarem contra o islão. Não só é uma óptima média como um sinal da saúde da Primavera Árabe, que ao contrário da europeia não traz chuva nem favorece o voto em palhaços. A propósito de palhaçadas, imagino a cara daqueles que duvidavam do sucesso das revoluções no Médio Oriente e, ainda mais ridículo, profetizavam a troca de ditaduras "habituais" pela tirania de transtornados religiosos. Muito me tenho rido à custa deles, embora sempre no maior respeito pelo islão.


A natalidade não é quando o Estado quiser

Solidário como lhe compete, o ministro da Solidariedade mostra-se aflito com a baixíssima natalidade em Portugal: "Uma mulher que pretenda ser mãe, mais do que a disponibilidade financeira, reclama por disponibilidade para uma maior dedicação. Se tempo tivesse para os acompanhar teria mais filhos", jura Pedro Mota Soares, que propõe o trabalho em part-time da mãe ou do pai a fim de promover a disponibilidade. O Estado, claro, subsidiaria os 50% restantes.

Não percebi se a isenção parcial do trabalho seria atribuída apenas após o parto, para aumentar o período de dedicação, ou também antes do parto, para aumentar as hipóteses de fecundação. Neste último caso, convinha que ambos os progenitores beneficiassem do referido subsídio, excepto na hipótese remota de o dr. Mota Soares querer incentivar o adultério. Em qualquer dos casos, convinha apurar quem tomaria conta do bebé durante a metade do expediente cumprida pelos pais.

Muitas dúvidas, uma só certeza: a de que o voluntarismo do dr. Mota Soares não encontra eco no mundo real. Até há 70 anos, as portuguesas não gozavam de licença de maternidade. Em 1945, um contrato colectivo concedeu às trabalhadoras dos lanifícios, uma minoria no sector "feminino" dos têxteis, 30 dias de férias de parto pagas pela metade do salário. Na década de 1960, uma funcionária pública dispunha de 15 dias de licença, duplicados no início da década seguinte. Depois dos anos revolucionários de 1974 e 1975, a licença passou para 90 dias. Hoje, anda pelos 120 ou 150. Progresso? É evidente, salvo na quantidade de nascimentos propriamente ditos, os quais, indiferentes ao progressismo, vêm diminuindo com notável regularidade. Se existisse uma relação causal entre as políticas de estímulo à natalidade e a natalidade, seria fácil concluir que tudo o que as primeiras conseguiram foi reduzir a segunda a valores de facto irrisórios.

Sucede que a relação causal não existe. Ainda que os burocratas julguem o contrário, as pessoas não desenham a intimidade de acordo com leis, regulamentos ou portarias. A procriação depende da época, do meio, da cultura e sobretudo da vontade dos protagonistas crescidos da mesma - não depende da vontade do Estado. No máximo, é possível que, se o Estado desimpedisse o caminho, as circunstâncias económicas favoreceriam o nascimento de criancinhas. Mas nem isso está garantido. Garantida, só a morte. E os impostos que atrapalham a vida.


A bancarrota é constitucional

Num país em que ninguém parece acreditar na Justiça, na política e nos partidos, é interessante verificar a estrita devoção de tantos às decisões do Tribunal Constitucional, guardião de um documento ideológico e cujos membros resultam de nomeação partidária. Por mim, tudo bem. Mas não é inconsequente o respeito do TC por uma Constituição que desrespeita a realidade.

Ao contrário do que alguns pensam e tal como outros desejam, os "chumbos" do TC ao Orçamento não acabarão por correr apenas com o Governo: por este andar, arriscam-se a enxotar a troika mais o dinheiro que nos ajuda a fingir que ainda somos uma nação soberana e cheia de rigor legalista. Para cúmulo, nem os senhores juízes pagam a diferença do bolso deles nem a bancarrota é inconstitucional. Quando o dr. Seguro diz que quem criou o problema dos 1300 milhões deve resolvê-lo, falhou o destinatário e, sem surpresas, não acertou no resto.

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