Nicolau Saião, Homenagem a Max Ernst
Transcrevo o e-mail que enviei ontem ao Joaquim Simões:
"Confrade Simões
Fiz ontem este poema e pus na intenção mandar-lho na data da morte do poeta a que alude.
Contudo, um mail do Alfredo Pérez Alencart alertou-me para o facto,
que eu não tinha presente, de que é na próxima quinta-feira o Dia Mundial da
Poesia.
E então congeminei que talvez fizesse sentido mandar-lho
já. Pois sendo um poema referente a um falecimento, na verdade o que ele
celebra é a Vida - vida do poeta e vida de todos que, desta ou daquela forma -
seja escrevendo ou apenas lendo - persistem em colocar em epígrafe a Vida e o
que ela tem de raro e encantado, mas bem natural ou que o devia ser não fossem
as "armadilhas do acaso" que a tentam derribar em nós.
E que melhor bofetada na face da morte do que enviar-lho em
união com uma data que aponta para a importância da poesia viva - se somos
e nos recriamos numa intenção de permanência?
O proverbial abraqson amigo do
n."
A MORTE NO JARDIM
Hoje
os pássaros não cantam como dantes
nem
as portas batem como antigamente
nem
os gatos, que tanto amavas
como
dantes vagueiam no lar dos homens.
Partiste
e
algo terminou, que não era
simplesmente
o teu vulto de príncipe renano
traçando
a rota primordial
ou
apenas
a
tua boca sussurrando nas planuras encantadas
les hommes n’en sauront rien.
Foi
aqui que tu morreste, Max
nesta
rua portuguesa onde as crianças brincam
neste
pátio de casa provinciana a que as plantas conferem
a
dignidade e o medo
a
beleza interior de algo humilde que se evoca
foi
bem aqui
nesta
Cidade Inteira
repleta
de inocência e de amargura
neste
Café que se alonga como se quisesse devorar o espaço
neste
quarto alugado onde os amantes se encaram
como
se se vissem pela primeira vez
nesta
praia policiada pela maldição das pátrias
neste
silêncio
neste
espanto
nesta
ignomínia.
Max Ernst, A Ninfa Eco
Alguém
um dia desenhará nas paredes derruídas
o
coração escondido da tua Ninfa Echo
com
o ar de quem volta de uma grande viagem
com
as mãos humildes e já serenas
sem
que ninguém lho impeça
Algum
dia, no doce recanto duma madrugada
alguém
entenderá porque sabias tu que é bem real a Vila Petrificada
e
então será possível o caminho até ao mar
e
os homens saberão finalmente
qual
a melhor mais bela delirante floresta
guarida
para os cavalos e os animais nocturnos
E
que será na penumbra das ruas desse mundo
onde
cantamos, comemos, bocejamos, padecemos
que
a alegria submersa se haverá de descobrir
paciente
e subtil como uma estrela abrindo
sobre
uma antiga casa.
Há gente que fala, dizias tu. Há gente
que fala
mas
as palavras sabem a azebre e a limalha
e
a tristeza e o remorso percorrem-nos os ombros
como
um pedaço de um qualquer metal maldito
pois
a cidade violenta devora a sua própria cauda
como
se fosse ainda existir centenas de anos..
É
nas coisas reais que morres em cada minuto.
Neste
pedaço de pão a que uns dentes ofereceram um sinal de fogo
nesta
janela aberta como se aqui tivesse sido posta para um acto teatral
neste
incrível Abril de vozes sonolentas
chamado
muitas vezes a ultrapassar o tempo
É
aqui que tu morres com as palavras por companhia
em
cada hora de desespero organizado
nas
vagas caravelas sulcando o mar oculto
para
as ilhas para os momentos para os sonhos.
Não
morreste pela razão das armas
como
essoutro teu irmão Garcia Lorca
nem
te foste pelo postigo octogonal
que
Jacques Rigaut escolheu lucidamente
partiste,
apenas partiste como um fruto demasiado maduro
como
um ovo que se quebra no minuto habitual
como
uma cama revolvida pelos espasmos da solidão
e
que já nada dará nunca mais a quem a abriu.
Max Ernst, Napoleão no deserto
Por
isso Max para ti não tenho mais que um olhar longínquo
ou
um breve uivo de raiva à altura do coração
para
a tua fresca libertação
para
a tua máscara e para o teu cinzel que soube construir
e
desconstruir de seguida
todos
os Napoleões do Deserto
mas
mesmo assim dói
e
persiste
porque
ficámos mais sozinhos ante a solenidade e a ganância
e
não mais nos dirás que a vida reside no
segundo degrau.
Porque
quase ninguém tem a coragem de brincar
como
tu a sério dizias defronte ao teu chemin
mistérieux, debaixo
da
tua eternité des mondes
nós
continuaremos com os nossos frágeis cigarros
lançando
o fumo da nossa dor revoltada de encontro às sombras
que
já se vêem surgir no tempo
do
derradeiro arrepio
como
um tremor na montanha distante
no
mundo que permaneceu
nesse
teu universo adivinhado
tantas
vezes sonhado, no plenilúnio
pintado
e escrito.
(Março
de 2013)
2 comentários:
No panorama em geral tristemente medíocre da net, este blogue e os seus autores são um caso sério e relevante nos lirismos cá da praça. A seguir atentamente e com a atenção que merece.
Amélia Pontes
Um poema muito bonito! Acho que ouvi o Max Ernst a agradecer.
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