domingo, 24 de março de 2013

É assim que se faz a Estória (5): "Quando comi lagosta no avião..."


Nicolau Saião, Panda sedutor


É este o título deste texto de Nuno Rebocho, que me foi enviado por ele mesmo:


Acompanhava, com uma caravana de jornalista, o então Primeiro-Ministro de Portugal, Mário Soares, à Alemanha Federal, quando - pela vez primeira e única – comi lagosta a bordo de um avião. Que o Marócas (assim lhe chamávamos, numa mistura de amor e ódio) gostava de se dar a estas grandezas de novo-riquismo… Dessa feita, ia ele a convite da Fundação Friederich Erbert para perorar em Bad Godesberg que os dólares investidos pelos alemães na fundação e apoio do PS não tinham corrido em vão e valeram a pena: os socialistas portugueses ditavam cartas então na Europa e tinham assumido o poder em Portugal. Corria o ano de 1985, se a memória não me atraiçoa.

Que era luzida a comitiva portuguesa. Estavam o Batista Bastos, o Fernando Assis Pacheco, o Fernando Rosas, e muita outra gente que no momento não recordo. E estava eu. Suponho que na Alemanha se juntou a nós o Hernâni Santos. Aterrámos em Koln (Colónia), fomos para Bona, onde ficámos hospedados, e daí seguimos para Bad Godesberg.

Para diversão nossa, Mário Soares foi-se libertando amiúde das normas protocolares, o que deixava em desespero os rigorosos alemães. Metia-se com gente em público, desprezava os seguranças, despertava o pânico nas germânicas fileiras. Mas lá ia levando a água ao seu moinho, vendendo a imagem de que os “afilhados” lusitanos se tinham transformado em grandes senhores e estavam ali para ensinar às gentes, industriando os antigos suseranos na arte de ter sucesso. Impávamos! Sentíamo-nos grandiosos e encarregámos o insuspeito BB de discursar a nossa gratidão ao Marócas, o que fez.

Ele tinha destas coisas. Lembro-me de um Dez de Junho em Portalegre, em que relegou para segundo plano uma monumental bebedeira do Vasco da Gama Fernandes, então Presidente da Assembleia da República, que – de grão na asa – se pusera a reger a banda que engalanava a cooperativa de Fortios: Mário Soares, Primeiro-Ministro, abeirou-se, retirou-lhe o chapéu de chefe da banda e enterrou-o na cabeça. De batuta em punho, pôs-se a reger os músicos.

Foi nessa altura que conheci mestre Javigas, de Portalegre, de quem me tornei amigo. Javigas tinha um grave defeito – volta não volta, enfrascava-se, perdendo então a noção de quanto fazia. Foi numa situação dessas que lhe dei três colmeias para ele me fazer o favor de as colocar no alto da Serra S. Mamede. Em má hora o fiz. O amigo Javigas colocou as colmeias, lá isso colocou, tal como eu lhe pedira, mas estava de tal maneira bêbado que esqueceu onde as colocara. Assim se esfumaram as minhas ambições em me fazer apicultor.

Voltando a tal ida a Alemanha, que ficou pintalgada de incidentes. Por exemplo, sofria eu de enxaquecas – horríveis dores de cabeça provocadas pela sinusite. A viagem de avião ocasionara que a maleita fizesse das suas. O problema é que varrera-se da memória o alemão que aprendera no liceu. Então, como se dizia “farmácia” naquela língua de trapos? Resolvi sair do hotel, o Am Tuppenfeld, e descer a Konrad Adenauer Strasse: ao fundo, vi “Apotheke”. Lembrei-me: “Apotheke” é “farmácia”! Mas como pedir comprimidos para as dores de cabeça? Fui-me recordando: “Schmerz” é “dor”, “Kopf” é “cabeça”. Ergui as mãos, entrei na botica e desatei aos gritos - “Schmerz Kopf, Schmerz Kopf!”. Respondeu o farmacêutico, compreendendo: “Ah, eine Aspirine?”. Não me lembrara o óbvio – a aspirina era alemã, da Bayer.

Nuno Rebocho