segunda-feira, 11 de março de 2013

UMA LUZ SOBRE O ESTADO PALESTINO OU A SOMBRA DE 1967


1.    Guerra de aniquilação



“Soldados! 300 mil combatentes do Exército do Povo estão com vocês na batalha, e atrás deles 100 milhões de árabes. A nata de nossas tropas está à frente. Ataquem os assentamentos do inimigo, transformem-nos em poeira, pavimentem as estradas árabes com os crânios dos judeus. Ataquem sem piedade” [ministro da Defesa sírio em exortação às suas tropas]. 

“A guerra só terminará com a destruição de Israel” [governo sírio]. 

“Já é tempo [...] de tomar a iniciativa de destruir a presença sionista na terra árabe” (Hafez al-Assad, ditador sírio). 

“Quando as hostilidades começarem”, calculava [o coronel Mustafá] Tlas [comandante da frente central], “a Síria e o Egito poderão destruir Israel em, no máximo, quatro dias”.

“Eu acreditava que [...] atacaríamos primeiro e destruiríamos Israel em questão de horas. Eu tinha muitas ideias sobre o que fazer com Israel depois de conquistado e eliminado” [general Amin Tantawi, comandante da 4ª Divisão egípcia].

[O marechal Amer, chefe das forças armadas egípcias] expressou numa conversa telefônica com Ahmad Shuqayri [líder da OLP] a esperança de que “logo poderemos tomar a iniciativa e nos livrarmos para sempre de Israel”.

“Destruiremos Israel e seus habitantes, e quanto aos sobreviventes – se houver algum – os navios estarão prontos para deportá-los” [Ahmad Shuqayri].    

O primeiro-ministro argelino, Houari Boumedienne, declarou: “A liberdade da pátria será completada com a destruição da entidade sionista”.

O ministro do Exterior do Iêmen, Salam: “Queremos a guerra. A guerra é a única forma de resolver o problema de Israel”.

As forças jordanianas devem “destruir todos os edifícios e matar todas as pessoas que estiverem” nessas áreas, incluindo civis [israelenses].

 
Todas estas declarações de altas autoridades árabes e palestinas, feitas nas semanas imediatas que antecederam o início da Guerra dos Seis Dias, estão obviamente documentadas (Michael B. Oren, Seis dias de guerra junho de 1967 e a formação do moderno Oriente Médio, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001, pp. 92, 108, 129, 169, 202, 203, 205, 349, ibidem, ibidem). Mas a obviedade para aí. Pois não se imagina que altas autoridades políticas e militares, e de vários países, possam pretender, planejar e tentar empreender, na segunda metade do século XX, a aniquilação de um país e o extermínio de sua população. Outra coisa aqui não óbvia: não é possível compreender a presente situação do conflito israelense-palestino, incluindo a recente tentativa de se fazer reconhecer um Estado palestino pela ONU, sem compreender a guerra de 1967.
 

2.    O Estado palestino na ONU
 

A Autoridade Palestina (AP), que é na prática a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), que é na prática o Fatah (seu grupo dominante), decidiu há pouco submeter à ONU um pedido para que o Estado palestino seja reconhecido pela entidade (hoje, a OLP tem ali status de observador). As esquerdas apoiam, Hugo Chávez apoiava, a África apoia, metade da Europa apoia, o Brasil apoia. Os EUA, Israel e eu não apoiamos.

Não porque um Estado palestino não deva existir. É justo e necessário, além de inevitável, que ele exista. E Israel tem todo interesse nisso. Pois sem um Estado palestino, Israel não apenas não terá paz como ainda corre o risco de, no futuro, ver a população da Cisjordânia pleitear a cidadania israelense. Israel teria, então, uma maioria árabe.

A própria ONU foi a primeira a saber da necessidade de decretar a existência de um Estado palestino: ela o sabe há mais de meio século, quando, em 29 de novembro de 1947, votou pela divisão da então colônia da Palestina Britânica em dois estados, “um judeu e um árabe” (Resolução 181).

O “Estado judeu” seria declarado no local em maio de 1948, chamando-se desde então Israel. Mas o “Estado árabe” não o seria.

O motivo foi, simplesmente, que os árabes da Palestina Britânica, com o apoio dos demais árabes da região, não aceitaram a partilha, pretendendo que toda a Palestina Britânica se tornasse um Estado árabe, contra a vontade expressa da expressiva minoria judaica (30% da população). Para além de profundas razões históricas e da história recente do Holocausto, como essa minoria judaica na Palestina Britânica possuía organizações protoestatais, como a Agência Judaica e a milícia Haganá, entre outras, a criação de uma Grande Palestina árabe na ex-colônia britânica teria resultado no início imediato de uma selvagem guerra civil.

Em vez disso, houve uma guerra na acepção da palavra, iniciada na manhã seguinte à declaração de independência de Israel (14 de maio de 1948), opondo o Haganá à iniciativa militar da Legião Árabe (integrada por árabes locais reforçados por egípcios, sírios, libaneses e jordanianos, entre outros). O Haganá venceu, a Legião Árabe perdeu, Israel sobreviveu à primeira tentativa de sua destruição e os árabes locais começaram a se preparar para a segunda tentativa (que aconteceria dezenove anos depois, em 1967, sob a liderança do Egito de Nasser), em vez de começar a construir seu Estado. Eis o resumo da ópera.

Eis, também, o motivo de os mesmos palestinos terem de voltar, agora, à mesma ONU, ao decidirem, afinal, criar seu Estado sem antes destruir o Estado de Israel (ainda que isso não valha para todos os palestinos: o grupo terrorista Hamas, em Gaza, segue se recusando a aceitar sua existência). O problema é que desde a primeira intervenção da ONU nesse sentido, em 1947, aconteceram algumas coisas.

As principais foram as guerras de 1948, 1967 e 1973 – esta, a terceira e derradeira tentativa árabe de destruir belicamente Israel, com sua invasão simultânea a partir do Egito (sudeste) e da Síria (noroeste).

Se a guerra de 1948 foi a primeira e a de 1973, a última, a de 1967 foi a mais determinante. Israel conquistou a Faixa de Gaza – sob domínio egípcio entre 1948 e 1967 –, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental – sob domínio jordaniano no mesmo período (daí não ter sido Israel que impediu a criação do Estado palestino entre 1948 e 1967: simplesmente, não se quis criá-lo).


3.    Guerra dos Seis Dias: a batalha pela história


A história não é unívoca e transparente, mas, ainda assim, há fatos inequívocos. A Alemanha agrediu a Polônia em 1939 – a afirmação de que a Polônia tenha agredido a Alemanha seria simplesmente uma mentira. Também é simplesmente mentira, depois transformada em mito, a afirmação de que Israel foi responsável pela guerra de 1967 – por ter maquiavélicos planos expansionistas-sionistas envolvendo Gaza, Jerusalém Oriental e Cisjordânia. Nem Israel foi minimamente responsável pela guerra, nem havia quaisquer planos para esses territórios.

A guerra foi provocada pelo Egito – segundo as próprias autoridades egípcias:
 

Afirmo que a liderança política do Egito convocou Israel à guerra. Ela claramente provocou Israel, obrigando-o a um confronto (Salah al-Hadidi, presidente do tribunal, no julgamento dos oficiais tidos como responsáveis pela derrota egípcia) (opus cit., p. 368).
 

Em maio de 1967, o Egito, agindo unilateralmente e sem outro motivo além de seu próprio desejo de aniquilar Israel, expulsou as forças de paz da ONU do Sinai (UNEF), remilitarizou a península e fechou o Estreito de Tiran, cercando a cidade portuária israelense de Eilat. Ao mesmo tempo, convocou os demais países árabes para um pacto militar visando a guerra com Israel. Uma guerra – as declarações acima não deixam qualquer margem para dúvida – de aniquilação.

Isso quanto à causa e à natureza da guerra de 1967. Quanto aos territórios palestinos conquistados no seu transcorrer, o que os documentos israelenses demonstram de forma não ambígua é que não somente não havia plano expansionista algum, como sequer havia a disposição de entrar nesses territórios então sob domínio egípcio (Gaza) e jordaniano (Cisjordânia e Jerusalém Oriental).

Especificamente quanto aos dois últimos, depois de responder ao fogo de artilharia iniciado pela Jordânia contra alvos civis em Jerusalém Ocidental, e antes de tentar qualquer avanço terrestre contra as posições jordanianas em Jerusalém Oriental, o governo israelense propôs um cessar-fogo imediato à Jordânia. O cessar-fogo foi prontamente rejeitado, e Israel, então, começou a se preparar para avançar rumo ao leste – o que não queria (daí a oferta de cessar-fogo), porque já lutava no oeste contra o Egito (pp. 233-4). Com o indesejado avanço para o leste e a consequente criação de uma segunda frente, surge, entre outras, a questão de Jerusalém Oriental. Ou seja: deve-se cercá-la, tomá-la, entregá-la ao Vaticano...?

O general Moshe Dayan, então ministro da Defesa, defende a ideia de cercar a cidade, sem tomá-la (outros levantariam questões semelhantes sobre as demais cidades da Cisjordânia). O ministério e o comando militar israelenses não sabem, a princípio, o que fazer, o que se devia fazer, o que se podia fazer, o que se queria fazer.


No final [de longas e infrutíferas discussões], os ministros concordaram que não concordavam, aceitando a fórmula de compromisso proposta [por Levi] Eshkol [o primeiro-ministro]: “Em vista da situação criada em Jerusalém pelo bombardeio jordaniano, e depois do envio de advertências a[o rei] Hussein, talvez tenha sido criada a oportunidade de capturar a Cidade Velha”. A tarefa imediata, no entanto, era silenciar os canhões jordanianos (p. 255).
 

O caso mais espetacular, no entanto, é o das colinas de Golan. Como em relação a Jerusalém Oriental, Moshe Dayan a princípio nega, repetidamente, o pedido do comandante da frente norte para invadir as colinas, apesar dos ataques da artilharia síria, argumentando que a guerra é com o Egito. Apenas no último dia de hostilidades, sob pressão direta da população da Galileia (norte de Israel), cujos representantes invadem uma reunião do gabinete questionando se não fazem jus, como os demais cidadãos de Israel, à proteção das Forças de Defesa, é que Dayan ordena o avanço sobre Golan, sem que, porém, qualquer decisão tenha sido tomada sobre o objetivo desse avanço, além da destruição da artilharia síria (pp. 350-61).
 

4.    Sionismo versus ódio antijudaico

 
Outro mito que não resiste em pé em tal contexto diz respeito ao sionismo, acusado de ter um viés racista quando, neste caso, o racismo está documentado e francamente do lado árabe.
 

A cidade [do Cairo] estava enfeitada com cartazes sinistros que representavam soldados árabes atirando, esmagando, estrangulando e trucidando judeus barbados e de nariz adunco (p. 123).

[Houve então a] revelação de que a Jordânia [nos anos anteriores a 1967, quando dominou a área] destruíra as sinagogas da Cidade Velha, e pavimentara ruas, e até latrinas, com lápides judias do [cemitério do] Monte das Oliveiras (p. 364).

 
Tal negação de toda dignidade humana aos judeus como um todo, ao não poupar sequer seus mortos, não encontra justificativa racional em nenhum ato do Estado ou dos governos de Israel – e só tem paralelo, na história recente, na Alemanha nazista.

A verdade é que as questões geopolíticas envolvendo Israel e os palestinos há muito degeneraram, do lado palestino, árabe e muçulmano, em aberto e profundo racismo, em que as “massas” alimentam os governos, os governos alimentam as “massas”, e o clero muçulmano alimenta ambos: “Destruiremos Israel e seus habitantes”; “Pavimentem as estradas árabes com os crânios dos judeus”. Um vídeo recente, de cerca de três anos, mostra o atual presidente egípcio, Mohammed Morsi, referindo-se aos israelenses como “descendentes de porcos e macacos” (http://www.interjornal.com.br/noticia.kmf?canal=131&cod=19692769). A mesma expressão é comumente encontrada em livros escolares árabes e palestinos. Os que inculpam Israel por todos os males do mundo, e de uma forma ou de outra questionam o direito do país de existir (mito maior e razão de ser dos demais), são cúmplices voluntários ou involuntários desse racismo.

Racismo tóxico e virulento, que, ao lado de questões geopolíticas, não redundou em sua consequência lógica, a aniquilação de Israel e o massacre de sua população, apenas porque, em 1967, depois da expulsão dos observadores da ONU por Nasser, depois de cercado pelo leste, pelo oeste, pelo norte e pelo sul por exércitos árabes, depois de amputado de sua saída para o mar Vermelho pelo fechamento do Estreito de Tiran, depois de ver o “moderado” Hussein voar da Jordânia ao Cairo e formalizar um pacto militar com Nasser, depois de esperar durante semanas alguma ação internacional que interrompesse o deslocamento e a preparação das tropas árabes e o bombardeio verbal pedindo a aniquilação do país, contando apenas com seus próprios meios, Israel atacou para rechaçar a ameaça funesta, e felizmente venceu. A história não precisava de um segundo Holocausto.
 

5.    Forças e fraquezas
 

Outro mito destruído pelos documentos da Guerra dos Seis Dias diz respeito à simbiose histórica entre o sionismo e o “imperialismo” americano. Israel não contou com uma só bala de fabricação norte-americana em 1967, pelo simples fato de que, até então, os EUA, para não melindrar os árabes e seu farto petróleo, sistematicamente se recusavam a fornecer qualquer armamento para Israel – que lutou com armas francesas, incluindo os aviões, compradas no início da década. Israel, além disso, foi submetido a um completo embargo armamentista durante a guerra e logo depois – enquanto os soviéticos armavam os exércitos árabes graciosamente. Nas últimas ações israelenses, no Golan, parte das tropas usava armamento russo capturado aos egípcios no Sinai (os EUA começariam a mudar sua postura em função dos próprios fatos da guerra de 1967).

O próximo mito a cair afirma que o conflito do Oriente Médio sempre foi assimétrico por contrapor a força agressiva israelense à fraqueza agredida árabe. Um marciano teria imensa dificuldade de compreender que um país que possuía, à época, 15 km (quinze quilômetros) de largura em sua parte mais estreita, e uma população de 2 milhões de habitantes, fosse o lado forte naquele confronto com inúmeros países árabes, envolvendo uma vastíssima região entre o Atlântico (Marrocos) e a Ásia (Iraque), e centenas de milhões de habitantes. Inúmeros países árabes, porque se os exércitos do Egito, da Síria e da Jordânia formaram a linha de frente do cerco a Israel, houve o envio de tropas e/ou de armamentos da Argélia, da Arábia Saudita, do Iêmen, do Iraque etc., para não falar de apoio político e financeiro.

 
Convergiam para o Sinai contingentes militares de países [como] Marrocos, Líbia, Arábia Saudita [e] Tunísia. [A] Síria [concordou] em enviar uma brigada para lutar ao lado dos iraquianos na Jordânia. Combinados, os exércitos árabes tinham 900 aviões de combate, mais de cinco mil tanques e meio milhão de homens. Acrescente-se a isto um imenso poder político (p. 205).
 

Israel venceu a guerra de 67, quando não era a potência militar de hoje (e na qual depois se transformou por necessidade de sobrevivência), principalmente por ter atacado primeiro (e destruído a força aérea egípcia). Houve, porém, tempo mais do que suficiente para o Egito fazer o primeiro ataque – o que somente não aconteceu por receio político de Nasser. Ela esperava armado na fronteira – tentando forçar um primeiro tiro israelense para só então lançar maciçamente suas forças como um ato de “defesa”.

Após os fatos, muitos afirmariam que os “detalhes” não fazem diferença, porque os árabes não tinham chance de vencer, ou seja, Israel estava “destinado” a vencer a guerra que não planejou – o que já não é um mito, mas mera estupidez. Como diz o famoso aforismo, numa guerra, sabe-se como ela começa, mas não como termina. Neste caso em particular, grande parte da vitória se deu, não por méritos militares israelenses, mas por erros táticos árabes, que tinham a iniciativa e a superioridade bélica. A razão daquela afirmação post facto é reverter a imprevista derrota árabe – afinal, não se vai à guerra imaginando perdê-la – numa “vitória” da propaganda, reforçando a vitimização árabe e palestina.

O último grande mito envolvendo a Guerra dos Seis Dias é, talvez, o mais surpreendente. Em 1964, sob os auspícios da Liga Árabe, foi criada, no Cairo, a Organização para a Libertação da Palestina, vulgo OLP. Mas qual “Palestina” se queria então “libertar”, se nem Gaza nem Jerusalém Oriental nem a Cisjordânia tinham, em 1964, um só soldado ou colono israelense? Resposta: Israel. A OLP foi criada como um braço guerrilheiro e terrorista da luta estratégica dos países árabes visando a aniquilação do Estado israelense (deveria, portanto, chamar-se ODI – Organização para a Destruição de Israel). A criação da OLP (1964) não foi, assim, como o demonstram inquestionavelmente as datas, reação ao “expansionismo agressivo israelense” (1967). Ao contrário, a criação da OLP foi uma das causas da guerra de 1967.

A Guerra dos Seis Dias deixou um legado ainda hoje irresolvido.

 
6.    O legado da guerra


O objetivo de Israel, depois da guerra de 1967, era trocar as terras imprevistamente conquistadas numa guerra imprevista e indesejada pelo reconhecimento político-diplomático e por tratados definitivos de paz. Apenas Jerusalém Oriental não seria negociada – por uma rara decisão unânime de todo o espectro político israelense, da esquerda aos religiosos. Gaza e Cisjordânia, e ainda o Golan e o Sinai (conquistado ao Egito), já a partir de agosto de 1967, estavam sobre a mesa de negociações. A mesa, porém, ficou vazia do lado árabe e palestino.

Somente doze anos depois, em 1979, e apenas após mais uma tentativa fracassada de aniquilar Israel – Guerra do Yom Kippur, 1973 –, o Egito aceitaria receber o Sinai de volta ao preço “terrível” de assinar um acordo de paz e de reconhecer diplomaticamente Israel.

No sentido inverso ao que afirma mais um mito, a responsabilidade primária pelo fracasso da implementação da paz na região já a partir de 1967 cabe, portanto, aos árabes, incluindo os palestinos.

Enquanto a corresponsabilidade palestina, árabe e muçulmana pelo longo fracasso histórico do processo de paz não for verdadeiramente reconhecida, as atitudes palestina, árabe e muçulmana não mudarão radicalmente. Por exemplo, mesmo a existência atual de refugiados palestinos é, ao fim e ao cabo, responsabilidade dos países árabes: em 1948, enquanto cerca de 750 mil palestinos fugiram do nascente Estado de Israel, cerca de 750 mil judeus foram expulsos de vários estados árabes tornados hostis. Esses refugiados judeus prontamente deixaram de sê-lo, para se tornarem cidadãos de Israel. Porém medida equivalente foi negada aos palestinos nos diversos países árabes (com exceção da Jordânia). Os refugiados palestinos seriam, desde então, usados como arma política. E enquanto isso não mudar, não haverá paz.

Prova disso é, atualmente, o papel do Hamas e do Hezbolah como agentes da agressão a Israel, patrocinados pelo Irã dos aiatolás e pela Síria do Partido Baath – que pregam ou almejam o fim de Israel –, assim como, nos anos 1960, fazia a OLP patrocinada pelo Egito de Nasser e pela Síria do Partido Baath.

O que tudo isso tem a ver com a recente ida da Autoridade Palestina à ONU? Tudo.


7.    A ida à ONU ou às negociações


Israel não agiu em 1967 como Hitler na Polônia. A ocupação da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, hoje o grande pomo da enorme discórdia, com Gaza em segundo plano (pois lá não há colônias israelenses nem ocupação militar), assim como a subsequente presença israelense, incluindo a construção de colônias, são consequência direta de decisões e ações árabes e palestinas, tanto quanto israelenses. Portanto, os palestinos têm de negociar com Israel, ainda que não gostem das condições, porque têm culpa no cartório da história.

Agir como puras vítimas inocentes, e pretender, como última tentativa de impor fatos consumados a Israel, ir à ONU a fim de declarar o Estado palestino, em função dos acontecimentos e das responsabilidades históricos compartilhados, que levaram à presente situação, não poderá resolver nada, pois Israel não o aceitará. E não o aceitará porque se julga no direito de fazê-lo. Afinal, Israel deseja negociar os territórios ocupados em junho de 1967 desde... agosto de 1967. Enquanto os palestinos decidiram sentar à mesa somente em 1993 (Acordos de Oslo).

Em primeiro lugar, isso determinou a criação de fatos consumados entre 1967 e 1993, que de repente os palestinos descobriram querer reverter. Em segundo lugar, os palestinos não se mantiveram à mesa a partir de 1993, mas se levantaram em várias ocasiões.

A saída mais espetacular da mesa de negociações foi a de Arafat em 2000, às vésperas da assinatura dos Acordos de Camp David, patrocinados por Bill Clinton, que abririam as portas para a resolução definitiva do conflito. Em vez disso, sua saída escancarou os portões da primeira intifada – apoiada e estimulada por Arafat para, num grotesco erro de cálculo, tentar conseguir mais algumas concessões israelenses. Além disso, como o próprio Arafat declarou, ele seria morto antes de seu avião pousar de volta, se assinasse os acordos – o “estadista” palestino optou, portanto, pela própria sobrevivência.

O Estado palestino tem de existir e existirá. Mas apenas se e quando os palestinos negociarem desabridamente, a partir de certa honestidade histórica, ou seja, do reconhecimento, na prática de sua atitude política, de que são corresponsáveis pela situação atual. Situação atual que é o ponto de partida para um possível acordo, não seu ponto de chegada. Tampouco podem ser um ponto de chegada as fronteiras anteriores à guerra de 1967, como os palestinos hoje almejam, tentando, mais uma vez, reverter o relógio da história, da qual foram participantes muito mais ativos do que aceitam reconhecer.

O mesmo não pode ser dito de alguns analistas sensatos, que não se furtam a encarar certos fatos fundamentais, como este forte defensor da iniciativa palestina:

 
A única coisa que poderia justificar a defesa das colônias [israelenses], inclusive retrospectivamente, seria sua utilização como arma de negociação, e assim foram concebidas nos anos posteriores à conquista militar de 1967 pelos governos trabalhistas (Lluís Bassets,Proposta de Abbas na ONU é multilateral e legitimadora”, El País, http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2011/09/23/analise.jhtm).

 
Hoje é pouco lembrado que, nessa guerra, Israel também conquistou ao Egito toda a enorme Península do Sinai, até as margens do canal de Suez. E que construiu no Sinai várias colônias, entre 1967 e 1979. Neste ano, porém, as colônias no Sinai foram não apenas interrompidas, mas desmanteladas. E o Sinai foi devolvido ao Egito. Motivo: a assinatura de um acordo de paz e o mútuo reconhecimento diplomático. As colônias eram uma forma de dizer ao Egito que o tempo estava contra ele: Israel não queria apenas negociar, mas tinha pressa em fazê-lo. Quanto mais demorasse, mais difícil seria. Entre outras coisas, porque fatos criam fatos. Assim, as “colônias de negociação” dos trabalhistas na Cisjordânia acabariam transformadas pela direita religiosa israelense em colônias de ocupação. Se isso contraria a ideia inicial, por outro lado reforça essa mesma ideia: quanto mais demorasse, mais difícil seria. Os palestinos, por outro lado, achavam que o tempo estava a seu favor.

Obviamente, os trabalhistas de 1967 cometeram um trágico erro de cálculo: não contavam com o trágico erro de cálculo das lideranças palestinas, que ainda levariam décadas para decidir negociar. Tudo se tornou dolorosamente difícil. E não houve um Mandela palestino para, a certa altura (depois de 1993), dizer ao seu povo que era preciso aceitar certos fatos dolorosos.

Mandela queimou todo o capital político de uma vida para impor internamente ao Congresso Nacional Africano (CNA) a ideia de que não haveria retaliações, de que os brancos não seriam expropriados e muito menos expulsos, e que continuariam ricos. A alternativa era o destruição da economia sul-africana e provavelmente do país, pela guerra civil. No caso palestino, é preciso aceitar que não haverá a volta às fronteiras de 1967 nem a volta dos “refugiados de 1948” (a maioria já nascida no exílio) para o território israelense; que o novo Estado palestino não poderá ser militarizado; que o controle do Vale do Jordão será compartilhado; que as principais colônias não serão desmontadas (mas haverá compensações com terras da Galileia, ao norte). Etc. Nada que o desvio pela ONU trará. Portanto, dificilmente trará uma solução negociada, mas aumentará as expectativas dos palestinos sem lhes dar nada em troca. Haverá, portanto, mais frustração e rancor, e menos chances de paz.

O fato fundamental, agora, é que partes importantes dos espectros políticos tanto israelense quanto palestino não querem uma negociação verdadeira, que implicaria em perdas dolorosas para ambos.
 

8 Na mesa de cirurgia


A melhor metáfora (de Amós Oz) para a necessária e necessariamente dolorosa operação geopolítica é a cirurgia. Um caso particular e particularmente complexo de cirurgia, o da separação de irmãos siameses. Há cirurgias ditas “de eleição”, quando se pode escolher sua data. Mas também há cirurgias de emergência. Neste caso, o adiamento da operação transformou uma cirurgia de eleição em uma de emergência. O prognóstico sem a intervenção é péssimo.

            Mas como operar um paciente, ou melhor (ou pior), dois, que não querem ser operados? E que consideram este um dos piores momentos para tentá-lo?

            Há uma fórmula lapidar que resolvia o dilema israelense de ter de negociar com representantes palestinos em meio a ondas de atentados terroristas palestinos: negociar como se não houvesse atentados; combater os terroristas como se não houvesse negociações. Mutatis mutandis, é o mesmo caso: negociar com a Autoridade Palestina como se não houvesse o Hamas, rejeitar o Hamas como se não houvesse negociações com a Autoridade Palestina. Do lado palestino, trata-se de negociar como se não houvesse a expansão das colônias na Cisjordânia, e rejeitar a expansão das colônias na Cisjordânia como se não houvesse negociações.


            9 A balança assimétrica
 

            A política internacional é uma balança sensível cujos pratos são feitos de matérias distintas. Um deles é pragmático, palpável, real: os interesses. O outro é moral, impalpável, abstrato: os valores. Mas serem abstratos e impalpáveis não tornam os valores menos reais. Israel não é um Estado cínico ou amoral, por ser o reflexo de uma nação, de uma cidadania (apenas Estados totalitários, por sua dominação pela força da própria população, são livres dessa condição). A ocupação da Cisjordânia e a submissão dos palestinos às forças armadas israelenses não é uma solução para Israel e para os israelenses, mas um problema. E isto pelo simples fato de que os palestinos não aceitam essa situação (o que nada tem de óbvio ou necessário: os austríacos, por exemplo, votaram por sua anexação e submissão à Alemanha em 1938). A vontade política da população local é a própria base da moralidade e da legitimidade políticas modernas – da democracia representativa à soberania à sua tradução geopolítica, o Estado-nação. Os palestinos devem ter seu Estado porque querem seu Estado. Nada mais importa, sequer o fato de, na prática, o terem rejeitado entre 1948 e 1993. Israel opor-se a isso significa pôr-se em oposição aos seus próprios valores fundamentais. Seria, então, um caso de puro interesse. Mas se não há ações puramente movidas por valores na política internacional, tampouco há ações movidas puramente por interesses. A pureza não é deste mundo.

            O argumento dos anti-israelenses de que Israel é um Estado agressivo, expansionista e anexacionista por “natureza”, tudo resumido na palavra “colonialista”, não resiste à razão, nem aos fatos, nem aos documentos. A própria origem de Israel não pode, sem cinismo, ser separada da catástrofe da destruição dos judeus europeus durante a Segunda Guerra Mundial. As datas históricas não são “coincidências” históricas: a ONU foi criada em 1945 em função dessa mesma guerra, e a partilha da Palestina Britânica em “um Estado judeu e outro árabe”, determinada já em 1947, constitui o primeiro grande gesto geopolítico da nova organização em função do mesmo contexto histórico – que incluía o fim do Império Britânico e do colonialismo europeu e a emergência, em quase todos os continentes, de muitos novos Estados, como a Índia e o Paquistão (no mesmo ano de 1947). Israel nasceu a fórceps de uma gestação extremamente dolorosa e ameaçada. Sua sobrevivência aos primeiros anos não estava nem de longe assegurada. Aliás, os próprios árabes eram os primeiros a acreditar nisso: daí terem tentado por três vezes destruir o Estado neonato, em 1948, em 1967 e em 1973. Mas Israel sobreviveu. Também sobreviveu o anseio palestino por seu Estado, que, antes tarde do que nunca, atingiu afinal a idade da razão, e a percepção de que isso não acontecerá sobre as ruínas de um Estado de Israel destruído, mas ao lado de um Estado de Israel firmemente assentado.

            A idade da razão política palestina não chegou, porém, perfeita. Há uma esquizofrenia que a fratura: a dos grupos políticos que seguem negando o direito de Israel de existir e que, portanto, não aceitam a construção de um Estado palestino ao seu lado. Eles são vários, com destaque para o Hamas. Ao mesmo tempo, a razão política israelense degenerou com a idade.

Se Israel aceitou a partilha em 1948, e se pretendia, logo após a vitória de 1967, negociar imediatamente a devolução dos territórios recém-ocupados em troca do reconhecimento de Israel e de acordos definitivos de paz (segundo as atas de reuniões do próprio gabinete israelense de 1967),[1] as recusas egípcia, jordaniana e palestina (que somente mudariam a partir de meados dos anos 1970), abriram espaço (e tempo) para que grupos israelenses contrários à devolução de Gaza e Cisjordânia (mas não do Sinai) – ortodoxos com uma visão religiosa da geopolítica e militares com uma visão de segurança da mesma geopolítica, apoiados por e aliados aos partidos de direita e religiosos – pudessem confrontar e, por fim, sequestrar a liderança histórica e a estratégia trabalhistas, apoiadas pela esquerda israelense e, na maior parte do tempo, pela maior parte da população de Israel. A “janela de oportunidade” aberta pela disposição de negociar os territórios já em 1967 não cessou de se fechar desde então, com uma de suas folhas sendo empurrada por parte importante do espectro político israelense, e a outra, por parte não menos importante do espectro político palestino.


            10 A janela emperrada


            Essa janela, por outro lado, jamais se fechará inteiramente, por mais que a empurrem. Pois ela tem um “defeito de fabricação” que, a partir de certo ponto, a emperra: o atrito da interpenetração dos povos. Parte da população israelense é árabe-palestina, parte da população da Cisjordânia é hoje judaico-israelense. E se parte das colônias pode e deve ser desmantelada (as menores e mais isoladas), parte não o pode (as maiores e contíguas ao território de Israel), pois isso levaria a uma guerra civil israelense, com o exército, com seu caráter de milícia, em que todos os cidadãos servem, recebendo ordens de desalojar à força centenas de milhares de famílias que, armadas de metralhadoras e dogmas, não deixarão suas casas. O caminho, já proposto pelo lado israelense, é a troca de territórios. Sim, isso significa a entrega de parte do território israelense (na região norte do país, a Galileia), em troca da manutenção de áreas equivalentes da Cisjordânia ocupadas pelas colônias a serem mantidas. Os quatro outros problemas “irresolvíveis” são o “retorno” dos refugiados palestinos para território israelense, a partição de Jerusalém, a desmilitarização do futuro Estado palestino e o controle conjunto da fronteira natural leste, o vale do Jordão.

Para os “puros e duros” dos dois lados, as duas primeiras medidas são equivalentemente inaceitáveis. Ou seja, para os palestinos é “impossível” negociar o “sagrado direito de retorno” dos “refugiados”; para os israelenses, é “impossível” negociar a “sagrada” integridade de Jerusalém, “capital eterna e indivisível de Israel”.

A grande quantidade de aspas dessas frases não é um recurso de estilo, mas uma indicação gráfica de que esses argumentos não devem ser tomados em sua pura literalidade. A pureza não é deste mundo. Vários governos israelenses, a partir de Rabin, já aceitaram a divisão de Jerusalém, e recentemente a Autoridade Palestina, em conversações secretas, aceitou discutir a exigência de “retorno dos refugiados” palestinos. O caminho seria a substituição desse “retorno” em massa (envolvendo milhões de indivíduos) pelo “retorno” de uma parte simbólica dessa população de apátridas, enquanto o restante receberia indenizações. Ao mesmo tempo, os governos árabes que desde 1948 e 1967 abrigaram os refugiados iniciais (e sem aspas) e seus descendentes (que, portanto, não estariam retornando, mas partindo), porém se negaram a lhes conceder cidadania (com destaque para a Síria e o Líbano), estenderiam sua cidadania a todos os nascidos em seus territórios.

As duas outras questões, relativas diretamente à segurança, são mais simples de equacionar. Ser um Estado desmilitarizado não deveria ser um problema para o novo Estado palestino, mas uma solução. Com quem o novo Estado palestino faria a guerra, se nasceria no contexto de um acordo de paz abrangente com Israel? Invadiria, talvez, o Egito a partir de Gaza? O Líbano? A Síria? A Jordânia? E por qual motivo? Disputas de fronteira? Como, se elas seriam definidas no mesmo acordo abrangente? A Costa Rica é o Estado latino-americano politicamente mais estável, de instituições democráticas mais sólidas e de maior IDH. A causa principal está na abolição de suas forças armadas em 1948. Livrou-se ao mesmo tempo dos golpes e dos gastos militares. Considerando a histórica instabilidade política do mundo árabe, a tradição do uso da força na política e a fragmentação ideológica, incluindo explosivas questões religiosas (o Hamas, por exemplo), a desmilitarização palestina é o caminho mais seguro para a estabilidade.

O controle conjunto da fronteira natural ao leste, o vale do Jordão, é um imperativo geopolítico. Até 1967, a parte central de Israel tinha 15 quilômetros de largura. Afastar a fronteira militar para o Jordão resolve esse problema. Além disso, no contexto de um acordo abrangente, que incluiria a partição de Jerusalém, sem o controle conjunto do vale do Jordão, a fronteira externa de Israel passaria pelo centro de sua capital. Que país tem sua capital na fronteira? Que país tem sua capital dividida ao meio por uma fronteira?
 

11 A distante viagem à proximidade


Um acordo definitivo israelense-palestino não está no campo do impossível, mas em algum lugar esquivo entre o dificílimo e o improvável. Há uma frase de John Kennedy sobre seu desafio à comunidade científica e tecnológica americana, feito em 1960, de levar um homem à lua e trazê-lo de volta em segurança antes do fim daquela década (considerado, a princípio, surpreendente e impossível por boa parte daquela comunidade), em que ele afirma tratar-se de algo a ser feito, e ser feito pelos EUA, não por ser fácil, mas por ser difícil. Obviamente, é muito menos complicado chegar à lua do que a um acordo de paz israelense-palestino. Mas ainda assim não se sai do campo do possível. Esta é a primeira verdade ao mesmo tempo lógica e factual sobre a qual pisar com alguma firmeza, a fim de escapar do terreno instável e escorregadio em que a coisa toda patina. Se é possível, pode ser feito –  apesar de todas as dificuldades e todos os obstáculos.

Se pode ser feito e se também deve sê-lo, por não haver alternativa para alcançar a paz e a justiça para todos os envolvidos, trata-se de ter a coragem e a grandeza moral de trocar o esquivo “se” por um definido “quando”. Negociar, não se tais condições forem aceitas pela outra parte, mas porque não se aceita mais a continuação das condições atuais. As lideranças de ambos os lados não podem mais se esquivar de responder, antes de qualquer dúvida sobre as negociações, à antiga pergunta do romano Cícero: “Até quando?”.



[1] Cf. Michael B. Oren, Seis dias de guerra junho de 1967 e a formação do moderno Oriente Médio.

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