Jules Morot
Com a delicadeza típica dos grandes
espíritos, das pessoas de razão e coração que temos por vezes a sorte de ter
por amigos, dias atrás recebi uma carta do Jules Morot - há dois anos a
leccionar em Madagáscar - na qual o excelente autor de "Récits du parc"
me solicitava se eu não poderia vender-lhe (vender-lhe!) um cartão para azulejo
para ele ornamentar a sua casa de La Jolle. No género dum daqueles que, pouco
mais que há um par de anos, eu lhe dera para o seu entreposto (adega e salão de
provas) bem situado nos campos perto de Tours. Sugeria mesmo se não poderia ser
um igual ao que eu mesmo tenho na sala de cima da minha cabana de Arronches. É
que quando ele me visitara - e que visita mais ou menos helénica foi aquela!,
pois se fizera acompanhar, para além da sua esposa Julienne, de uma boa dúzia
de garrafas do seu afamado tintol "Pérouse", aquele de se dar estalos
co'a língua bem colocada - dizia eu, gostara do maroto do painelzito (bondade
dele).
Com fraternal sadismo,
disse-lhe que não. Com efeito, porque não vendo os meus quadros (surrealista
que sou, tenho este hábito, confesso que mau, de os fazer para meu próprio
gozo...e de alguns amigos que iam a mostras que dantes fazia mas já não faço).
Manias. Mas bom: que a seguir disse-lhe que, como me sentia ligeiramente
pachorrento não lho vendia mas...lho dava. E, como me empolgara, que ia
executar uma versão um pouco diferente do outro, embora seguisse o mesmo
figurino e estilo. E, num exagero de doçura, que lhe ia mandar não um...mas
quatro. (É que não me esquecera da semana que há 3 aninhos passei na sua
mansão, onde petisquei do fino e engorlipei do bom, sempre tudo posto num
ambiente fraternal com que os franciús que se prezam, acho eu, gostam de
acatitar convivas).
Foi nessa altura que ele me deu,
para que eu o traduzisse, um dos seus poemas, que em anexo apresento aos caros
confrades para aquilatarem da categoria real deste criador de vinhos doublé de
professor, de gastrónomo e de poeta em pleno.
E fiz seguir os
cartões. No fundo o privilégio era meu. E não digo isto a reinar!
(... Em meados do próximo ano lá os irei contemplar, estes filhos emigrados
(como muitos portugueses dest'época algo surpreendente...).
E, o que será muito melhor, enquanto ambos os dois, mais a
Julienne anfitriã de brios, degustarmos calmamente assim umas coisinhas
deliciosas. Evohé!
O URSO GANIMEDES
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Ele levanta-se
coitado dele
e nós sentimos aquele arrepio
inquietante
da sexta-feira ligeiramente escura
Cristãos comunistas desportistas
consumidores de alcachofras
e mesmo outros de crânio em silhueta
contra a luz da lua
no meio do frio glacial do continente
antártico
se bem me entendo financistas
agentes de câmbio
comerciantes ruidosos alunos de
artes polícias
personagens que fazem navegar os
barquinhos nos tanques dos seus
jardins da infância
Velhos capões
Notamos dizia eu ou
melhor notam vocês os que
ainda por aí têm sonhos
a sua poderosa silhueta de comedor de
bagas de zimbro
de fruta da época se a conseguia
apanhar
de uma perna descarnada de montanhês
nos tempos da grande solidão feliz
O urso que outrora ia de Somner
Valley a Livington pelo meio
das gramíneas das faias das nogueiras
até às primeiras encostas
da grande montanha verde e negra
***
O meu urso
suave como um lilás
como um carvalho das Ardenas
sem saber ler sem saber escrever
O de muito perto da terceira subida nas
Rochosas
ou mesmo da quinta ou da sétima
lá onde havia entre os abetos seculares
um pequeno
lago sonolento
e se dizia que por ali emigrantes
antigos tinham rebentado
no inverno coloquial de Wyoming evocado
em Toulouse
Aquela senhora conferencista de boa
perna dava-me volta ao miolo
Até me fazia sentir câmbrias
de Santa Fé a Colorado Springs
o meu urso meu é claro ainda que
de mil transeuntes contentinhos
Aquele que virando a cabeça
erecto nos faz recordar o Quaternário
na sua imensa estrutura de velha fera
indolente.
O Ganimedes
calmo empregado entre funcionários
engravatados
pensa que pelas ruas faria dar gritinhos
às raparigotas sem cuecas
a moda mais na moda de agora
imaginem vocês
a sua companheira ursa perdida com a
barriga ao léu
***
Ganimedes
No Zoo parisiense ele é um senhor cheio
de categoria
mau-grado o seu silêncio habitual
chegam a atirar-lhe maçãs
muitos lhe lançam
amendoins ou nozes de Agosto
e avelãs e até um maço de cigarros
amarfanhado
O meu urso
Primo do meu primo Ribonard e dum
grandalhão
mais tosco que a rocha Tarpeia
taberneiro merceeiro em La Jolle
onde eu ia com o tio Lenôtre
comprar botas de caçador de perdizes
de cigarrinho mais que malcheiroso
sempre ao canto da bocarra
sempre ensopado em branco e aguardente
barata.
Ganimedes
sob o luar e os planetas libertos
aguarda o momento de estoirar.
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2 comentários:
Muito belo, a prosa os versos as ilustrações. Bjinho, Amélia
Faço minhas as palavras da oradora antecedente.
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