Sua Excelência, o autarca
Há dias,
li um jornalista jurar que a Lisboa actual está sempre em festa, cheia de
animação, eventos culturais, artes de rua e "iniciativas" em geral,
logo (sublinho o "logo"), o jornalista em causa apoia a reeleição de
António Costa. Ainda que não fosse essa a intenção, é difícil resumir melhor a
relação dos portugueses com o poder, e sobretudo com o poder local.
Para o
cidadão comum, aquilo que acontece numa cidade, Lisboa ou outra, é
necessariamente resultado das decisões - ou da falta delas - dos senhores que
ocupam a autarquia. Se a cidade é pródiga em bares, espectáculos musicais,
exposições e homens-estátua, o mérito é da câmara municipal. Se a cidade anda
mortiça, a culpa é da câmara municipal. Os munícipes, criaturas sem vontade
própria que seguem as decisões autárquicas como os zombies seguem mioleira
fresquinha, não são para aqui chamados, excepto para exaltar a sumidade que
espevitou a vida urbana ou criticar a nulidade que deixa a vida urbana
desligar-se às sete da tarde. Aparentemente, ninguém é capaz de se instalar a
servir copos, organizar concertos ou espirrar três vezes sem o aval, e talvez o
patrocínio, de Sua Excelência, o autarca. A ausência de vida para além dos
Paços do Concelho não só é uma concepção absurda: se calhar, é verdadeira.
Em países
civilizados, é possível visitar uma cidade, ler sobre uma cidade ou espreitar
um documentário alusivo a uma cidade e nem sequer notar a existência do senhor
presidente da câmara. Em Portugal, isso seria tão estranho quanto um vereador
balbuciar uma frase que não inclua a palavra "valências". Não há
"apontamento de reportagem" acerca de qualquer lugarejo sem
depoimento do senhor presidente. Não há jornal local sem 37 fotografias do
senhor presidente. Não há procissão de Nossa Senhora dos Aflitos sem a presença
do senhor presidente junto da protagonista. Não há instalação instalada em
galeria sem autorização do senhor presidente. Não há garrafa de vodca aberta às
duas da madrugada sem uma vénia ao senhor presidente, que afinal criou as
"condições" para que os súbditos se embriagassem com galhardia. O
senhor presidente, emanação do Estado, encontra-se por toda a parte, numa
consumação assustadora das "políticas de proximidade" que o jargão da
classe promete "incrementar".
Puro
Terceiro Mundo? Obviamente. Ou, se não apreciarem a expressão, herança de séculos
de pobreza e dependência, que mantêm o povo petrificado, à espera das migalhas
largadas por quem manda. Se a "festa" lisboeta se deve de facto ao
dr. Costa, a "festa" é uma exibição do nosso permanente atraso, hoje,
aliás, celebrado em eleições.
Uma
fraude e uma ofensa
Antes de
mais, a boa notícia: um estudo da universidade inglesa de East Anglia confirmou
que a Terra um dia se aproximará demasiado do Sol e nenhuma forma de vida
sobreviverá. A má notícia é que esse dia só ocorrerá daqui a 1,75 mil milhões
de anos, no mínimo, ou 3,25 mil milhões de anos no máximo. Ou seja, por um lado
Keynes tinha razão quando sugeria que gastássemos à tripa forra, já que
"no longo prazo", cito, "estaremos todos mortos". Por
outro, teremos muito tempo para suportar as consequências de tão desvairada
filosofia e a retórica de gente como António José Seguro.
Num discurso
em Coimbra, durante a campanha das "autárquicas", o dr. Seguro
explicou pela enésima vez que "O Estado social não é um capricho dos
socialistas, mas uma necessidade dos portugueses para combater as desigualdades
sociais". E acrescentou: "Quem defende um Estado mínimo, a única
coisa que está a dizer é que os portugueses ficam entregues à sua sorte."
A primeira frase é uma demonstração de iliteracia económica, a segunda um
insulto pouco velado à população.
Vamos por
partes. Mesmo sem perceber o que é que o "Estado mínimo" tem que ver
com o Governo em funções e mesmo sem discutir as hipotéticas virtudes do Estado
dito "social", no fundo uma maneira de submeter recursos aos
critérios redistributivos de quem manda e, com frequência, um sistema de
perpetuação da desigualdade, a verdade é que até as necessidades dos
portugueses, ou pelo menos as necessidades decretadas pelo dr. Seguro, dependem
dos meios existentes para financiá-las. Prometer maravilhas sem acautelar o
dinheiro que as paga talvez excite a ala esquerda do PS e algum eleitorado, mas
constitui de qualquer modo uma burla.
E a
segunda frase acima constitui, repito, uma ofensa. Qual é o mal de os
portugueses ficarem entregues à sua sorte? Salvo casos excepcionais de miséria
ou invalidez, a posse do próprio destino é uma bênção e uma prerrogativa da
liberdade. Infelizmente, os senhores que passeiam superioridade moral e
preocupação para com o povo entendem que o povo padece de rematada estupidez.
E, quando lhes confia a vida, o povo dá-lhes certa razão.
A
carteira e a vida
É costume
os media divulgarem extasiados que uma publicação ou um site quaisquer
distinguiram Lisboa, ou o Porto, ou o Douro, ou o Algarve, ou o Cacém como o
"melhor destino turístico" da Terra, ou da Europa, ou da Península
Ibérica, ou dos países mediterrânicos cujo nome começa pela letra pê.
O êxtase
foi menor quando um teste da Reader"s Digest colocou Lisboa no último
lugar em honestidade entre 16 cidades. Ou no primeiro lugar em desonestidade.
Eis o teste: espalharam-se 12 carteiras recheadas com documentos pessoais e 30
euros (ou o equivalente) por cada uma das cidades. E depois esperou--se a
devolução. Em Helsínquia, 11 carteiras regressaram ao dono. Em Bombaim, nove.
Em Nova Iorque e em Moscovo, oito. Em Lisboa, uma. Uma, abaixo de Madrid,
Praga, Rio de Janeiro e Bucareste, os lugares seguintes na tabela da pilhagem
de ocasião.
Conclusões?
A dimensão e a aleatoriedade do teste não chegam para tanto. No máximo, o teste
ajuda a desmontar o mito de que os pobres são menos propensos à rectidão.
Curiosamente, trata-se de um mito tão propagado pela direita
"darwinista" quanto pela esquerda "conscienciosa". Uma acha
que a pobreza reflecte os traços de inferioridade dos que a sofrem, incluindo a
preguiça ou a tendência para a trapaça. A outra sonha com uma multidão de
pobres que subverta o "sistema" através do crime. No mundo real, naturalmente,
as condições económicas não influenciam o carácter.
Mas isso
já se sabia. E, no resto, o alcance da brincadeira do Reader"s Digest é
limitado. Será que, por coincidência, o teste encontrou os únicos 11 indivíduos
malformados a operar na capital? Será que no Porto, em Braga, em Faro ou em
Coimbra os resultados mudariam ou o problema é nacional? Será que os turistas
que confessam deixar cá um pedacinho de si estão a elogiar a hospitalidade
pátria ou literalmente a constatar um facto?
Falar
sobre o tempo
Parece-me
que os peritos procuram novidades da crise económica internacional nos
indicadores errados. A maior evidência de que o pior já terá passado está no
regresso em força do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas
(IPCC), que anda outra vez a alertar para o Apocalipse.
Nos
últimos cinco anos, em parte pelas falcatruas que desacreditaram o organismo,
em parte pelo facto de as pessoas terem coisas mais sérias com que se ocupar, o
IPCC praticamente sumiu do que agora se chama "espaço mediático". O
"aquecimento global", e sobretudo o "aquecimento global"
com origem na actividade humana, afinal o evangelho do IPCC, viu-se trocado na
atenção pela "bolha" imobiliária, as complexas operações da alta
finança, os resgates da banca, os gastos dos governos e, principalmente, os
apertos das populações, mais preocupadas em chegar ao fim do mês do que em
assegurar que o Pólo Norte chegue ao fim do século.
Assistir,
em 2013, às manchetes sobre o clima que faziam furor em 2007 é, além de um
consolo nostálgico, um sintoma de que a economia internacional se encontra em
recuperação e de que, não tarda, poderemos voltar a consumirmo-nos com
ninharias especulativas. As promessas do fim do mundo são sempre uma garantia
de que o mundo vai benzinho, obrigado.
Novidades
literárias
Não sei o que é mais engraçado, se o anúncio de que o eng. Sócrates escreveu um livro, se o facto de o livro versar a tortura, se a circunstância do prefácio ser assinado por Lula da Silva, esse fenómeno de integridade e rectidão que assolou - e, por interposta gente, ainda assola - o Brasil. Por este andar, assistiremos em breve ao lançamento da "Nova Gramática da Língua Portuguesa", obra de Manuel Almeida, candidato do PTP à autarquia de Gaia. Com prefácio de Jorge Jesus.
Sem comentários:
Enviar um comentário