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No contexto do nacionalismo árabe e do
pan-arabismo dos anos 1960, os alauítas, ramo do xiismo francamente minoritário
na população síria (10%), saiu de uma posição histórica de subserviência, na
qual vegetara durantes séculos de domínio turco-otomano (sunita), em busca da
igualdade política e social sob um Estado moderno que definiria todos os
sírios, fundamentalmente, como sírios. Na prática, à sombra do partido Baath sob
a liderança do grupo de Hafez al Assad, os alauítas tomaram o poder no novo
Estado, dominando desde então o poder executivo, além do exército, da polícia,
da justiça e da economia, na figura do próprio ditador e depois de seu filho,
Bashar Assad. A inversão histórica foi completa: ex-excluídos, os alauítas eram
agora os novos senhores e excluíram do poder a maioria sunita.
Isso deu ao regime sírio uma feição
particular, difícil de compreender sob a ótica clássica do Estado-nação
ocidental. Neste, mesmo em situações extremas, como a de uma ditadura, a
repressão é feita segundo linhas ideológico-políticas. Ou seja, trata-se ainda
de disputa política, apesar dos métodos não-civis nem civilizados, e de alvos
individuais, aqueles comprometidos com a oposição política. No caso sírio, a
lógica não é política, pois se trata de uma “pólis”, de uma nação, fraturada
dentro de um Estado uno. O regime de Assad é uma etnocracia, em que um grupo, tribo ou confissão governa sobre
outro. O que se passa, então, é mais semelhante à situação de ocupação de um
Estado por outro.
Em 1975, a Indonésia invadiu o Timor Leste
para anexá-lo. O governo militar indonésio e as forças armadas indonésias não estavam
ali, portanto, para oferecer à população os serviços fundamentais do Estado,
como segurança e justiça. Ao contrário, sua presença invertia a lógica do
Estado, tornando-o um inimigo da população local, que dele tinha de se proteger,
ou seja, a ele se opor e se recusar. O caso sírio é semelhante. O Estado,
sequestrado pela minoria alauíta, é um Estado alauíta governando uma nação
sunita (80% da população síria). A luta da população não é, portanto, contra um
líder ou mesmo contra seu regime, como nos demais casos da “primavera árabe”. A
luta é contra o Estado sírio, ou seja, o Estado alauíta.
Isso explica
algumas coisas de outro modo incompreensíveis. Por exemplo, o genocídio como
método de repressão. A palavra, criada após a Segunda Guerra Mundial para dar
conta do assassinato de um povo (gene),
seria depois mal utilizada tanto por excesso e facilitação quanto por timidez e
negação, a depender do caso. Mas isso não condena seu uso a priori. Se o conjunto da população de uma cidade pode, com
pertinência, ser dito o povo daquela cidade, então o extermínio deliberado de
uma cidade pode ser chamado de genocídio. Isso aconteceu na Síria, em 1982,
quando o governo cercou, bombardeou e destruiu a cidade de Hama, então centro
da oposição sunita. Numa situação como a síria, se o Estado é o Estado de uma
nação dentro de outra nação, a nação excluída, porque nação e porque excluída, só
pode ser governado pela força. Ao mesmo tempo, quando se insurge, não se trata
de oposição política, mas de um ato de guerra, pois fora do Estado (porque fora
da política, ou vice-versa) e contra ele. Daí a repressão militar, e daí a
repressão genocida: o Estado sírio não estava, sob sua própria lógica, atacando
seu próprio povo ao destruir Hama.
Prova disto é
que Hama, longe de ser um caso isolado, tornou-se uma regra, a “regra de Hama”,
explicitada pelo próprio Assad pai: o que aconteceu em Hama seria o modelo de
repressão do regime a qualquer oposição. Como não havia a possibilidade de uma
oposição “síria” senso lato, pois os alauítas se identificam com um Estado por eles dominado (na verdade, por eles
construído) e que a eles serve, toda oposição, necessariamente sunita, seria
tratada como ameaça ao regime e ao Estado.
Daí não existir
solução política para a atual crise síria. Como todas as instituições do Estado
são dominadas pelos alauítas, todas as instituições do Estado têm de ser, na
prática, refeitas. A oposição síria tem por objetivo lógico a refundação do
Estado sírio.
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Isso implica,
do ponto de vista alauíta, não apenas a perda de poder, mas a perda da
segurança, além da riqueza. Pois não se trata, num primeiro momento (ao menos,
há um grande e real temor de que não se trate), de tentar refundar um Estado
sírio, ou seja, para todos os sírios, entendidos como uma cidadania nacional,
mas de extinguir o Estado alauíta comandado pela família Assad a fim de em seu
lugar instituir um Estado sunita. As razões disso são principalmente três: a
história profunda, da qual os alauítas emergem como um grupo separado dos e
subalterno aos sunitas, numa relação de separação e subserviência históricas que
teria sido subvertida pelas circunstâncias políticas recentes; as
circunstâncias políticas recentes, vistas pela maioria sunita como uma
degradação e uma injustiça histórica, ao que se soma o ódio irreconciliável gerado
pela repressão genocida; a ausência de um conceito de nacionalismo e de
cidadania modernos na cultura árabe, que historicamente conheceu apenas a
vassalagem sob o império turco ou sob reinos árabes que, na prática, eram o
domínio de uma tribo sobre as demais.
Não há,
portanto, caminho para uma solução negociada, ou seja, política. A troca do
governo de Bashar Assad por outro coloca a questão da troca ou manutenção de um
grupo por outro. Se um novo governo pós-Assad for ainda alauíta, não será
aceito pela maioria sunita. Se for sunita, não será aceito pela minoria
alauíta, pois significaria a perda definitiva do poder e a perspectiva de ser
submetida a um Estado que vingaria ou não impediria a vingança por parte da
maioria sunita. Um governo integrando governo e oposição, como tantos pleiteiam
ingenuamente no Ocidente, seria, na verdade, um governo que integrasse sunitas
e alauítas. Mas na presente situação síria, essas grupos não são conciliáveis.
Os alauítas têm tudo a perder, portanto, lutarão até o fim para manter-se no
poder. Fala-se inclusive de, no limite, se criar um cantão, um enclave alauíta
em regiões próximas ao Líbano, ou seja, de uma divisão do Estado sírio, como
aconteceu na Índia com a criação do Paquistão para a sua população muçulmana, após
a independência. Os sunitas, por outro lado, têm tudo a ganhar, portanto,
lutarão até o fim para tomar o poder e o Estado, e para vingar seus mortos
passados e presentes.
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Mas apesar de
tudo, a oposição síria é fragmentada, ou mesmo fraturada. Não apenas pela
existência de outras minorias, como cristãos e curdos, cujo alinhamento com
governo e oposição não tem a clivagem clara dos sunitas versus alauítas. Mas porque se trata, justamente, não de derrubar o
governo para pôr em seu lugar um outro, talvez mais democrático ou
representativo, mas de refundar o Estado. Daí que os diferentes projetos de
Estado não esperarão pela luta política após uma eventual queda de Assad, como
se deu nos demais casos da “primavera árabe”. A construção de um novo Estado
pós-alauíta começa na destruição do Estado alauíta. A situação é, deste ponto
de vista, mais semelhante a uma verdadeira revolução do que o foi em outros
países da região. O objetivo comum imediato de derrubar o governo, confundido
com o de destruir o regime e suas relações sociopolíticas, é então sobrepujado
pelo objetivo último de garantir o domínio do novo Estado já a partir do início
de sua construção, ou seja, da derrubada do “Antigo Regime”.
No caso dos
sunitas sírios, dois grupos têm projetos completamente distintos: um grupo
laico, centrado nas cidades e na classe média, pretende a construção de um
Estado laico e moderno, segundo o modelo turco; um grupo religioso, centrado no
campo e liderado pela forte Irmandade Muçulmana síria, tem por objetivo
instituir uma teocracia, ou ao menos um Estado tutelado pelo e atrelado ao clero,
segundo o modelo saudita. Daí a oposição sunita não ser uma nem una, o que
resulta em não ter ainda podido fazer frente à unidade alauíta, apesar de esta
ser minoritária.
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A Síria não é
a Líbia. Tampouco o Egito. Mas dizer isso não aclara em que ela não é nem o
Egito nem a Líbia. Fundamentalmente, trata-se de um poder incomparavelmente
maior de envolver e desestabilizar toda a região.
Ao contrário
do Egito, a Síria mantém um contencioso militar com Israel, com o qual está
oficialmente em estado de guerra, em função da ocupação israelense das colinas
de Golã. A Síria é, também, a última ou principal fiadora da instável
estabilidade libanesa. A Síria ocupou o Líbano por décadas, após a guerra civil
libanesa doa anos 1970-80, e ao sair do país deixou como preposto o fortíssimo
grupo xiita Hezbolah, ao mesmo tempo um partido político, um grupo religioso e
uma milícia, constituindo, na prática, um Estado dentro do estado libanês. Um
governo sunita na Síria não daria ao xiita Hezbolah o mesmo apoio de um governo
alauíta (os alauítas são um ramo do xiismo). O Hezbolah se aproximaria ainda
mais do Irã, seu segundo grande aliado, tornando-se, se não mais radical, pois
isso é impossível, mais imprevisível. O Irã, país xiita governado por um clero
idem, perderia com a queda do regime alauíta sírio seu único grande aliado na
região. Por fim, o governo saudita, que se considera o guardião da ortodoxia
sunita, tem muito a ganhar em influência com a troca de regime sírio. Resta ainda
a Turquia, que faz fronteira ao sul com a Síria, e têm suas próprias demandas
sectárias internas, como as dos curdos locais.
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Há hoje na Síria
um impasse sangrento. A surda revolta histórica da maioria sunita encontrou
afinal na “primavera árabe” o impulso para partir para a ação. Mas à diferença
do caso egípcio, em que o próprio regime negociou uma solução política, e do
caso líbio, cuja liderança não tinha força para resistir, por não representar
grupo algum além dos próprios integrantes do regime, as condições sírias
impedem uma saída negociada, além de explicarem a resistência e a brutalidade
do regime alauíta. Esse impasse sangrento, se não pode se resolver por uma solução
política, deve sê-lo pela ruptura, ou seja, pela extinção de qualquer
possibilidade de solução política. A guerra civil síria terminará,
necessariamente, pela destruição do Estado alauíta. A variável importante que
resta incógnita, a ser verdadeiro esse quadro, é a duração da guerra civil,
portanto, sua intensidade. Quanto mais rápida, menos brutal, quanto menos
brutal, maiores as chances de minimizar os inevitáveis traumas e as incontáveis
dificuldades e ameaças do período de reconstrução.
A conclusão é
que se deve armar a oposição síria, não apenas para que não fique submetida à
artilharia do governo como animais de caça num safári, mas também para abreviar
a queda do regime e, assim, a dimensão e a duração da guerra civil.
O que parece
uma contradição, ou seja, armar um lado de uma disputa para que tal disputa
seja menos sangrenta, deixa de sê-lo ao se sair da teoria bélica para a prática
da realidade imediata. Não há retorno na situação síria, pois os sunitas, uma
vez entrevista a possibilidade histórica de tomar o poder, e uma vez tendo
sacrificado por esse objetivo milhares de vidas nos últimos meses, não têm por
que ou como desistir. Como tampouco pode desistir de resistir o governo
alauíta, a situação atual, com seus mortos cotidianos, para não falar da
tortura sistemática e da destruição de casas, arrastar-se-á até que a oposição
consiga as armas para enfrentar militarmente as forças do regime, levando o que
é agora uma guerra civil assimétrica a uma simetria maior. A negação de armas à
oposição não evitará a guerra civil franca, apenas a adiará ao custo do atual
morticínio. Ou seja, somará aos mortos futuros da guerra civil aberta os mortos
de seu preâmbulo.
Encurtar esse
preâmbulo sangrento e sanguinário, se não é possível pela via política, deve
sê-lo pela via militar. A alternativa, a manutenção e a extensão do impasse, é
a extensão e a manutenção do morticínio, sem dar às vítimas possibilidade de se
defender.
Além disso,
quanto mais o atual impasse cruento se prolongue, maiores as chances de os
países vizinhos se envolverem na luta, aumentando também os riscos de sua
internacionalização.
A queda do
regime alauíta deve, por tudo isso, ser abreviada. A todos os temores
imediatos, porém, soma-se o receio ainda maior da emergência de um regime
teocrático, como se deu no Irã após a queda do xá. Mas, em primeiro lugar, os
sunitas, ao contrário dos xiitas, não contemplam historicamente o Estado
teocrático. Em segundo lugar, não há como evitar que os próprios sunitas
decidam o tipo de Estado e de sociedade que querem para si, finda a era
alauíta. Os secularistas sunitas terão de enfrentar amanhã a Irmandade
Muçulmana e seus aliados jihadistas, tão certamente quanto enfrentam hoje, ao
lado deles, o regime alauíta. E é da vitória dos sunitas na guerra civil, bem
como da subsequente vitória dos sunitas secularistas no período pós-guerra-civil,
que depende a muito improvável, mas não inteiramente impossível, emergência de
uma futura democracia síria (incluindo a necessária normalização com a minoria
alauíta).
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