segunda-feira, 2 de junho de 2014

Azulejos para Madagáscar


Jules Morot


 Com a delicadeza típica dos grandes espíritos, das pessoas de razão e coração que temos por vezes a sorte de ter por amigos, dias atrás recebi uma carta do Jules Morot - há dois anos a leccionar em Madagáscar - na qual o excelente autor de "Récits du parc" me solicitava se eu não poderia vender-lhe (vender-lhe!) um cartão para azulejo para ele ornamentar a sua casa de La Jolle. No género dum daqueles que, pouco mais que há um par de anos, eu lhe dera para o seu entreposto (adega e salão de provas) bem situado nos campos perto de Tours. Sugeria mesmo se não poderia ser um igual ao que eu mesmo tenho na sala de cima da minha cabana de Arronches. É que quando ele me visitara - e que visita mais ou menos helénica foi aquela!, pois se fizera acompanhar, para além da sua esposa Julienne, de uma boa dúzia de garrafas do seu afamado tintol "Pérouse", aquele de se dar estalos co'a língua bem colocada - dizia eu, gostara do maroto do painelzito (bondade dele).

   Com fraternal sadismo, disse-lhe que não. Com efeito, porque não vendo os meus quadros (surrealista que sou, tenho este hábito, confesso que mau, de os fazer para meu próprio gozo...e de alguns amigos que iam a mostras que dantes fazia mas já não faço). Manias. Mas bom: que a seguir disse-lhe que, como me sentia ligeiramente pachorrento não lho vendia mas...lho dava. E, como me empolgara, que ia executar uma versão um pouco diferente do outro, embora seguisse o mesmo figurino e estilo. E, num exagero de doçura, que lhe ia mandar não um...mas quatro. (É que não me esquecera da semana que há 3 aninhos passei na sua mansão, onde petisquei do fino e engorlipei do bom, sempre tudo posto num ambiente fraternal com que os franciús que se prezam, acho eu, gostam de acatitar convivas).

  Foi nessa altura que ele me deu, para que eu o traduzisse, um dos seus poemas, que em anexo apresento aos caros confrades para aquilatarem da categoria real deste criador de vinhos doublé de professor, de gastrónomo e de poeta em pleno. 

  E fiz seguir os cartões. No fundo o privilégio era meu. E não digo isto a reinar!



   (... Em meados do próximo ano lá os irei contemplar, estes filhos emigrados (como muitos portugueses dest'época algo surpreendente...).



     E, o que será muito melhor, enquanto ambos os dois, mais a Julienne anfitriã de brios, degustarmos calmamente assim umas coisinhas deliciosas. Evohé!


   
O URSO GANIMEDES
Ele levanta-se
coitado dele
e nós sentimos aquele arrepio inquietante
da sexta-feira ligeiramente escura
Cristãos comunistas desportistas consumidores de alcachofras
e mesmo outros de crânio em silhueta contra a luz da lua
no meio do frio glacial do continente antártico
se bem me entendo  financistas agentes de câmbio
comerciantes  ruidosos alunos de artes polícias
personagens que fazem navegar os barquinhos nos tanques dos seus
jardins da infância
Velhos capões
Notamos dizia eu  ou melhor    notam vocês os que
ainda por aí têm sonhos
a sua poderosa silhueta de comedor de bagas de zimbro
de fruta da época se a conseguia apanhar   
de uma perna descarnada de montanhês
nos tempos da grande solidão feliz
 O urso que outrora ia de Somner Valley a Livington pelo meio
das gramíneas das faias das nogueiras até às primeiras encostas
da grande montanha verde e negra

                                  ***
O meu urso
suave como um lilás
como um carvalho das Ardenas
sem saber ler sem saber escrever
O de muito perto da terceira subida nas Rochosas
ou mesmo da quinta ou da sétima
lá onde havia entre os abetos seculares um pequeno
lago sonolento
e se dizia que por ali emigrantes antigos tinham rebentado
no inverno coloquial de Wyoming evocado em Toulouse

Aquela senhora conferencista de boa perna dava-me volta ao miolo
Até me fazia sentir câmbrias

de Santa Fé a Colorado Springs
o meu urso  meu é claro ainda que de mil transeuntes contentinhos
Aquele que virando a cabeça   erecto   nos faz recordar o Quaternário
na sua imensa estrutura de velha fera indolente.

O Ganimedes
calmo empregado entre funcionários engravatados
pensa que pelas ruas faria dar gritinhos às raparigotas sem cuecas
a moda mais na moda de agora   imaginem vocês
a sua companheira ursa perdida com a barriga ao léu
                                    
                                          ***

Ganimedes
No Zoo parisiense ele é um senhor cheio de categoria
mau-grado o seu silêncio habitual
chegam a atirar-lhe maçãs   muitos lhe lançam
amendoins ou nozes de Agosto
e avelãs e até um maço de cigarros amarfanhado

O meu urso
Primo do meu primo Ribonard e dum grandalhão
mais tosco que a rocha Tarpeia
taberneiro merceeiro em La Jolle  onde eu ia com o tio Lenôtre
comprar botas de caçador de perdizes
de cigarrinho mais que malcheiroso sempre ao canto da bocarra
sempre ensopado em branco e aguardente barata.
Ganimedes

sob o luar e os planetas libertos aguarda o momento de estoirar.


2 comentários:

Anónimo disse...

Muito belo, a prosa os versos as ilustrações. Bjinho, Amélia

ora viva disse...

Faço minhas as palavras da oradora antecedente.