A alternância
entre idealismo revolucionário e realismo político foi uma constante nessas
três décadas [de regime] e
torna difícil para os demais países saber como tratar com a República Islâmica.
(El País)
Sabe-se do que é
feita a política: interesses. Todos os tipos de interesses, todas as dimensões
de interesses, mas interesses. A única delimitação é serem todos interesses
políticos. Isto parece um truísmo, ou um argumento circular, mas não é. A
política é feita de interesses, e esses interesses são políticos, no sentido
definidor de não serem privados (daí a pseudo-política, ou política apequenada,
ser aquela que se utiliza de instrumentos públicos, ou políticos, para defender
interesses privados). Fazer política parece ser, em todo caso, fazer parte de
um clichê: o “jogo de interesses”.
Esse clichê,
porém, mantém ainda algum potencial informacional. Basta mudar a forma da
preposição: fazer política é jogar o “jogo dos interesses”. O exemplo comum é o
do político igualmente comum: seu papel é defender a convergência entre seus
próprios interesses e os daqueles que o apoiam – que se dividem, por sua vez,
em três grupos: o de seus financiadores, o de seus partidários e o de seus
eleitores (comumente nesta ordem). Daí a diferença entre o político e o
estadista: este retira do jogo seus interesses pessoais – a começar dos
político-eleitorais –, e os substitui pelos interesses nacionais. Estadistas,
compreensivelmente, são raros. Felizmente, também são raramente necessários.
Parafraseando Brecht, triste do país que precisa de estadistas (pois seus
problemas têm, então, uma dimensão que está além das capacidades – e dos
interesses – dos políticos comuns, caso da África do Sul de Mandela, da Índia
de Gandhi ou da Inglaterra de Churchill).
Menos conhecida é
a diferença entre o político e o ideologista. Uso este neologismo porque
não se trata, de fato, de um ideólogo – pois um ideólogo é, denotativamente, o
criador ou propagador de uma ideologia. E aqui se trata de alguém movido por
uma ideologia. A diferença é fundamental. Pois embasa a própria diferença
entre o político e o… ideologista. O político move-se por interesses; o
ideologista move-se por crenças.
Tal diferença
pode, na verdade deve, ser projetada para o próprio Estado. Como se sabe, os
Estados, assim como os políticos (não por acaso), têm interesses, e somente
interesses (na verdade, também têm valores: mas pelo que aqui se discute, estes
ficarão em suspenso). Isto quer dizer, em primeiro lugar, que Estados não têm
amigos (nem inimigos: em seu lugar existe o concorrente – assim como no lugar
do amigo há o parceiro). Mas também quer dizer que Estados não têm crenças. O
que é muito bom: pois interesses são negociáveis, crenças não o são. Daí os Estados
serem, como regra, entidades negociadoras por natureza. Do comércio à
diplomacia, tudo são negócios e negociações. Há, porém, uma exceção: o Estado
ideológico.
Em tempos
recentes, a China de Mao era um Estado ideológico (enquanto a China de Deng era
– e é – um Estado político); a URSS era um Estado ideológico (enquanto a Rússia
é um Estado político); o Reich era um Estado ideológico (enquanto a
Alemanha é um Estado político). A tragédia do século XX foi, em grande parte, a
grande e grandemente incomum concentração de Estados ideológicos. A Primeira
Guerra Mundial foi uma guerra política; a Segunda Guerra Mundial, uma guerra
ideológica (naturalmente, o capitalismo, que embasa as ações dos Estados
políticos, além de um sistema econômico, é também uma ideologia; seus agentes,
porém, são “marxistas”: para eles importa a economia – de que a política é um
instrumento – isto é, o interesse).
O Estado
ideológico não é, na verdade, uma mera exceção, mas uma exceção completa:
exceção quanto à regra geral do Estado, exceção no tempo e exceção no espaço.
Isto é, na história e na geografia.
Se o jogo dos
interesses pode eventualmente tornar-se um jogo mortal (caso da Primeira Guerra
Mundial), o confronto de ideologias ou crenças (a ideologia é uma crença
política) pode se tornar devastador (caso da Segunda Guerra Mundial) – e não apenas
eventualmente. Pois é da natureza das crenças serem inegociáveis.
Na esfera privada,
isso se traduz no dito popular segundo o qual “religião não se discute”. Porque
discutir é negociar argumentos. Mas como negociar argumentos quando o objeto da
negociação é uma crença? Na esfera política, em que a crença ou ideologia se
funde ao poder, a dificuldade ou impossibilidade de negociar argumentos redunda
facilmente no confronto.
Na verdade, Estados
ideológicos não podem existir sem inimigos. Se Estados políticos nunca têm
amigos – porque têm apenas interesses –, Estados ideológicos têm sempre
inimigos: pois sempre existem os que negam, desdenham, confrontam, ignoram ou
não compartilham suas crenças. Daí os Estados ideológicos estarem perpetuamente
em guerra (Estados políticos, apenas eventualmente). Quando parecem não estar
em guerra, é porque estão combatendo o “inimigo interno”.
O paradigma do
Estado ideológico é a França da Revolução. O Terror foi sua guerra contra o
“inimigo interno”, enquanto as campanhas napoleônicas foram sua guerra contra
os inimigos externos. Todo Estado ideológico tem seus equivalentes ao Terror e
às campanhas napoleônicas. O exemplo mais evidente é a URSS, com os “processos”
de Moscou e o gulag, de um lado, e a Guerra Fria, de outro.
Pode-se inferir, portanto,
que os Estados ideológicos só não fazem a guerra quando não podem, porque
fracos. Neste caso, dedicam-se com afinco a combater o “inimigo interno”. Os
exemplos são incontáveis. Na verdade, são tantos quantos forem os Estados
ideológicos fracos, como a Espanha de Franco, o Camboja de Pol Pot, o
Afeganistão dos talebans (o 11 de Setembro, aliás, pode ser compreendido como
uma ação bélica heterodoxa de um Estado ideológico fraco, empreendida assim que
o combate ao “inimigo interno” – os grupos rivais da guerra civil afegã e os
hábitos seculares da população – havia sido vencido). O Irã dos aiatolás é, naturalmente,
um Estado ideológico, o que explica sua beligerância perpétua com os EUA e o
Ocidente (demonstrando ser afinal determinante, não a ideologia em si, mas o ideologismo,
uma forma de irracionalismo político).
Os demais Estados
muçulmanos são políticos – graças a Deus (caso contrário, o mundo talvez sequer
sobrevivesse). Isso inclui a própria Arábia Saudita, apesar de tudo. Pois em
que pese se tratar de um país sob a lei islâmica, há uma divisão de poderes,
pela qual, na prática, o clero dita (mas não executa) as leis, porém não detém
o poder. O poder é monárquico. Isso significa que o Estado saudita age movido
pelos interesses da monarquia, não das crenças do clero. Isso também inclui o
Paquistão, atualmente o mais problemático dos Estados muçulmanos (porque o
Iraque e o Afeganistão são casos particulares, além de sob controle externo). E
o Paquistão é um poder nuclear, além de alimentar um contencioso geopolítico –
a Caxemira – com a Índia, e abrigar grandes grupos jihadistas, tanto fora
quanto dentro do aparelho do Estado. O mundo, porém, convive há anos, em
relativa tranquilidade, com a bomba paquistanesa, apesar dos grupos jihadistas
e do contencioso com a Índia. Porque o Paquistão é um Estado político. Daí sua
bomba ser, antes de mais nada, estatal. Ou seja, um instrumento bélico a
serviço dos interesses do Estado.
Mas se o mundo
pode, apesar da quantidade e da qualidade dos problemas do Paquistão, conviver
com uma bomba paquistanesa (ao menos enquanto a natureza do Estado paquistanês
não mudar), não pode, e com certeza não deve, conviver com uma bomba iraniana
(o maior e mais complexo desafio da política externa de Barak Obama, além de o
maior e mais complexo desafio da geopolítica do Oriente Médio depois da própria
questão palestina – que a bomba iraniana, por sua vez, aumenta e complexiza
ainda mais). Pois sendo o Irã um Estado ideológico, a bomba iraniana, se afinal
existir, será, não somente uma bomba iraniana, mas igualmente uma bomba
islâmica.
É verdade que não
existem Estados puramente ideológicos. É verdade que o Irã tem reais interesses
defensivos – afinal, Estados ideológicos estão sempre na defensiva, do mesmo
modo como sempre estão na ofensiva, interna ou externamente – além de outros,
como o domínio tecnológico e a ascendência no mundo muçulmano em geral e no
Oriente Médio em particular.
A bomba
norte-coreana, por exemplo – e a Coreia do Norte é um Estado ideológico – é um
instrumento principalmente de barganha, visando conquistar um pacto de
não-agressão com os EUA, o que também vale, parcialmente, para a almejada bomba
iraniana. Mas também é verdade que a Coreia do Norte, apesar de seu vasto
exército, é um Estado ideológico muitíssimo fraco, principalmente em termos
econômicos, que, portanto, contenta-se em combater o “inimigo interno” – não é
por acaso que sua população está literalmente morrendo de fome.
O Irã é hoje um
Estado ideológico relativamente forte, o que é o mesmo que um Estado ideológico
relativamente fraco. Há inimigos internos demais ainda por vencer. Mas se forem
um dia vencidos, como os Estados ideológicos comumente fazem a guerra quando
fortes, a própria natureza do regime iraniano impõe não ser suportável a
existência de uma bomba islâmica.
Não porque o Irã
irá necessária ou automaticamente usá-la. Mas porque sua existência fortalece
enormemente o país. De um lado, isso também fortalece indiretamente os grupos
terroristas islâmicos a ele ligados – por interesses e por ideologia, assim
como os xiitas no Iraque, no Líbano, na Síria e no Bahrein. E como os Estados
ideológicos são executores, mantenedores ou instigadores naturais da guerra, e
como, ao lado de tais grupos, há várias guerras de todos os tipos, tamanhos e
estados na região (algumas por explodir), o resultado da equação é, de um lado,
o fortalecimento do belicismo natural do Irã e, de outro, o aumento da
instabilidade regional. O aumento dessa instabilidade e desse belicismo (já
ruins em si, além de embasarem e incrementarem um muito indesejável aumento da
influência iraniana), somados e sinergizados, tende a levar a uma situação em
que, no limite, a bomba iraniana talvez acabe sendo usada, numa espécie de
profecia autorrealizada: ela seria então utilizada porque sua existência fora,
em si, um forte fator determinante de seu uso.
As pressões
internacionais de todos os tipos deveriam ser duras o bastante para forçar o
Irã a abrir inteiramente seu programa nuclear, o que é o mesmo que forçá-lo a
desistir da bomba. Caso contrário, deve-se aceitar o fato de que um Estado
ideológico com um programa nuclear obscuro está, necessariamente, construindo
um artefato atômico. Neste caso, restam as opções militares – que, por piores
que sejam, e por mais imprevisíveis que se mostrem suas consequências, são um
mal menor face à existência de um Estado ideológico forte e nuclear.
2 comentários:
Excelente texto! Excelente a clarificação das diferenças entre estados políticos e estados assentes em ideologia ou crença e o que devem ser as abordagens destes por parte dos estados políticos.
Excelente: e a imagem sublime
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