quarta-feira, 21 de março de 2012

PRIMAVERA ÁRABE OU INVERNO ISLÂMICO?

(imagem recolhida aqui)

                Perguntaram certa vez a um líder chinês contemporâneo a sua opinião sobre a Revolução Francesa. Ele respondeu que não poderia responder, porque o fato era muito recente. A chamada “primavera árabe” é tão recente que sequer terminou de começar. Na Síria ainda se luta para derrubar a ditadura, o Bahrein segue sob lei marcial, na Líbia as milícias não foram desarmadas. No entanto, algumas respostas já podem ser dadas.
               
               Mesmo porque, algumas independem dos fatos, pois dependem somente das expectativas. A começar do próprio nome geral dos eventos. Se, de um lado, aqui a “primavera” evoca, em termos gerais, o fim do “inverno” político das ditaduras, por outro também evoca um acontecimento histórico particular: o fim do império soviético e a “primavera democrática” que semeou a flor da liberdade política (horrível, mas pertinente) nos países do Leste Europeu, na última década do século XX. Na verdade, esta conotação é a mais relevante, pois o fim em si de uma ditadura não garante o que irá substituí-la. No Irã, por exemplo, a ditadura ocidentalizante do xá foi substituída, depois de uma revolução popular, pela ditadura teocrática dos aiatolás. Portanto, a “primavera árabe”, mais do que a constatação da queda das ditaduras, é a manifestação da expectativa de que elas sejam substituídas por democracias. Neste sentido, não apenas nada é recente demais para ser compreendido, como se pode mesmo prever o futuro.
               
              Não há como o resultado das revoltas árabes ser o florescimento democrático. Porque este não se dá em função de expectativas, mas de fatos, ou seja, de condições necessárias. Enterrar uma pequena pedra e esperar que dali nasça uma flor não é uma expectativa razoável. E expectativas não-razoáveis, por definição, não podem ser realizadas. Plantas só podem nascer de sementes, e de solos férteis e bem regados. Nenhuma dessas condições existe no caótico jardim atual da política árabe.
                
              É verdade que algumas plantas se desenvolvem por enxertia. A democracia, porém, não é desse tipo. Fosse assim, poderia ser facilmente transplantada para terrenos em que jamais vicejou, o que não acontece. E plantas em que a enxertia não funciona só podem mesmo nascer de sementes – mais ainda, da vitalidade de uma semente capaz de lançar raízes antes de florescer.

Se a “semente” da democracia é uma ideia, ou seja, a ideia da soberania popular, do poder do povo e de seus representantes soberanamente indicados, suas raízes são a sociedade civil, e seu terreno, a liberdade econômica, a liberdade de organização e a liberdade de expressão. Estas três liberdades civis fundamentais, no sentido duro da palavra, ou seja, que fundamentam a prática da democracia, podem ser criadas literalmente por decreto, isto é, por leis. Porém não podem ser praticadas por decreto.

Uma das explicações – se mitos carecem de explicações – para os quarenta anos que Moisés demorou para levar o povo judeu através dos poucos quilômetros do Sinai, é que ele o fez de propósito. E seu propósito era deixar que todos os nascidos no cativeiro egípcio morressem, e que todos os recém-chegados ao novo país não tivessem sido escravos. Porque não se constrói um novo país com escravos. De modo semelhante, não se constrói uma democracia sem uma sociedade civil.

Uma sociedade civil vicejante pode, em certas circunstâncias históricas, ser posta sob uma ditadura, como aconteceu no Chile em 1973, ou na França em 1941, com a invasão alemã. Mas o contrário não é verdadeiro: uma população em que a sociedade civil não existe não pode criar a democracia. A prova maior são os próprios países árabes.

A pergunta mais importante sobre a “primavera árabe” é por que ela foi necessária. E a resposta não se limita à luta contra a ditadura. Em países onde a ditadura sufocou a sociedade civil e a democracia, o fim da ditadura foi o retorno à democracia – a própria instalação da ditadura fora motivada pela necessidade de alguns grupos políticos de extinguir a democracia para impor seu programa político. Não é o caso árabe. Os países árabes não têm qualquer forma de democracia em sua história, passando da submissão ao Império Otomano à tutela das potências europeias às ditaduras contemporâneas. Daí, em parte, jamais terem desenvolvido uma sociedade civil – que pressupõe uma sociedade com algum grau de autonomia em relação aos soberanos, da qual a democracia será a máxima expressão política.

A outra parte da explicação é sociocultural. As sociedades árabes não conheceram, como o Ocidente, o desenvolvimento do Estado nacional moderno, para lá tardiamente transplantado pelos poderes coloniais europeus. A organização sociopolítica histórica árabe é a tribal. Apesar de ter havido reinos árabes antes de sua incorporação ao Império Otomano, as relações políticas eram de vassalo e senhor, entre o governante central e os chefes tribais, enquanto a totalidade da população se constituía, em termos político-jurídicos, de servos, pois faltos de verdadeiros poderes políticos, sem qualquer autonomia ou representatividade. Além disso, o patriarcalismo puro e duro impunha às mulheres a condição de servos de servos, numa intensidade sem paralelo no Ocidente. Sem uma sociedade nacional, ou transtribal, e sem alguma autonomia e representatividade política centrada nos indivíduos, possibilitando que se tornem verdadeiros agentes políticos, não existe sociedade civil. Os países árabes ainda não chegaram a esse estágio.

Desenvolvida a sociedade civil, a construção da democracia pressupõe um enfraquecimento do poder do Estado absolutista, na exata medida em que aumenta a soberania popular, manifestada nas liberdades civis, para não falar na tradução prática dessas liberdades civis em organizações civis e políticas minimamente representativas. Todo esse processo, historicamente, precede a criação da democracia formal.

O caso mais claro e mais clássico é o inglês, em que a democracia não nasceu de nenhuma revolução, mas sim de um lento processo histórico de transferência de poder do rei, primeiro para a nobreza, depois para a burguesia, e por fim para as classes médias e trabalhadoras. A burguesia e as classes médias, assim como as determinantes liberdades civis, existiam antes da democracia formal, que foi sua consequência, e não contrário.

                Por que, afinal, povos em que o tribalismo e o patriarcalismo islâmico ainda são as forças socioculturais mais evidentes construiriam de repente e do nada uma democracia nacional que mereça o nome? Por que a ditadura se exauriu como opção aceitável? O caso iraniano, persa/xiita, prova o contrário: ainda resta testar a teocracia sunita nos países árabes. Pois “a ditadura”, na verdade, não é singular, e sim plural. Há muitas formas de ditadura. Portanto a ditadura, que no singular sequer existe, não está exaurida. Rejeitar uma ditadura não é causa ou mecanismo suficiente para construir uma democracia.

                Por má-fé ou por ignorância, fala-se muito, hoje, no “modelo turco”, como “prova” de que islã e democracia não são água e óleo, de que democracia e islã são compatíveis, e de há afinal um “caminho islâmico” para a democracia. Bem, se a Turquia é a melhor prova disso, ainda falta uma prova boa o bastante. Em primeiro lugar, a Turquia não é árabe. A relevância disso está no fato de o povo turco ser, em si mesmo, uma única e grande tribo, a dos turcos otomanos. Portanto, inexiste o problema do tribalismo. Em segundo lugar, a Turquia era o centro do Império Otomano, portanto, a existência de um Estado centralizado não lhe é estranha. Em terceiro lugar, o próprio Estado turco, através do exército, sob a liderança do coronel Kemal Mustafá, o “Ataturk” (“Pai dos Turcos”), impôs uma radical e brutal desislamização do país a partir dos anos 1920, mantendo depois, ao longo de todo o século XX, o papel de guardião da secularidade do Estado. A recente chegada ao poder de um partido islamita, sob o comando do atual líder turco, Recep Erdogan, prova portanto o contrário do que se pretende: apesar da desislamização promovida pelo exército no início do século XX, e apesar de sua agressiva tutela secularista ao longo de quase um século (incluindo golpes militares quando partidos islâmicos se aproximaram do poder), a Turquia se vê ainda hoje ameaçada pela reislamização. A Turquia é, na verdade, a prova cabal das dificuldades aparentemente instransponíveis de fazer de um país muçulmano um Estado democrático.

                O Egito acaba de encerrar suas primeiras eleições legislativas da era-pós Mubarak. Nada menos do que 75% do novo Parlamento ficaram nas mãos de dois grupos islâmicos, a historicamente infame Irmandade Muçulmana, e o não menos infame grupo salafista egípcio, para o qual a Irmandade não é islâmica o bastante... Algo semelhante aconteceu na Tunísia, primeiro país onde a “primavera árabe” desabrochou, e no Marrocos, apesar da tutela anti-islamita do rei. Esses resultados, porém, não foram tão alardeados pela mídia quanto o súbito e momentoso florescer da “primavera árabe”. Infelizmente, talvez não seja possível postergar por muito tempo a constatação de que essa efêmera “primavera árabe”, na verdade, não passou do início de um longo, escuro e frio inverno islâmico.

(Este artigo foi escrito em cima do encerramento dessas eleições, para ser publicado neste blogue)

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