sábado, 2 de março de 2013

CONTRA ERDOGAN OU A FALÁCIA DA ISLAMOFOBIA


Durante o 5º fórum da Aliança das Civilizações, ocorrido recentemente em Viena, [o primeiro-ministro turco Recep] Erdogan disse que, "como acontece com o sionismo, o antissemitismo e o fascismo, agora é inevitável considerar a islamofobia como um crime contra a humanidade" (http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2013/03/01/eua-ve-como-ofensivo-comentario-de-erdogan-sobre-sionismo-diz-fonte-do-governo.htm).


Se isto for afinal verdade, é então necessário, antes, considerar o próprio termo islamofobia, a fim de prevenir ou dirimir dúvidas, equívocos e mesmo possíveis erros de interpretação.


1 As fobias 


Fobia (do grego fóbos, medo) significa modernamente medo irracional. A conotação vem da medicina, onde a palavra é usada para descrever, bem, as fobias: aracnofobia (medo irracional de aranhas), claustrofobia (de lugares fechados), agorafobia (de lugares abertos), acrofobia (de lugares altos) etc. O primeiro fato a notar é que a vítima de uma fobia não é o objeto do medo (o objeto fóbico), mas quem sofre esse medo irracional e paralisante. Na aracnofobia, não se tratam as aranhas, mas quem as teme. Na acrofobia, não se encurtam as escadas. Por definição, nas fobias, o objeto do medo é neutro, daí a reação ser irracional e problemática. E, como regra, os fóbicos não ameaçam seus objetos, mas deles fogem. Um claustrofóbico não ataca elevadores. Os elevadores, portanto, pouco têm a temer.

            O termo islamofobia foi, muito provavelmente, criado a partir de homofobia. Pode-se inferi-lo pela antecedência e difusão do último. Acontece que o próprio termo homofobia já foi um primeiro equívoco terminológico. E não irrelevante.


            2 O primeiro equívoco


Criado à semelhança dos termos fóbicos médicos, homofobia pretende apontar a irracionalidade da aversão aos homossexuais. De fato, uma escada tem tanta culpa pela acrofobia de alguém quanto um gay pela homofobia de outrem. E esta deve ter sido a razão da adoção do termo. Seu equívoco reside no fato, despercebido por seus proponentes, de que o fóbico é a verdadeira vítima da fobia: o fóbico sofre a fobia e sofre com ela. Além disso, se o termo, apesar de tudo, marcou e explicitou a neutralidade ou não-responsabilidade dos gays pela fobia alheia, foi pagando o preço, caro e grave, de escamotear um aspecto ainda mais importante.

Na chamada homofobia, a neutralidade, ou seja, a mera existência dos gays e a consequente irracionalidade da aversão dos homofóbicos, não é o que mais importa, pois este fato oculta outro, verdadeiramente definidor. À diferença das verdadeiras fobias, na homofobia não há o medo como elemento central e suficiente da reação irracional: há o ódio. A fobia é um medo; a homofobia, um ódio. O termo é, portanto, um equívoco, que oculta a questão central – e perigosa.  

Miso, em grego, significa aversão. Misoginia significa, assim, aversão às mulheres, sem qualquer componente de medo (mas com algum de desprezo). A diferença, sutil mas significativa, é que quem tem medo é objeto de seu medo, ou seja, sua vítima, enquanto quem tem aversão é também sujeito, agente de sua aversão. O termo misoginia é, portanto, perfeito, por marcar a responsabilidade de quem a sente. Neste sentido, homomisia seria um termo melhor, eliminando a possível vitimização pelo medo do dito homofóbico. Mas ainda insuficiente, pois o componente central do dito homofóbico não é seu pretenso medo nem sua real aversão, mas seu verdadeiro ódio. A homofobia deveria ser corretamente chamada, enfim, de homoneiquia (de neikos, ódio). Mas isto seria dar ares eruditos desnecessários a um mero preconceito social. Abandonemos, então, toda essa linhagem de termos greco-clínicos, e tentemos o simples latim, mais próximo e mais claro, seguindo, agora, não o modelo das fobias, mas o do ódio racial, do qual o mais famoso é o antissemitismo.

Ao contrário do equívoco e equivocado termo homofobia, antissemitismo é uma palavra direta e clara, além de verdadeira, pois aponta a responsabilidade de quem o sente ou professa diretamente para quem o professa ou sente. O antissemita não é objeto ou vítima de fobia alguma, mas sujeito e agente de sua negação, ou seja, de seu ódio. Se a palavra homofobia esconde o ódio do homofóbico atrás de seu pretenso e falso medo, invertendo, no limite, a relação de agressor e vítima, antissemitismo deixa as coisas claras, e claramente em seus lugares: o sujeito é anti-semita, é contra os semitas, contra os judeus. O termo mais próprio para a homofobia deveria ser, enfim, anti-homossexualismo. O sujeito não é “homofóbico”, pobre presa de suas fobias irracionais face aos gays. Ele é, por seu próprio arbítrio, anti-homossexual. Simples assim. Claro assim. E consequente assim: pois se se trata de um anti-homossexual, trata-se, em primeiro lugar, de um negador da individualidade alheia, que submete um indivíduo a um estereótipo grupal. E como esse estereótipo é integralmente negativo, razão de seu rechaço, sintetizado no prefixo anti-, os dois elementos do ódio político-racial estão presentes: desindividualização e antagonismo grupal. A homofobia, tomada ao pé da letra, é um problema do homofóbico. O anti-homossexualismo é um problema da sociedade, da cultura, da política e da jurisprudência. O anti-homossexualismo é, no limite, do âmbito criminal.

Tudo isso, porém, é algo ocioso em relação ao próprio termo homofobia, pois apesar de seu equívoco denotativo, as conotações que adquiriu o tornam, na prática, um sinônimo de anti-homossexualismo. Ninguém se engana quanto a isso. Mas o mesmo não vale para o termo mais recente dele derivado, a islamofobia.
 

3 O segundo (e menos inocente) equívoco
 

O que se pretende aqui é justamente partir da conotação consagrada de homofobia, esquecendo-se sua denotação descartada. Se a homofobia nomeia, na prática, a negação e o ódio anti-homossexuais, a islamofobia nomearia, não qualquer medo do islã, mas o ódio anti-islâmico. Porém agora, mais do que mero equívoco onomástico, há falseamento deliberado, propaganda e discurso político.

O termo islamofobia surgiu numa situação particular, tanto histórica quanto geograficamente, em que a condição de grupos muçulmanos minoritários em países europeus foi identificada à de outras minorias históricas em outros tempos nos mesmos lugares. Os muçulmanos seriam, assim, os novos gays (ou mesmo os novos judeus), e qualquer manifestação “islamofóbica” deveria ser tratada com o mesmo rechaço que a homofobia (ou o antissemitismo). É justamente o que acaba de explicitar o primeiro-ministro turco.

Mas além de um equívoco onomástico, há aí um enorme sofisma. Os gays não representam e jamais representaram qualquer ameaça sociopolítica ao statu quo – nem a ninguém. Nunca houve um grupo terrorista gay explodindo fogos de artifício coloridos para ameaçar o Estado, ou um movimento que quisesse impor o homossexualismo a uma sociedade ou a um país, determinando, por exemplo, que todos os homens deveriam usar calças justas, de preferência pretas. O mesmo não é verdade para o islã. O jihadismo, o salafismo, o terrorismo islâmico internacional, o conceito de teocracia islâmica e a centralidade e sacralidade inegociável da shariá são partes do islã, e ameaçam e pretendem ameaçar o statu quo em vários países. E aqui se escancara toda a falácia que o termo islamofobia representa e todo o falseamento que pretende criar.

Se existe a islamofobia, é porque, à semelhança da homofobia (ou do antissemitismo), os muçulmanos e o islã são vítimas minoritárias de maiorias poderosas que os negam, renegam e ameaçam. Trata-se de uma mentira somada a uma escamoteação por sinédoque: toma-se a parte, ou seja, as minorias muçulmanas em países ocidentais que sofrem preconceitos ou dificuldades (mas jamais as perseguições odiosas de que foram vítimas historicamente gays e judeus), declara-se essa parte do mundo muçulmano “vítima de islamofobia” (quando há, na verdade, um complexo problema de mão dupla e de dupla responsabilidade, em que parte importante da minoria rejeita agressivamente a cultura da maioria) e, então, passa-se a acusar de “islamofóbica” toda manifestação que aponte qualquer possível aspecto negativo no mundo muçulmano e no islã (inclusive nas referidas minorias europeias). A confusão conceitual, a resistência às mudanças, a interdição ao debate e a proteção da intolerância se fortalecem. Se eu questionar, por exemplo, a morte bárbara de uma mulher “adúltera” por apedrejamento público, como prescrito pela shariá e por isso praticado em muitos países islâmicos, não estarei sendo humanista, mas possível ou provavelmente “islamofóbico”. O mesmo vale para a crítica aos casamentos forçados em solo europeu. Ou para a mutilação genital de meninas.

O termo islamofobia torna-se uma sombra, uma ameaça e, enfim, uma acusação e um interdito, sempre à mão para ser assacado contra qualquer um que ouse fazer qualquer coisa em relação a qualquer aspecto do mundo muçulmano e do islã que não seja a louvação ou o aplauso ou, no mínimo, a suspensão da dúvida, a “aceitação multicultural”, a tolerância face à intolerância. Um cartunista satiriza um homem-bomba, retirando-lhe assim o aspecto positivo de “mártir” (shahid), que a tradição islâmica lhe empresta por sua morte pelo islã? Islamofobia. Logo, censure-se o cartunista (mas não, ou nem tanto, o homem-bomba, o que também seria, no limite, islamofóbico). Proíba-se o véu feminino na França em lugares públicos, em nome do laicismo da cultura francesa e do respeito à liberdade feminina? Islamofobia. Critiquem-se os governos teocráticos do Hamas e do Irã? Islamofobia. Denuncie-se a intolerância islâmica contra os homossexuais? Islamofobia. Aponte-se qualquer uma das inumeráveis e agressivas intolerâncias do islã, mescladas às de um renitente e não menos agressivo patriarcalismo misógino? Islamofobia.
 

4 O argumento fascista de Erdogan   
 

“Como acontece com o sionismo, o antissemitismo e o fascismo, agora é inevitável considerar a islamofobia como um crime contra a humanidade.”


           Ironicamente, Erdogan é aqui fascista, pois é um método fascista consagrado o uso deliberado da mentira, da confusão e da manipulação para obter ganhos de propaganda política. Porém um bom fascista, ao menos no sentido de um bom utilizador de seus métodos. Num só gesto, ou numa só frase, ele utiliza a identificação inegável do antissemitismo e do fascismo como “crimes contra a humanidade” para grudar tal rótulo, de um lado, no sionismo, e de outro, na “islamofobia”. Seria magistral, se não fosse falacioso – além da fascista.

            Identificar sionismo e antissemitismo é cruel, para não dizer absurdo. O nacionalismo judaico não é um movimento baseado no ódio racial, ponto. A não ser que se queira acrescentar o fato histórico de ele haver nascido justamente como reação e defesa contra o antissemitismo, contra o ódio racial (à época e no contexto do caso Dreyfuss). Trata-se, simplesmente, de mais um gesto da campanha de deslegitimação de Israel. Simultaneamente, Erdogan, ao colocar no mesmo saco de gatos pardos a islamofobia, tenta reforçar outra deslegitimação, a de qualquer crítica, a priori, a qualquer aspecto teórico ou prático do islã, que se tornaria, assim, a única criação humana acima de qualquer criticismo. Quem, afinal, quer ser acusado de crime contra a humanidade?

Se algum crime existe aqui, é essa tentativa conceitualmente totalitária de interditar a crítica mas também a denúncia e, no limite, a própria proteção àqueles que sejam vítimas de ações intolerantes ou agressivas de causa ou contexto islâmico.


5 Um neologismo feio, mas necessário


Se a islamofobia é um fantasma conceitual-propagandístico com o fim de interditar ou confundir o debate quando o que se debate é qualquer aspecto do islã, por outro lado, a liberofobia do islã nada tem de fantasmática. Trata-se de sua verdadeira fobia (pois aqui o termo médico é empregado em sua correta denotação): o medo aversivo da sociedade aberta.

Uma sociedade em que o islã não pode ocupar o centro da vida e da cultura, porque na sociedade aberta, por definição, não existe um centro. E o islã existe para ser o centro da vida muçulmana. Que isto seja uma decisão individual de cada muçulmano, naturalmente, não é aceitável, daí o islã jamais ter sido reformado no sentido moderno, de privatização e individualização da crença. Pois se a decisão passa a ser individual, o islã já não é um centro necessário ou obrigatório. A islamofobia não é um crime contra a humanidade, e sequer um problema verdadeiro. Mas a liberofobia do islã talvez o seja.

 

 

5 comentários:

Anónimo disse...

Erdogan, como os ocidentais que lhe fazem o jogo (por cobardia intelectual, por interesses mesquinhos vários?) é aquilo que se chama em sociologia informartiva uma "testemunha falsa". Ele sabe que o que diz traz implícita uma vigarice intelectual. Mas isso não lhe importa, o que conta é o resultado que visa atingir. Tal como os "marxistas" fazem. E, assim, se percebe porque é que nesta infame jogada de elevarem o islamismo ao Poder total, esquerdistas e islamitas estão do mesmo lado, em consonância. O que Erdogan visa, tal como os comunistas que restam, é oprimir-nos sem delongas. Têm, portanto, o selo do Ur-Fascismo, que é o fascismo a despeito das máscaras, como Umberto Eco disse e bem.
Bom artigo de Dholnikoff, chapelada

ns

Anónimo disse...

No meu livro "As vozes ausentes", publicado em fins de 2011 no Brasil, refiro a dada altura que o nó do problema e o grande perigo para a Democracia global vem não dos grupos terroristas muçulmanos mas dos ditos "moderados" islâmicos. Os Erdogans, que ardilosamente buscam por meios legais, facilitados pela cobardia moral ou mesmo a cumplicidade de chefes ocidentais (e sem falar na quinta-coluna que vai escavando paulatinamente)ganhar "normalmente" o que os outros, mais brutais ou estúpidos, tentam conseguir pela bomba e o sangue.
O articulista põe aqui o dedo na ferida: Erdogan não é um islamita moderado como quer fazer crer, é um fascista que, como Goebbels ou Ribentropp, sabe ardilosamente explorar a labilidade de caracter e de mentalidade dos chamberlains de agora. E o que é inquietante é que está a conseguir. Não tenho dúvidas que, em breve, uma Entidade Internacional torne efectiva uma "lei anti-islamofobia". É só uma questão de tempo - eles sabem como agir para com ocidentais onde a cobardia se une ao cinismo.

ns

Unknown disse...

De resto, o medo ao Islão nada tem de irracional. Pelo contrário, resulta do uso da razão. Compreender a História do Islão, e modo como essa História se liga às prescrições corânicas e dos restantes textos sagrados, implica temer um futuro no qual o Islão molde as nossas vidas e a dos que nos sucederão.

Em conclusão, o medo ao Islão, longe de ser irracional (uma fobia), é inteiramente racional e lógico.
É como, mutatis mutandis, temer estar cara a cara com um urso branco. Não se trata de ursofobia, mas de um saudável medo que nos ajuda a sobreviver. Enfrentar os medos, compreendê-los e desenvolver formas de lutar para os suplantar, é a chave da sobrevivência.
Quem enterra a cabeça na areia e faz de conta que a ameaça não existe, tem poucas hipóteses de prevalecer.

Anónimo disse...

Perfeitamente. Não há qualquer islamofobia doentia, mas uma perfeitamente sã. Ou como já prefiro chamar: islamo-realismo ou islamo-náusea.

Luís Dolhnikoff disse...

Concordo que o medo, receio ou desconfiança em relação ao islã nada tem de irreal ou irracional. Apenas que o termo islamofobia foi sequestrado, como discuto no artigo. Seria o caso, então, da falar francamente em anti-islamismo, assim como há o antifascismo e o anticlericalismo. Sabendo que isso acarretará ainda mais a acusação de "racismo", baseado no pressuposto falso (e nada ingênuo) da identificação entre pessoa e crença, como se ser anti-islâmico fosse igual a ser antimuçulmanos. Mas as crenças e ideias de uma pessoa não são a pessoa. Na verdade, ser contra ideias e crenças é a própria essência do debate intelectual, localização correta e lícita do anti-islamismo. Mas vão explicar isso a quem não tem interesse algum em comprendê-lo, muito ao contrário.

L.D.