segunda-feira, 4 de março de 2013

IRÃ: POLÍTICA ATÔMICA OU IDEOLOGIA NUCLEAR?


 

 
 
 

A alternância entre idealismo revolucionário e realismo político foi uma constante nessas três décadas [de regime] e torna difícil para os demais países saber como tratar com a República Islâmica. (El País)

 


Sabe-se do que é feita a política: interesses. Todos os tipos de interesses, todas as dimensões de interesses, mas interesses. A única delimitação é serem todos interesses políticos. Isto parece um truísmo, ou um argumento circular, mas não é. A política é feita de interesses, e esses interesses são políticos, no sentido definidor de não serem privados (daí a pseudo-política, ou política apequenada, ser aquela que se utiliza de instrumentos públicos, ou políticos, para defender interesses privados). Fazer política parece ser, em todo caso, fazer parte de um clichê: o “jogo de interesses”.

Esse clichê, porém, mantém ainda algum potencial informacional. Basta mudar a forma da preposição: fazer política é jogar o “jogo dos interesses”. O exemplo comum é o do político igualmente comum: seu papel é defender a convergência entre seus próprios interesses e os daqueles que o apoiam – que se dividem, por sua vez, em três grupos: o de seus financiadores, o de seus partidários e o de seus eleitores (comumente nesta ordem). Daí a diferença entre o político e o estadista: este retira do jogo seus interesses pessoais – a começar dos político-eleitorais –, e os substitui pelos interesses nacionais. Estadistas, compreensivelmente, são raros. Felizmente, também são raramente necessários. Parafraseando Brecht, triste do país que precisa de estadistas (pois seus problemas têm, então, uma dimensão que está além das capacidades – e dos interesses – dos políticos comuns, caso da África do Sul de Mandela, da Índia de Gandhi ou da Inglaterra de Churchill).

Menos conhecida é a diferença entre o político e o ideologista. Uso este neologismo porque não se trata, de fato, de um ideólogo – pois um ideólogo é, denotativamente, o criador ou propagador de uma ideologia. E aqui se trata de alguém movido por uma ideologia. A diferença é fundamental. Pois embasa a própria diferença entre o político e o… ideologista. O político move-se por interesses; o ideologista move-se por crenças.

Tal diferença pode, na verdade deve, ser projetada para o próprio Estado. Como se sabe, os Estados, assim como os políticos (não por acaso), têm interesses, e somente interesses (na verdade, também têm valores: mas pelo que aqui se discute, estes ficarão em suspenso). Isto quer dizer, em primeiro lugar, que Estados não têm amigos (nem inimigos: em seu lugar existe o concorrente – assim como no lugar do amigo há o parceiro). Mas também quer dizer que Estados não têm crenças. O que é muito bom: pois interesses são negociáveis, crenças não o são. Daí os Estados serem, como regra, entidades negociadoras por natureza. Do comércio à diplomacia, tudo são negócios e negociações. Há, porém, uma exceção: o Estado ideológico.

Em tempos recentes, a China de Mao era um Estado ideológico (enquanto a China de Deng era – e é – um Estado político); a URSS era um Estado ideológico (enquanto a Rússia é um Estado político); o Reich era um Estado ideológico (enquanto a Alemanha é um Estado político). A tragédia do século XX foi, em grande parte, a grande e grandemente incomum concentração de Estados ideológicos. A Primeira Guerra Mundial foi uma guerra política; a Segunda Guerra Mundial, uma guerra ideológica (naturalmente, o capitalismo, que embasa as ações dos Estados políticos, além de um sistema econômico, é também uma ideologia; seus agentes, porém, são “marxistas”: para eles importa a economia – de que a política é um instrumento – isto é, o interesse).

O Estado ideológico não é, na verdade, uma mera exceção, mas uma exceção completa: exceção quanto à regra geral do Estado, exceção no tempo e exceção no espaço. Isto é, na história e na geografia.

Se o jogo dos interesses pode eventualmente tornar-se um jogo mortal (caso da Primeira Guerra Mundial), o confronto de ideologias ou crenças (a ideologia é uma crença política) pode se tornar devastador (caso da Segunda Guerra Mundial) – e não apenas eventualmente. Pois é da natureza das crenças serem inegociáveis.

Na esfera privada, isso se traduz no dito popular segundo o qual “religião não se discute”. Porque discutir é negociar argumentos. Mas como negociar argumentos quando o objeto da negociação é uma crença? Na esfera política, em que a crença ou ideologia se funde ao poder, a dificuldade ou impossibilidade de negociar argumentos redunda facilmente no confronto.

Na verdade, Estados ideológicos não podem existir sem inimigos. Se Estados políticos nunca têm amigos – porque têm apenas interesses –, Estados ideológicos têm sempre inimigos: pois sempre existem os que negam, desdenham, confrontam, ignoram ou não compartilham suas crenças. Daí os Estados ideológicos estarem perpetuamente em guerra (Estados políticos, apenas eventualmente). Quando parecem não estar em guerra, é porque estão combatendo o “inimigo interno”.

O paradigma do Estado ideológico é a França da Revolução. O Terror foi sua guerra contra o “inimigo interno”, enquanto as campanhas napoleônicas foram sua guerra contra os inimigos externos. Todo Estado ideológico tem seus equivalentes ao Terror e às campanhas napoleônicas. O exemplo mais evidente é a URSS, com os “processos” de Moscou e o gulag, de um lado, e a Guerra Fria, de outro.

Pode-se inferir, portanto, que os Estados ideológicos só não fazem a guerra quando não podem, porque fracos. Neste caso, dedicam-se com afinco a combater o “inimigo interno”. Os exemplos são incontáveis. Na verdade, são tantos quantos forem os Estados ideológicos fracos, como a Espanha de Franco, o Camboja de Pol Pot, o Afeganistão dos talebans (o 11 de Setembro, aliás, pode ser compreendido como uma ação bélica heterodoxa de um Estado ideológico fraco, empreendida assim que o combate ao “inimigo interno” – os grupos rivais da guerra civil afegã e os hábitos seculares da população – havia sido vencido). O Irã dos aiatolás é, naturalmente, um Estado ideológico, o que explica sua beligerância perpétua com os EUA e o Ocidente (demonstrando ser afinal determinante, não a ideologia em si, mas o ideologismo, uma forma de irracionalismo político).

Os demais Estados muçulmanos são políticos – graças a Deus (caso contrário, o mundo talvez sequer sobrevivesse). Isso inclui a própria Arábia Saudita, apesar de tudo. Pois em que pese se tratar de um país sob a lei islâmica, há uma divisão de poderes, pela qual, na prática, o clero dita (mas não executa) as leis, porém não detém o poder. O poder é monárquico. Isso significa que o Estado saudita age movido pelos interesses da monarquia, não das crenças do clero. Isso também inclui o Paquistão, atualmente o mais problemático dos Estados muçulmanos (porque o Iraque e o Afeganistão são casos particulares, além de sob controle externo). E o Paquistão é um poder nuclear, além de alimentar um contencioso geopolítico – a Caxemira – com a Índia, e abrigar grandes grupos jihadistas, tanto fora quanto dentro do aparelho do Estado. O mundo, porém, convive há anos, em relativa tranquilidade, com a bomba paquistanesa, apesar dos grupos jihadistas e do contencioso com a Índia. Porque o Paquistão é um Estado político. Daí sua bomba ser, antes de mais nada, estatal. Ou seja, um instrumento bélico a serviço dos interesses do Estado.

Mas se o mundo pode, apesar da quantidade e da qualidade dos problemas do Paquistão, conviver com uma bomba paquistanesa (ao menos enquanto a natureza do Estado paquistanês não mudar), não pode, e com certeza não deve, conviver com uma bomba iraniana (o maior e mais complexo desafio da política externa de Barak Obama, além de o maior e mais complexo desafio da geopolítica do Oriente Médio depois da própria questão palestina – que a bomba iraniana, por sua vez, aumenta e complexiza ainda mais). Pois sendo o Irã um Estado ideológico, a bomba iraniana, se afinal existir, será, não somente uma bomba iraniana, mas igualmente uma bomba islâmica.

É verdade que não existem Estados puramente ideológicos. É verdade que o Irã tem reais interesses defensivos – afinal, Estados ideológicos estão sempre na defensiva, do mesmo modo como sempre estão na ofensiva, interna ou externamente – além de outros, como o domínio tecnológico e a ascendência no mundo muçulmano em geral e no Oriente Médio em particular.

A bomba norte-coreana, por exemplo – e a Coreia do Norte é um Estado ideológico – é um instrumento principalmente de barganha, visando conquistar um pacto de não-agressão com os EUA, o que também vale, parcialmente, para a almejada bomba iraniana. Mas também é verdade que a Coreia do Norte, apesar de seu vasto exército, é um Estado ideológico muitíssimo fraco, principalmente em termos econômicos, que, portanto, contenta-se em combater o “inimigo interno” – não é por acaso que sua população está literalmente morrendo de fome.


O Irã é hoje um Estado ideológico relativamente forte, o que é o mesmo que um Estado ideológico relativamente fraco. Há inimigos internos demais ainda por vencer. Mas se forem um dia vencidos, como os Estados ideológicos comumente fazem a guerra quando fortes, a própria natureza do regime iraniano impõe não ser suportável a existência de uma bomba islâmica.

Não porque o Irã irá necessária ou automaticamente usá-la. Mas porque sua existência fortalece enormemente o país. De um lado, isso também fortalece indiretamente os grupos terroristas islâmicos a ele ligados – por interesses e por ideologia, assim como os xiitas no Iraque, no Líbano, na Síria e no Bahrein. E como os Estados ideológicos são executores, mantenedores ou instigadores naturais da guerra, e como, ao lado de tais grupos, há várias guerras de todos os tipos, tamanhos e estados na região (algumas por explodir), o resultado da equação é, de um lado, o fortalecimento do belicismo natural do Irã e, de outro, o aumento da instabilidade regional. O aumento dessa instabilidade e desse belicismo (já ruins em si, além de embasarem e incrementarem um muito indesejável aumento da influência iraniana), somados e sinergizados, tende a levar a uma situação em que, no limite, a bomba iraniana talvez acabe sendo usada, numa espécie de profecia autorrealizada: ela seria então utilizada porque sua existência fora, em si, um forte fator determinante de seu uso.

As pressões internacionais de todos os tipos deveriam ser duras o bastante para forçar o Irã a abrir inteiramente seu programa nuclear, o que é o mesmo que forçá-lo a desistir da bomba. Caso contrário, deve-se aceitar o fato de que um Estado ideológico com um programa nuclear obscuro está, necessariamente, construindo um artefato atômico. Neste caso, restam as opções militares – que, por piores que sejam, e por mais imprevisíveis que se mostrem suas consequências, são um mal menor face à existência de um Estado ideológico forte e nuclear.

2 comentários:

ora viva disse...

Excelente texto! Excelente a clarificação das diferenças entre estados políticos e estados assentes em ideologia ou crença e o que devem ser as abordagens destes por parte dos estados políticos.

Lura do Grilo disse...

Excelente: e a imagem sublime