terça-feira, 19 de março de 2013

SÍRIA: IMPASSE À BEIRA DO ABISMO



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No contexto do nacionalismo árabe e do pan-arabismo dos anos 1960, os alauítas, ramo do xiismo francamente minoritário na população síria (10%), saiu de uma posição histórica de subserviência, na qual vegetara durantes séculos de domínio turco-otomano (sunita), em busca da igualdade política e social sob um Estado moderno que definiria todos os sírios, fundamentalmente, como sírios. Na prática, à sombra do partido Baath sob a liderança do grupo de Hafez al Assad, os alauítas tomaram o poder no novo Estado, dominando desde então o poder executivo, além do exército, da polícia, da justiça e da economia, na figura do próprio ditador e depois de seu filho, Bashar Assad. A inversão histórica foi completa: ex-excluídos, os alauítas eram agora os novos senhores e excluíram do poder a maioria sunita.
Isso deu ao regime sírio uma feição particular, difícil de compreender sob a ótica clássica do Estado-nação ocidental. Neste, mesmo em situações extremas, como a de uma ditadura, a repressão é feita segundo linhas ideológico-políticas. Ou seja, trata-se ainda de disputa política, apesar dos métodos não-civis nem civilizados, e de alvos individuais, aqueles comprometidos com a oposição política. No caso sírio, a lógica não é política, pois se trata de uma “pólis”, de uma nação, fraturada dentro de um Estado uno. O regime de Assad é uma etnocracia, em que um grupo, tribo ou confissão governa sobre outro. O que se passa, então, é mais semelhante à situação de ocupação de um Estado por outro.
Em 1975, a Indonésia invadiu o Timor Leste para anexá-lo. O governo militar indonésio e as forças armadas indonésias não estavam ali, portanto, para oferecer à população os serviços fundamentais do Estado, como segurança e justiça. Ao contrário, sua presença invertia a lógica do Estado, tornando-o um inimigo da população local, que dele tinha de se proteger, ou seja, a ele se opor e se recusar. O caso sírio é semelhante. O Estado, sequestrado pela minoria alauíta, é um Estado alauíta governando uma nação sunita (80% da população síria). A luta da população não é, portanto, contra um líder ou mesmo contra seu regime, como nos demais casos da “primavera árabe”. A luta é contra o Estado sírio, ou seja, o Estado alauíta.
Isso explica algumas coisas de outro modo incompreensíveis. Por exemplo, o genocídio como método de repressão. A palavra, criada após a Segunda Guerra Mundial para dar conta do assassinato de um povo (gene), seria depois mal utilizada tanto por excesso e facilitação quanto por timidez e negação, a depender do caso. Mas isso não condena seu uso a priori. Se o conjunto da população de uma cidade pode, com pertinência, ser dito o povo daquela cidade, então o extermínio deliberado de uma cidade pode ser chamado de genocídio. Isso aconteceu na Síria, em 1982, quando o governo cercou, bombardeou e destruiu a cidade de Hama, então centro da oposição sunita. Numa situação como a síria, se o Estado é o Estado de uma nação dentro de outra nação, a nação excluída, porque nação e porque excluída, só pode ser governado pela força. Ao mesmo tempo, quando se insurge, não se trata de oposição política, mas de um ato de guerra, pois fora do Estado (porque fora da política, ou vice-versa) e contra ele. Daí a repressão militar, e daí a repressão genocida: o Estado sírio não estava, sob sua própria lógica, atacando seu próprio povo ao destruir Hama.
Prova disto é que Hama, longe de ser um caso isolado, tornou-se uma regra, a “regra de Hama”, explicitada pelo próprio Assad pai: o que aconteceu em Hama seria o modelo de repressão do regime a qualquer oposição. Como não havia a possibilidade de uma oposição “síria” senso lato, pois os alauítas se identificam com um Estado por eles dominado (na verdade, por eles construído) e que a eles serve, toda oposição, necessariamente sunita, seria tratada como ameaça ao regime e ao Estado.
Daí não existir solução política para a atual crise síria. Como todas as instituições do Estado são dominadas pelos alauítas, todas as instituições do Estado têm de ser, na prática, refeitas. A oposição síria tem por objetivo lógico a refundação do Estado sírio.

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Isso implica, do ponto de vista alauíta, não apenas a perda de poder, mas a perda da segurança, além da riqueza. Pois não se trata, num primeiro momento (ao menos, há um grande e real temor de que não se trate), de tentar refundar um Estado sírio, ou seja, para todos os sírios, entendidos como uma cidadania nacional, mas de extinguir o Estado alauíta comandado pela família Assad a fim de em seu lugar instituir um Estado sunita. As razões disso são principalmente três: a história profunda, da qual os alauítas emergem como um grupo separado dos e subalterno aos sunitas, numa relação de separação e subserviência históricas que teria sido subvertida pelas circunstâncias políticas recentes; as circunstâncias políticas recentes, vistas pela maioria sunita como uma degradação e uma injustiça histórica, ao que se soma o ódio irreconciliável gerado pela repressão genocida; a ausência de um conceito de nacionalismo e de cidadania modernos na cultura árabe, que historicamente conheceu apenas a vassalagem sob o império turco ou sob reinos árabes que, na prática, eram o domínio de uma tribo sobre as demais.
Não há, portanto, caminho para uma solução negociada, ou seja, política. A troca do governo de Bashar Assad por outro coloca a questão da troca ou manutenção de um grupo por outro. Se um novo governo pós-Assad for ainda alauíta, não será aceito pela maioria sunita. Se for sunita, não será aceito pela minoria alauíta, pois significaria a perda definitiva do poder e a perspectiva de ser submetida a um Estado que vingaria ou não impediria a vingança por parte da maioria sunita. Um governo integrando governo e oposição, como tantos pleiteiam ingenuamente no Ocidente, seria, na verdade, um governo que integrasse sunitas e alauítas. Mas na presente situação síria, essas grupos não são conciliáveis. Os alauítas têm tudo a perder, portanto, lutarão até o fim para manter-se no poder. Fala-se inclusive de, no limite, se criar um cantão, um enclave alauíta em regiões próximas ao Líbano, ou seja, de uma divisão do Estado sírio, como aconteceu na Índia com a criação do Paquistão para a sua população muçulmana, após a independência. Os sunitas, por outro lado, têm tudo a ganhar, portanto, lutarão até o fim para tomar o poder e o Estado, e para vingar seus mortos passados e presentes.

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Mas apesar de tudo, a oposição síria é fragmentada, ou mesmo fraturada. Não apenas pela existência de outras minorias, como cristãos e curdos, cujo alinhamento com governo e oposição não tem a clivagem clara dos sunitas versus alauítas. Mas porque se trata, justamente, não de derrubar o governo para pôr em seu lugar um outro, talvez mais democrático ou representativo, mas de refundar o Estado. Daí que os diferentes projetos de Estado não esperarão pela luta política após uma eventual queda de Assad, como se deu nos demais casos da “primavera árabe”. A construção de um novo Estado pós-alauíta começa na destruição do Estado alauíta. A situação é, deste ponto de vista, mais semelhante a uma verdadeira revolução do que o foi em outros países da região. O objetivo comum imediato de derrubar o governo, confundido com o de destruir o regime e suas relações sociopolíticas, é então sobrepujado pelo objetivo último de garantir o domínio do novo Estado já a partir do início de sua construção, ou seja, da derrubada do “Antigo Regime”.
No caso dos sunitas sírios, dois grupos têm projetos completamente distintos: um grupo laico, centrado nas cidades e na classe média, pretende a construção de um Estado laico e moderno, segundo o modelo turco; um grupo religioso, centrado no campo e liderado pela forte Irmandade Muçulmana síria, tem por objetivo instituir uma teocracia, ou ao menos um Estado tutelado pelo e atrelado ao clero, segundo o modelo saudita. Daí a oposição sunita não ser uma nem una, o que resulta em não ter ainda podido fazer frente à unidade alauíta, apesar de esta ser minoritária.

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A Síria não é a Líbia. Tampouco o Egito. Mas dizer isso não aclara em que ela não é nem o Egito nem a Líbia. Fundamentalmente, trata-se de um poder incomparavelmente maior de envolver e desestabilizar toda a região.
Ao contrário do Egito, a Síria mantém um contencioso militar com Israel, com o qual está oficialmente em estado de guerra, em função da ocupação israelense das colinas de Golã. A Síria é, também, a última ou principal fiadora da instável estabilidade libanesa. A Síria ocupou o Líbano por décadas, após a guerra civil libanesa doa anos 1970-80, e ao sair do país deixou como preposto o fortíssimo grupo xiita Hezbolah, ao mesmo tempo um partido político, um grupo religioso e uma milícia, constituindo, na prática, um Estado dentro do estado libanês. Um governo sunita na Síria não daria ao xiita Hezbolah o mesmo apoio de um governo alauíta (os alauítas são um ramo do xiismo). O Hezbolah se aproximaria ainda mais do Irã, seu segundo grande aliado, tornando-se, se não mais radical, pois isso é impossível, mais imprevisível. O Irã, país xiita governado por um clero idem, perderia com a queda do regime alauíta sírio seu único grande aliado na região. Por fim, o governo saudita, que se considera o guardião da ortodoxia sunita, tem muito a ganhar em influência com a troca de regime sírio. Resta ainda a Turquia, que faz fronteira ao sul com a Síria, e têm suas próprias demandas sectárias internas, como as dos curdos locais.

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Há hoje na Síria um impasse sangrento. A surda revolta histórica da maioria sunita encontrou afinal na “primavera árabe” o impulso para partir para a ação. Mas à diferença do caso egípcio, em que o próprio regime negociou uma solução política, e do caso líbio, cuja liderança não tinha força para resistir, por não representar grupo algum além dos próprios integrantes do regime, as condições sírias impedem uma saída negociada, além de explicarem a resistência e a brutalidade do regime alauíta. Esse impasse sangrento, se não pode se resolver por uma solução política, deve sê-lo pela ruptura, ou seja, pela extinção de qualquer possibilidade de solução política. A guerra civil síria terminará, necessariamente, pela destruição do Estado alauíta. A variável importante que resta incógnita, a ser verdadeiro esse quadro, é a duração da guerra civil, portanto, sua intensidade. Quanto mais rápida, menos brutal, quanto menos brutal, maiores as chances de minimizar os inevitáveis traumas e as incontáveis dificuldades e ameaças do período de reconstrução.
A conclusão é que se deve armar a oposição síria, não apenas para que não fique submetida à artilharia do governo como animais de caça num safári, mas também para abreviar a queda do regime e, assim, a dimensão e a duração da guerra civil.
O que parece uma contradição, ou seja, armar um lado de uma disputa para que tal disputa seja menos sangrenta, deixa de sê-lo ao se sair da teoria bélica para a prática da realidade imediata. Não há retorno na situação síria, pois os sunitas, uma vez entrevista a possibilidade histórica de tomar o poder, e uma vez tendo sacrificado por esse objetivo milhares de vidas nos últimos meses, não têm por que ou como desistir. Como tampouco pode desistir de resistir o governo alauíta, a situação atual, com seus mortos cotidianos, para não falar da tortura sistemática e da destruição de casas, arrastar-se-á até que a oposição consiga as armas para enfrentar militarmente as forças do regime, levando o que é agora uma guerra civil assimétrica a uma simetria maior. A negação de armas à oposição não evitará a guerra civil franca, apenas a adiará ao custo do atual morticínio. Ou seja, somará aos mortos futuros da guerra civil aberta os mortos de seu preâmbulo.
Encurtar esse preâmbulo sangrento e sanguinário, se não é possível pela via política, deve sê-lo pela via militar. A alternativa, a manutenção e a extensão do impasse, é a extensão e a manutenção do morticínio, sem dar às vítimas possibilidade de se defender.
Além disso, quanto mais o atual impasse cruento se prolongue, maiores as chances de os países vizinhos se envolverem na luta, aumentando também os riscos de sua internacionalização.
A queda do regime alauíta deve, por tudo isso, ser abreviada. A todos os temores imediatos, porém, soma-se o receio ainda maior da emergência de um regime teocrático, como se deu no Irã após a queda do xá. Mas, em primeiro lugar, os sunitas, ao contrário dos xiitas, não contemplam historicamente o Estado teocrático. Em segundo lugar, não há como evitar que os próprios sunitas decidam o tipo de Estado e de sociedade que querem para si, finda a era alauíta. Os secularistas sunitas terão de enfrentar amanhã a Irmandade Muçulmana e seus aliados jihadistas, tão certamente quanto enfrentam hoje, ao lado deles, o regime alauíta. E é da vitória dos sunitas na guerra civil, bem como da subsequente vitória dos sunitas secularistas no período pós-guerra-civil, que depende a muito improvável, mas não inteiramente impossível, emergência de uma futura democracia síria (incluindo a necessária normalização com a minoria alauíta).

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