A caminho do Estado “social”
Antigamente,
ou seja até há meia dúzia de dias, inúmeros portugueses criticavam o Governo
por apostar na receita e ignorar a despesa. Eu estava com eles. Desde que Vítor
Gaspar decidiu compensar os votos do Tribunal Constitucional (TC) mediante a
suspensão de determinados gastos públicos, muitos dos portugueses referidos
saltitam furiosos, a acusar o Governo de "chantagem" e
"vingança". Não estou com eles.
Se não
for pedir demasiado, convém que as pessoas decidam se preferem corrigir as
contas públicas pelo lado do emagrecimento da coisa pública ou pelo lado do
emagrecimento dos contribuintes (também existe aquela ala folclórica que
prefere não corrigir contas nenhumas, mas aqui falo de gente crescida). O que
não se pode é defender apenas o fisco que estrangula os outros ou a poupança
que não nos afecta. Condenar o aumento de impostos e, em simultâneo, atacar o
seu reverso é, sem ofensa, uma palermice.
Ainda por
cima quando o reverso é tão vago. Bem sei que os "telejornais" gostam
de começar em tom dramático. Porém, o "congelamento" dos gastos é
limitado no alcance e provisório na duração. Além disso, nem sequer é inédito,
visto que em Setembro passado aconteceu decisão similar e, talvez porque então
o PS ainda não revelava desesperada urgência em chegar ao poder, sem uma
fracção do drama actual. Histeria à parte, conforme aliás explicou Guilherme
d'Oliveira Martins, um reduto de sensatez em pleno manicómio, trata-se apenas
de um remendo destinado a ganhar tempo enquanto não se encontra uma alternativa
aos mil e trezentos milhões com que o TC embirrou. É uma necessidade, não uma
convicção.
Antes
fosse uma convicção, visto que um Governo austero com o dinheiro alheio é
melhor do que um Governo magnânimo. Infelizmente, o estranho
"liberalismo" do primeiro-ministro e do ministro das Finanças é na
essência pouquíssimo liberal. Sempre que não se entretêm a saquear os cidadãos,
os esforços deles dedicam-se a evitar reformas e a adiar os "cortes"
de 4 mil milhões, agora elevados a 5 mil e 300 milhões ou, há quem garanta, a 7
mil milhões. Caso alguma vez procedam de facto ao "corte" estrutural
de uns cêntimos será sob ameaça da troika, a qual, se continuarmos a brincar às
nações independentes, seca definitivamente a fonte e transforma-nos enfim no
Estado "social" com que tanto sonhamos. "Social" no sentido
de miserável, claro
Fascismo/antifascismo
Nos
campos da internet onde apascenta a extrema-esquerda, reina a felicidade graças
à morte de Margaret Thatcher, vulgo "a fascista". A aplicação do
epíteto, em Portugal de resto muito desprendida, é elucidativa do tipo de
estrutura mental que o aplica. A sra. Thatcher venceu três eleições populares?
Fascismo. A sra. Thatcher desembaraçou o Reino Unido do jugo sindical que a
generalidade da população não elegera? Fascismo. A sra. Thatcher encolheu o
peso do Estado em prol da escolha individual? Fascismo. A sra. Thatcher
modernizou económica e socialmente o Reino Unido? Fascismo. A sra. Thatcher
venceu nas Falkland uma guerra iniciada por uma ditadura decidida a vergar a
autodeterminação da comunidade local? Fascismo. A sra. Thatcher ajudou a
derrubar os totalitarismos do Leste europeu? Fascismo, fascismo, fascismo.
Se bem
percebo, um governante "fascista" é aquele que favorece a democracia,
promove a liberdade, desampara a vida dos cidadãos e, se possível, combate
regimes fascistas a sério. Em contrapartida, um líder "antifascista"
que se preze desrespeita eleições, professa a submissão dos cidadãos, arrasa a
economia e, se adicionar uns pozinhos de culto da personalidade e o adequado
castigo dos dissidentes, parece-se imenso com um fascista de facto. Ou a
extrema-esquerda é ainda mais tresloucada do que aparenta ou a ciência política
anda redondamente enganada há largas décadas. Por mim, aposto na segunda
hipótese.
Navegar é preciso
Não é um
bocadinho esquisito lamentar o surto de emigração enquanto se celebra o sucesso
do actor Diogo Morgado nos Estados Unidos? Das duas, uma: ou os jornalistas vão
para os aeroportos perguntar a quem parte se escreveu uma carta chorosa ao
Presidente da República ou escrevem textos entusiásticos sobre os
cachorros-quentes que o sr. Morgado partilhou com Oprah Winfrey. Por outras
palavras, ou decidem que emigrar é uma condenação ou decidem que é uma
oportunidade.
A verdade
é que ficar por aqui não nos leva longe, figurativa ou literalmente. Quando
andava por Portugal a ganhar a vida em telenovelas (é o que li), o sr. Morgado
era-me um completo desconhecido. E suspeito que mesmo os que o conheciam não
entravam em delírio patriótico à mera menção do seu nome. Os noticiários
televisivos, pelo menos, não dedicavam reportagens todas satisfeitas à inegável
popularidade e à alegada sensualidade do homem. Na América, o sr. Morgado
conseguiu o papel de protagonista do Novo Testamento numa versão filmada da
Bíblia e, hoje, é uma moderada celebridade.
E o mesmo
vale para as vedetas da bola e, apesar dos diversos níveis de fama e de
prestígio, para qualquer ofício: é absurdo festejar Cristiano Ronaldo e
criticar o processo que, em Manchester e Madrid, fez dele aquilo que ele é. Nem
todos os casos de emigração correm bem? Com certeza, embora aparentemente só os
casos de emigração podem correr muito bem. Limitarmo-nos à terrinha é
contentarmo-nos com a gastronomia, o clima e uma dimensão quase fatalmente
irrisória. É, de acordo com o carácter e o talento, uma escolha ou uma
necessidade legítimas. Não é o melhor dos mundos, que aliás existe neste mundo
mas não neste país. Se atendermos às probabilidades e ao bom senso, seria
impossível que existisse: em Lisboa ou em Figueiró dos Vinhos, um
cachorro-quente jamais é notícia.
O problema da habitação
A língua
portuguesa não tem tradução exacta para "gentrification", palavra
inglesa que define a transformação de um espaço urbano habitado por gente pobre
numa zona aburguesada. Mas, excepto se a "gentrificação" beneficiasse
subculturas específicas, como os artistas em Manhattan ou os homossexuais em
São Francisco, o jornalismo português e não só português tem o sentimentalismo
pronto a ser derramado sobre processos do género. Veja-se o exemplo do Bairro
do Aleixo, no Porto, onde a implosão de mais uma torre suscita inúmeras
reportagens lacrimosas e indignadas.
Vê-se
residentes compreensivelmente atarantados com a mudança brusca nas suas vidas.
Vê-se o oportunismo político a desfilar demagogia por entre os escombros. Vê-se
a sugestão de que Rui Rio, vulgo o Cruel, deseja suprimir uma comunidade pobre
em prol da libertação dos terrenos para condomínios de luxo. Não se vê muitas
alusões a um pormenor sem importância, o de que o Aleixo é um centro comercial
de drogas ditas "duras" e um entreposto da desgraça humana. E não se
vê nenhuma alusão a uma evidência: pior do que a decisão dos poderes públicos em
transladar à força os moradores de um bairro "social" foi a decisão
inicial de criar o bairro "social".
Não nego
que o país saído do golpe de Estado de 1974 exibisse graves carências de
habitação. O que parece amplamente provado é que enfiar largas centenas de pessoas
em aglomerados de betão resolve mal os problemas citados e inaugura outros.
Alternativas? Eis um assunto que, por uma vez, importaria ter sido debatido.
Porém, desde a primeira hora que o debate deu lugar à compra directa de votos e
à propaganda. E, hoje, as consequências da fraude dissolvem-se à custa de
compaixão simulada e relatos de "interesse humano" nos quais os
humanos são tratados com o maior dos desprezos.
Sem comentários:
Enviar um comentário