quinta-feira, 21 de março de 2013

NOS 37 ANOS DA MORTE DE MAX ERNST (1 de abril de 76)



Nicolau Saião, Homenagem a Max Ernst


Transcrevo o e-mail que enviei ontem ao Joaquim Simões:


 "Confrade  Simões

 Fiz ontem este poema e pus na intenção mandar-lho na data da morte do poeta a que alude.
 Contudo, um mail do Alfredo Pérez Alencart alertou-me para o facto, que eu não tinha presente, de que é na próxima quinta-feira o Dia Mundial da Poesia.
 E então congeminei que talvez fizesse sentido mandar-lho já. Pois sendo um poema referente a um falecimento, na verdade o que ele celebra é a Vida - vida do poeta e vida de todos que, desta ou daquela forma - seja escrevendo ou apenas lendo - persistem em colocar em epígrafe a Vida e o que ela tem de raro e encantado, mas bem natural ou que o devia ser não fossem as "armadilhas do acaso" que a tentam derribar em nós.
 E que melhor bofetada na face da morte do que enviar-lho em união com uma data que aponta para a importância da poesia viva - se somos e nos recriamos numa intenção de permanência?

O proverbial abraqson amigo do

 n."



A MORTE NO JARDIM

Hoje os pássaros não cantam como dantes
nem as portas batem como antigamente
nem os gatos, que tanto amavas
como dantes vagueiam no lar dos homens.

Partiste
e algo terminou, que não era
simplesmente o teu vulto de príncipe renano
traçando a rota primordial
ou apenas
a tua boca sussurrando nas planuras encantadas
les hommes n’en sauront rien.

Foi aqui que tu morreste, Max
nesta rua portuguesa onde as crianças brincam
neste pátio de casa provinciana a que as plantas conferem
a dignidade e o medo
a beleza interior de algo humilde que se evoca
foi bem aqui
nesta Cidade Inteira
repleta de inocência e de amargura
neste Café que se alonga como se quisesse devorar o espaço
neste quarto alugado onde os amantes se encaram
como se se vissem pela primeira vez
nesta praia policiada pela maldição das pátrias
neste silêncio
neste espanto
nesta ignomínia.

Max Ernst, A Ninfa Eco

Alguém um dia desenhará nas paredes derruídas
o coração escondido da tua Ninfa Echo
com o ar de quem volta de uma grande viagem
com as mãos humildes e já serenas
sem que ninguém lho impeça
Algum dia, no doce recanto duma madrugada
alguém entenderá porque sabias tu que é bem real a Vila Petrificada
e então será possível o caminho até ao mar
e os homens saberão finalmente
qual a melhor mais bela delirante floresta
guarida para os cavalos e os animais nocturnos
E que será na penumbra das ruas desse mundo
onde cantamos, comemos, bocejamos, padecemos
que a alegria submersa se haverá de descobrir
paciente e subtil como uma estrela abrindo
sobre uma antiga casa.

Há gente que fala, dizias tu. Há gente que fala
mas as palavras sabem a azebre e a limalha
e a tristeza e o remorso percorrem-nos os ombros
como um pedaço de um qualquer metal maldito
pois a cidade violenta devora a sua própria cauda
como se fosse ainda existir centenas de anos..

É nas coisas reais que morres em cada minuto.

Neste pedaço de pão a que uns dentes ofereceram um sinal de fogo
nesta janela aberta como se aqui tivesse sido posta para um acto teatral
neste incrível Abril de vozes sonolentas
chamado muitas vezes a ultrapassar o tempo
É aqui que tu morres com as palavras por companhia
em cada hora de desespero organizado
nas vagas caravelas sulcando o mar oculto
para as ilhas para os momentos para os sonhos.

Não morreste pela razão das armas
como essoutro teu irmão Garcia Lorca
nem te foste pelo postigo octogonal
que Jacques Rigaut escolheu lucidamente
partiste, apenas partiste como um fruto demasiado maduro
como um ovo que se quebra no minuto habitual
como uma cama revolvida pelos espasmos da solidão
e que já nada dará  nunca mais   a quem a abriu.

Max Ernst, Napoleão no deserto

Por isso Max para ti não tenho mais que um olhar longínquo
ou um breve uivo de raiva à altura do coração
para a tua fresca libertação
para a tua máscara e para o teu cinzel que soube construir
e desconstruir de seguida
todos os Napoleões do Deserto
mas mesmo assim dói
e persiste
porque ficámos mais sozinhos ante a solenidade e a ganância
e não mais nos dirás que a vida reside no segundo degrau.

Porque quase ninguém tem a coragem de brincar
como tu a sério dizias defronte ao teu chemin mistérieux, debaixo
da tua eternité des mondes
nós continuaremos com os nossos frágeis cigarros
lançando o fumo da nossa dor revoltada de encontro às sombras
que já se vêem surgir no tempo
do derradeiro arrepio
como um tremor na montanha distante
no mundo que permaneceu

nesse teu universo adivinhado
tantas vezes sonhado, no plenilúnio

pintado e escrito.

(Março de 2013)

2 comentários:

Anónimo disse...

No panorama em geral tristemente medíocre da net, este blogue e os seus autores são um caso sério e relevante nos lirismos cá da praça. A seguir atentamente e com a atenção que merece.

Amélia Pontes

ora viva disse...

Um poema muito bonito! Acho que ouvi o Max Ernst a agradecer.