1. Guerra de aniquilação
“Soldados! 300 mil
combatentes do Exército do Povo estão com vocês na batalha, e atrás deles 100
milhões de árabes. A nata de nossas tropas está à frente. Ataquem os assentamentos
do inimigo, transformem-nos em poeira, pavimentem as estradas árabes com os
crânios dos judeus. Ataquem sem piedade” [ministro da Defesa sírio em exortação
às suas tropas].
“A guerra só
terminará com a destruição de Israel” [governo sírio].
“Já é tempo [...] de
tomar a iniciativa de destruir a presença sionista na terra árabe” (Hafez
al-Assad, ditador sírio).
“Quando as
hostilidades começarem”, calculava [o coronel Mustafá] Tlas [comandante da
frente central], “a Síria e o Egito poderão destruir Israel em, no máximo,
quatro dias”.
“Eu acreditava que
[...] atacaríamos primeiro e destruiríamos Israel em questão de horas. Eu tinha
muitas ideias sobre o que fazer com Israel depois de conquistado e eliminado”
[general Amin Tantawi, comandante da 4ª Divisão egípcia].
[O marechal Amer,
chefe das forças armadas egípcias] expressou numa conversa telefônica com Ahmad
Shuqayri [líder da OLP] a esperança de que “logo poderemos tomar a iniciativa e
nos livrarmos para sempre de Israel”.
“Destruiremos Israel
e seus habitantes, e quanto aos sobreviventes – se houver algum – os navios
estarão prontos para deportá-los” [Ahmad Shuqayri].
O primeiro-ministro
argelino, Houari Boumedienne, declarou: “A liberdade da pátria será completada
com a destruição da entidade sionista”.
O ministro do
Exterior do Iêmen, Salam: “Queremos a guerra. A guerra é a única forma de
resolver o problema de Israel”.
As forças jordanianas
devem “destruir todos os edifícios e matar todas as pessoas que estiverem”
nessas áreas, incluindo civis [israelenses].
Todas estas
declarações de altas autoridades árabes e palestinas, feitas nas semanas imediatas
que antecederam o início da Guerra dos Seis Dias, estão obviamente documentadas
(Michael B. Oren, Seis dias de guerra – junho de 1967 e
a formação do moderno Oriente Médio, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001, pp.
92, 108, 129, 169, 202, 203, 205, 349, ibidem, ibidem). Mas a obviedade para aí.
Pois não se imagina que altas autoridades políticas e militares, e de vários
países, possam pretender, planejar e tentar empreender, na segunda metade do
século XX, a aniquilação de um país e o extermínio de sua população. Outra
coisa aqui não óbvia: não é possível compreender a presente situação do
conflito israelense-palestino, incluindo a recente tentativa de se fazer reconhecer
um Estado palestino pela ONU, sem compreender a guerra de 1967.
2. O Estado palestino na ONU
A Autoridade
Palestina (AP), que é na prática a OLP (Organização para a Libertação da
Palestina), que é na prática o Fatah (seu grupo dominante), decidiu há pouco submeter
à ONU um pedido para que o Estado palestino seja reconhecido pela entidade
(hoje, a OLP tem ali status de
observador). As esquerdas apoiam, Hugo Chávez apoiava, a África apoia, metade
da Europa apoia, o Brasil apoia. Os EUA, Israel e eu não apoiamos.
Não porque um Estado
palestino não deva existir. É justo e necessário, além de inevitável, que ele
exista. E Israel tem todo interesse nisso. Pois sem um Estado palestino, Israel
não apenas não terá paz como ainda corre o risco de, no futuro, ver a população
da Cisjordânia pleitear a cidadania israelense. Israel teria, então, uma
maioria árabe.
A própria ONU foi a
primeira a saber da necessidade de decretar a existência de um Estado palestino:
ela o sabe há mais de meio século, quando, em 29 de novembro de 1947, votou
pela divisão da então colônia da Palestina Britânica em dois estados, “um judeu e um árabe” (Resolução 181).
O “Estado judeu” seria
declarado no local em maio de 1948, chamando-se desde então Israel. Mas o “Estado
árabe” não o seria.
O motivo foi,
simplesmente, que os árabes da Palestina Britânica, com o apoio dos demais
árabes da região, não aceitaram a partilha, pretendendo que toda a Palestina
Britânica se tornasse um Estado árabe, contra a vontade expressa da expressiva
minoria judaica (30% da população). Para além de profundas razões históricas e
da história recente do Holocausto, como essa minoria judaica na Palestina
Britânica possuía organizações protoestatais, como a Agência Judaica e a
milícia Haganá, entre outras, a
criação de uma Grande Palestina árabe na ex-colônia britânica teria resultado
no início imediato de uma selvagem guerra civil.
Em vez disso, houve
uma guerra na acepção da palavra, iniciada na manhã seguinte à declaração de
independência de Israel (14 de maio de 1948), opondo o Haganá à iniciativa militar da Legião Árabe (integrada por árabes
locais reforçados por egípcios, sírios, libaneses e jordanianos, entre outros).
O Haganá venceu, a Legião Árabe
perdeu, Israel sobreviveu à primeira tentativa de sua destruição e os árabes
locais começaram a se preparar para a segunda tentativa (que aconteceria dezenove
anos depois, em 1967, sob a liderança do Egito de Nasser), em vez de começar a
construir seu Estado. Eis o resumo da ópera.
Eis, também, o motivo
de os mesmos palestinos terem de voltar, agora, à mesma ONU, ao decidirem, afinal,
criar seu Estado sem antes destruir o Estado de Israel (ainda que isso não
valha para todos os palestinos: o grupo terrorista Hamas, em Gaza, segue se
recusando a aceitar sua existência). O problema é que desde a primeira
intervenção da ONU nesse sentido, em 1947, aconteceram algumas coisas.
As principais foram
as guerras de 1948, 1967 e 1973 – esta, a terceira e derradeira tentativa árabe
de destruir belicamente Israel, com sua invasão simultânea a partir do Egito (sudeste)
e da Síria (noroeste).
Se a guerra de 1948
foi a primeira e a de 1973, a última, a de 1967 foi a mais determinante. Israel
conquistou a Faixa de Gaza – sob domínio egípcio entre 1948 e 1967 –, a Cisjordânia
e Jerusalém Oriental – sob domínio jordaniano no mesmo período (daí não ter
sido Israel que impediu a criação do Estado palestino entre 1948 e 1967:
simplesmente, não se quis criá-lo).
3. Guerra dos Seis Dias: a batalha pela história
A história não é
unívoca e transparente, mas, ainda assim, há fatos inequívocos. A Alemanha
agrediu a Polônia em 1939 – a afirmação de que a Polônia tenha agredido a
Alemanha seria simplesmente uma mentira. Também é simplesmente mentira, depois
transformada em mito, a afirmação de que Israel foi responsável pela guerra de
1967 – por ter maquiavélicos planos expansionistas-sionistas envolvendo Gaza,
Jerusalém Oriental e Cisjordânia. Nem Israel foi minimamente responsável pela
guerra, nem havia quaisquer planos para esses territórios.
A guerra foi
provocada pelo Egito – segundo as próprias autoridades egípcias:
Afirmo
que a liderança política do Egito convocou Israel à guerra. Ela claramente provocou Israel,
obrigando-o a um confronto (Salah al-Hadidi, presidente do tribunal, no
julgamento dos oficiais tidos como responsáveis pela derrota egípcia) (opus
cit., p. 368).
Em maio de 1967, o
Egito, agindo unilateralmente e sem outro motivo além de seu próprio desejo de
aniquilar Israel, expulsou as forças de paz da ONU do Sinai (UNEF),
remilitarizou a península e fechou o Estreito de Tiran, cercando a cidade
portuária israelense de Eilat. Ao mesmo tempo, convocou os demais países árabes
para um pacto militar visando a guerra com Israel. Uma guerra – as declarações
acima não deixam qualquer margem para dúvida – de aniquilação.
Isso quanto à causa e
à natureza da guerra de 1967. Quanto aos territórios palestinos conquistados no
seu transcorrer, o que os documentos israelenses demonstram de forma não ambígua
é que não somente não havia plano expansionista algum, como sequer havia a disposição de entrar nesses territórios então
sob domínio egípcio (Gaza) e jordaniano (Cisjordânia e Jerusalém Oriental).
Especificamente quanto
aos dois últimos, depois de responder ao fogo de artilharia iniciado pela
Jordânia contra alvos civis em Jerusalém Ocidental ,
e antes de tentar qualquer avanço terrestre contra as posições jordanianas em
Jerusalém Oriental, o governo israelense propôs um cessar-fogo imediato à
Jordânia. O cessar-fogo foi prontamente rejeitado, e Israel, então, começou a
se preparar para avançar rumo ao leste – o que não queria (daí a oferta de
cessar-fogo), porque já lutava no oeste contra o Egito (pp. 233-4). Com o
indesejado avanço para o leste e a consequente criação de uma segunda frente, surge,
entre outras, a questão de Jerusalém Oriental. Ou seja: deve-se cercá-la,
tomá-la, entregá-la ao Vaticano...?
O general Moshe
Dayan, então ministro da Defesa, defende a ideia de cercar a cidade, sem
tomá-la (outros levantariam questões semelhantes sobre as demais cidades da
Cisjordânia). O ministério e o comando
militar israelenses não sabem, a princípio, o que fazer, o que se devia fazer,
o que se podia fazer, o que se queria fazer.
No final [de longas e
infrutíferas discussões], os ministros concordaram que não concordavam,
aceitando a fórmula de compromisso proposta [por Levi] Eshkol [o
primeiro-ministro]: “Em vista da situação criada em Jerusalém pelo bombardeio
jordaniano, e depois do envio de advertências a[o rei] Hussein, talvez tenha
sido criada a oportunidade de capturar a Cidade Velha”. A tarefa imediata, no
entanto, era silenciar os canhões jordanianos (p. 255).
O caso mais
espetacular, no entanto, é o das colinas de Golan. Como em relação a Jerusalém
Oriental, Moshe Dayan a princípio nega, repetidamente, o pedido do comandante
da frente norte para invadir as colinas, apesar dos ataques da artilharia
síria, argumentando que a guerra é com o Egito. Apenas no último dia de
hostilidades, sob pressão direta da população da Galileia (norte de Israel), cujos
representantes invadem uma reunião do gabinete questionando se não fazem jus,
como os demais cidadãos de Israel, à proteção das Forças de Defesa, é que Dayan
ordena o avanço sobre Golan, sem que, porém, qualquer decisão tenha sido tomada
sobre o objetivo desse avanço, além da destruição da artilharia síria (pp.
350-61).
4. Sionismo versus
ódio antijudaico
Outro mito que não
resiste em pé em tal contexto diz respeito ao sionismo, acusado de ter um viés
racista quando, neste caso, o racismo está documentado e francamente do lado
árabe.
A cidade [do Cairo]
estava enfeitada com cartazes sinistros que representavam soldados árabes
atirando, esmagando, estrangulando e trucidando judeus barbados e de nariz
adunco (p. 123).
[Houve então a] revelação
de que a Jordânia [nos anos anteriores a 1967, quando dominou a área] destruíra
as sinagogas da Cidade Velha, e pavimentara ruas, e até latrinas, com lápides
judias do [cemitério do] Monte das Oliveiras (p. 364).
Tal negação de toda
dignidade humana aos judeus como um todo, ao não poupar sequer seus mortos, não
encontra justificativa racional em nenhum ato do Estado ou dos governos de
Israel – e só tem paralelo, na história recente, na Alemanha nazista.
A verdade é que as
questões geopolíticas envolvendo Israel e os palestinos há muito degeneraram,
do lado palestino, árabe e muçulmano, em aberto e profundo racismo, em que as
“massas” alimentam os governos, os governos alimentam as “massas”, e o clero
muçulmano alimenta ambos: “Destruiremos Israel e seus habitantes”; “Pavimentem
as estradas árabes com os crânios dos judeus”. Um vídeo recente, de cerca de
três anos, mostra o atual presidente egípcio, Mohammed Morsi, referindo-se aos
israelenses como “descendentes de porcos e macacos” (http://www.interjornal.com.br/noticia.kmf?canal=131&cod=19692769).
A mesma expressão é comumente encontrada em livros escolares árabes e
palestinos. Os que inculpam Israel por todos os males do mundo, e de uma forma
ou de outra questionam o direito do país de existir (mito maior e razão de ser
dos demais), são cúmplices voluntários ou involuntários desse racismo.
Racismo tóxico e
virulento, que, ao lado de questões geopolíticas, não redundou em sua consequência
lógica, a aniquilação de Israel e o massacre de sua população, apenas porque,
em 1967, depois da expulsão dos observadores da ONU por Nasser, depois de
cercado pelo leste, pelo oeste, pelo norte e pelo sul por exércitos árabes,
depois de amputado de sua saída para o mar Vermelho pelo fechamento do Estreito
de Tiran, depois de ver o “moderado” Hussein voar da Jordânia ao Cairo e
formalizar um pacto militar com Nasser, depois de esperar durante semanas
alguma ação internacional que interrompesse o deslocamento e a preparação das tropas
árabes e o bombardeio verbal pedindo a aniquilação do país, contando apenas com
seus próprios meios, Israel atacou para rechaçar a ameaça funesta, e felizmente
venceu. A história não precisava de um segundo Holocausto.
5. Forças e fraquezas
Outro mito destruído
pelos documentos da Guerra dos Seis Dias diz respeito à simbiose histórica
entre o sionismo e o “imperialismo” americano. Israel não contou com uma só bala de fabricação
norte-americana em 1967, pelo simples fato de que, até então, os EUA, para não melindrar
os árabes e seu farto petróleo, sistematicamente se recusavam a fornecer
qualquer armamento para Israel – que
lutou com armas francesas, incluindo os aviões, compradas no início da
década. Israel, além disso, foi submetido a um completo embargo armamentista
durante a guerra e logo depois – enquanto os soviéticos armavam os exércitos
árabes graciosamente. Nas últimas ações israelenses, no Golan, parte das tropas
usava armamento russo capturado aos egípcios no Sinai (os EUA começariam a
mudar sua postura em função dos próprios fatos da guerra de 1967).
O próximo mito a cair
afirma que o conflito do Oriente Médio sempre foi assimétrico por contrapor a
força agressiva israelense à fraqueza agredida árabe. Um marciano teria imensa
dificuldade de compreender que um país que possuía, à época, 15 km (quinze quilômetros) de
largura em sua parte mais estreita, e uma população de 2 milhões de habitantes,
fosse o lado forte naquele confronto com inúmeros países árabes, envolvendo uma
vastíssima região entre o Atlântico (Marrocos) e a Ásia (Iraque), e centenas de
milhões de habitantes. Inúmeros países árabes, porque se os exércitos do Egito,
da Síria e da Jordânia formaram a linha de frente do cerco a Israel, houve o
envio de tropas e/ou de armamentos da Argélia, da Arábia Saudita, do Iêmen, do
Iraque etc., para não falar de apoio político e financeiro.
Convergiam para o Sinai contingentes
militares de países [como] Marrocos, Líbia, Arábia Saudita [e] Tunísia. [A]
Síria [concordou] em enviar uma brigada para lutar ao lado dos iraquianos na
Jordânia. Combinados, os exércitos árabes tinham 900 aviões de combate, mais de
cinco mil tanques e meio milhão de homens. Acrescente-se a isto um imenso poder
político (p. 205).
Israel venceu a
guerra de 67, quando não era a potência militar de hoje (e na qual depois se transformou
por necessidade de sobrevivência), principalmente por ter atacado primeiro (e
destruído a força aérea egípcia). Houve, porém, tempo mais do que suficiente
para o Egito fazer o primeiro ataque – o que somente não aconteceu por receio
político de Nasser. Ela esperava armado na fronteira – tentando forçar um
primeiro tiro israelense para só então lançar maciçamente suas forças como um
ato de “defesa”.
Após os fatos, muitos
afirmariam que os “detalhes” não fazem diferença, porque os árabes não tinham
chance de vencer, ou seja, Israel estava “destinado” a vencer a guerra que não
planejou – o que já não é um mito, mas mera estupidez. Como diz o famoso
aforismo, numa guerra, sabe-se como ela começa, mas não como termina. Neste
caso em particular, grande parte da vitória se deu, não por méritos militares
israelenses, mas por erros táticos árabes, que tinham a iniciativa e a superioridade
bélica. A razão daquela afirmação post
facto é reverter a imprevista derrota
árabe – afinal, não se vai à guerra imaginando perdê-la – numa “vitória” da
propaganda, reforçando a vitimização árabe e palestina.
O último grande mito
envolvendo a Guerra dos Seis Dias é, talvez, o mais surpreendente. Em 1964, sob
os auspícios da Liga Árabe, foi criada, no Cairo, a Organização para a
Libertação da Palestina, vulgo OLP. Mas qual “Palestina” se queria então “libertar”,
se nem Gaza nem Jerusalém Oriental nem a Cisjordânia tinham, em 1964, um só
soldado ou colono israelense? Resposta: Israel. A OLP foi criada como um braço
guerrilheiro e terrorista da luta estratégica dos países árabes visando a
aniquilação do Estado israelense (deveria, portanto, chamar-se ODI –
Organização para a Destruição de Israel). A criação da OLP (1964) não foi,
assim, como o demonstram inquestionavelmente as datas, reação ao “expansionismo
agressivo israelense” (1967). Ao contrário, a criação da OLP foi uma das causas
da guerra de 1967.
A Guerra dos Seis
Dias deixou um legado ainda hoje irresolvido.
6. O legado da guerra
O objetivo de Israel,
depois da guerra de 1967, era trocar as terras imprevistamente conquistadas
numa guerra imprevista e indesejada pelo reconhecimento político-diplomático e por
tratados definitivos de paz. Apenas Jerusalém Oriental não seria negociada – por
uma rara decisão unânime de todo o espectro político israelense, da esquerda
aos religiosos. Gaza e Cisjordânia, e ainda o Golan e o Sinai (conquistado ao
Egito), já a partir de agosto de 1967,
estavam sobre a mesa de negociações.
A mesa, porém, ficou vazia do lado árabe e palestino.
Somente doze anos
depois, em 1979, e apenas após mais uma tentativa fracassada de aniquilar
Israel – Guerra do Yom Kippur, 1973 –, o Egito aceitaria receber o Sinai de
volta ao preço “terrível” de assinar um acordo de paz e de reconhecer
diplomaticamente Israel.
No sentido inverso ao
que afirma mais um mito, a responsabilidade
primária pelo fracasso da implementação da paz na região já a partir de
1967 cabe, portanto, aos árabes, incluindo os palestinos.
Enquanto a corresponsabilidade
palestina, árabe e muçulmana pelo longo fracasso histórico do processo de paz
não for verdadeiramente reconhecida, as atitudes palestina, árabe e muçulmana não
mudarão radicalmente. Por exemplo, mesmo a existência
atual de refugiados palestinos é, ao fim e ao cabo, responsabilidade dos
países árabes: em 1948, enquanto cerca de 750 mil palestinos fugiram do
nascente Estado de Israel, cerca de 750
mil judeus foram expulsos de vários estados árabes tornados hostis. Esses
refugiados judeus prontamente deixaram de sê-lo, para se tornarem cidadãos de
Israel. Porém medida equivalente foi negada aos palestinos nos diversos países
árabes (com exceção da Jordânia). Os refugiados palestinos seriam, desde então,
usados como arma política. E enquanto isso não mudar, não haverá paz.
Prova disso é,
atualmente, o papel do Hamas e do Hezbolah como agentes da agressão a Israel,
patrocinados pelo Irã dos aiatolás e pela Síria do Partido Baath – que pregam
ou almejam o fim de Israel –, assim como, nos anos 1960, fazia a OLP
patrocinada pelo Egito de Nasser e pela Síria do Partido Baath.
O que tudo isso tem a
ver com a recente ida da Autoridade Palestina à ONU? Tudo.
7. A ida à ONU ou às negociações
Israel não agiu em
1967 como Hitler na Polônia. A ocupação da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental,
hoje o grande pomo da enorme discórdia, com Gaza em segundo plano (pois lá não
há colônias israelenses nem ocupação militar), assim como a subsequente
presença israelense, incluindo a construção de colônias, são consequência direta de decisões e ações árabes e palestinas, tanto
quanto israelenses. Portanto, os palestinos têm de negociar com Israel,
ainda que não gostem das condições, porque têm culpa no cartório da história.
Agir como puras vítimas
inocentes, e pretender, como última tentativa de impor fatos consumados a Israel,
ir à ONU a fim de declarar o Estado palestino, em função dos acontecimentos e
das responsabilidades históricos compartilhados, que levaram à presente
situação, não poderá resolver nada, pois Israel não o aceitará. E não o
aceitará porque se julga no direito de fazê-lo. Afinal, Israel deseja negociar
os territórios ocupados em junho de 1967 desde... agosto de 1967. Enquanto os
palestinos decidiram sentar à mesa somente em 1993 (Acordos de Oslo).
Em primeiro lugar,
isso determinou a criação de fatos consumados entre 1967 e 1993, que de repente
os palestinos descobriram querer reverter. Em segundo lugar, os palestinos não
se mantiveram à mesa a partir de 1993, mas se levantaram em várias ocasiões.
A saída mais
espetacular da mesa de negociações foi a de Arafat em 2000, às vésperas da
assinatura dos Acordos de Camp David, patrocinados por Bill Clinton, que abririam
as portas para a resolução definitiva do conflito. Em vez disso, sua saída escancarou
os portões da primeira intifada –
apoiada e estimulada por Arafat para, num grotesco erro de cálculo, tentar
conseguir mais algumas concessões israelenses. Além disso, como o próprio
Arafat declarou, ele seria morto antes de seu avião pousar de volta, se
assinasse os acordos – o “estadista” palestino optou, portanto, pela própria
sobrevivência.
O Estado palestino
tem de existir e existirá. Mas apenas se e quando os palestinos negociarem desabridamente,
a partir de certa honestidade histórica, ou seja, do reconhecimento, na prática
de sua atitude política, de que são corresponsáveis pela situação atual.
Situação atual que é o ponto de partida para um possível acordo, não seu ponto
de chegada. Tampouco podem ser um ponto de chegada as fronteiras anteriores à
guerra de 1967, como os palestinos hoje almejam, tentando, mais uma vez, reverter
o relógio da história, da qual foram participantes muito mais ativos do que aceitam
reconhecer.
O mesmo não pode ser
dito de alguns analistas sensatos, que não se furtam a encarar certos fatos
fundamentais, como este forte defensor da iniciativa palestina:
A única coisa que poderia
justificar a defesa das colônias [israelenses], inclusive retrospectivamente,
seria sua utilização como arma de negociação, e assim foram concebidas nos anos
posteriores à conquista militar de 1967 pelos governos trabalhistas (Lluís Bassets, “Proposta de Abbas na ONU é multilateral e legitimadora”, El País,
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2011/09/23/analise.jhtm).
Hoje é
pouco lembrado que, nessa guerra, Israel também conquistou ao Egito toda a
enorme Península do Sinai, até as margens do canal de Suez. E que construiu no
Sinai várias colônias, entre 1967 e 1979. Neste ano, porém, as colônias no
Sinai foram não apenas interrompidas, mas desmanteladas. E o Sinai foi
devolvido ao Egito. Motivo: a assinatura de um acordo de paz e o mútuo
reconhecimento diplomático. As colônias eram uma forma de dizer ao Egito que o
tempo estava contra ele: Israel não queria apenas negociar, mas tinha pressa em
fazê-lo. Quanto mais demorasse, mais difícil seria. Entre outras coisas, porque
fatos criam fatos. Assim, as “colônias de negociação” dos trabalhistas na
Cisjordânia acabariam transformadas pela direita religiosa israelense em
colônias de ocupação. Se isso contraria a ideia inicial, por outro lado reforça
essa mesma ideia: quanto mais demorasse, mais difícil seria. Os palestinos, por
outro lado, achavam que o tempo estava a seu favor.
Obviamente,
os trabalhistas de 1967 cometeram um trágico erro de cálculo: não contavam com
o trágico erro de cálculo das lideranças palestinas, que ainda levariam décadas
para decidir negociar. Tudo se tornou dolorosamente difícil. E não houve um
Mandela palestino para, a certa altura (depois de 1993), dizer ao seu povo que
era preciso aceitar certos fatos dolorosos.
Mandela
queimou todo o capital político de uma vida para impor internamente ao
Congresso Nacional Africano (CNA) a ideia de que não haveria retaliações, de
que os brancos não seriam expropriados e muito menos expulsos, e que
continuariam ricos. A alternativa era o destruição da economia sul-africana e
provavelmente do país, pela guerra civil. No caso palestino, é preciso aceitar
que não haverá a volta às fronteiras de 1967 nem a volta dos “refugiados de
1948” (a maioria já nascida no exílio) para o território israelense; que o novo
Estado palestino não poderá ser militarizado; que o controle do Vale do Jordão
será compartilhado; que as principais colônias não serão desmontadas (mas
haverá compensações com terras da Galileia, ao norte). Etc. Nada que o desvio pela
ONU trará. Portanto, dificilmente trará uma solução negociada, mas aumentará as
expectativas dos palestinos sem lhes dar nada em troca. Haverá, portanto, mais
frustração e rancor, e menos chances de paz.
O fato
fundamental, agora, é que partes importantes dos espectros políticos tanto israelense
quanto palestino não querem uma
negociação verdadeira, que implicaria em perdas dolorosas para ambos.
8 Na mesa de cirurgia
A melhor metáfora (de
Amós Oz) para a necessária e necessariamente dolorosa operação geopolítica é a
cirurgia. Um caso particular e particularmente complexo de cirurgia, o da
separação de irmãos siameses. Há cirurgias ditas “de eleição”, quando se pode
escolher sua data. Mas também há cirurgias de emergência. Neste caso, o
adiamento da operação transformou uma cirurgia de eleição em uma de emergência.
O prognóstico sem a intervenção é péssimo.
Mas
como operar um paciente, ou melhor (ou pior), dois, que não querem ser
operados? E que consideram este um dos piores momentos para tentá-lo?
Há
uma fórmula lapidar que resolvia o dilema israelense de ter de negociar com
representantes palestinos em meio a ondas de atentados terroristas palestinos:
negociar como se não houvesse atentados; combater os terroristas como se não
houvesse negociações. Mutatis mutandis,
é o mesmo caso: negociar com a Autoridade Palestina como se não houvesse o
Hamas, rejeitar o Hamas como se não houvesse negociações com a Autoridade
Palestina. Do lado palestino, trata-se de negociar como se não houvesse a
expansão das colônias na Cisjordânia, e rejeitar a expansão das colônias na
Cisjordânia como se não houvesse negociações.
9 A balança assimétrica
A
política internacional é uma balança sensível cujos pratos são feitos de
matérias distintas. Um deles é pragmático, palpável, real: os interesses. O
outro é moral, impalpável, abstrato: os valores. Mas serem abstratos e
impalpáveis não tornam os valores menos reais. Israel não é um Estado cínico ou
amoral, por ser o reflexo de uma nação, de uma cidadania (apenas Estados
totalitários, por sua dominação pela força da própria população, são livres
dessa condição). A ocupação da Cisjordânia e a submissão dos palestinos às
forças armadas israelenses não é uma solução para Israel e para os israelenses,
mas um problema. E isto pelo simples fato de que os palestinos não aceitam essa
situação (o que nada tem de óbvio ou necessário: os austríacos, por exemplo,
votaram por sua anexação e submissão à Alemanha em 1938). A vontade política da
população local é a própria base da moralidade e da legitimidade políticas
modernas – da democracia representativa à soberania à sua tradução geopolítica,
o Estado-nação. Os palestinos devem ter seu Estado porque querem seu Estado.
Nada mais importa, sequer o fato de, na prática, o terem rejeitado entre 1948 e
1993. Israel opor-se a isso significa pôr-se em oposição aos seus próprios
valores fundamentais. Seria, então, um caso de puro interesse. Mas se não há
ações puramente movidas por valores na política internacional, tampouco há
ações movidas puramente por interesses. A pureza não é deste mundo.
O
argumento dos anti-israelenses de que Israel é um Estado agressivo,
expansionista e anexacionista por “natureza”, tudo resumido na palavra
“colonialista”, não resiste à razão, nem aos fatos, nem aos documentos. A própria
origem de Israel não pode, sem cinismo, ser separada da catástrofe da
destruição dos judeus europeus durante a Segunda Guerra Mundial. As datas
históricas não são “coincidências”
históricas: a ONU foi criada em 1945 em função dessa mesma guerra, e a partilha
da Palestina Britânica em “um Estado judeu e outro árabe”, determinada já em
1947, constitui o primeiro grande gesto geopolítico da nova organização em
função do mesmo contexto histórico – que incluía o fim do Império Britânico e do
colonialismo europeu e a emergência, em quase todos os continentes, de muitos
novos Estados, como a Índia e o Paquistão (no mesmo ano de 1947). Israel nasceu
a fórceps de uma gestação extremamente dolorosa e ameaçada. Sua sobrevivência
aos primeiros anos não estava nem de longe assegurada. Aliás, os próprios
árabes eram os primeiros a acreditar nisso: daí terem tentado por três vezes
destruir o Estado neonato, em 1948, em 1967 e em 1973. Mas Israel sobreviveu.
Também sobreviveu o anseio palestino por seu Estado, que, antes tarde do que
nunca, atingiu afinal a idade da razão, e a percepção de que isso não
acontecerá sobre as ruínas de um Estado de Israel destruído, mas ao lado de um
Estado de Israel firmemente assentado.
A
idade da razão política palestina não chegou, porém, perfeita. Há uma
esquizofrenia que a fratura: a dos grupos políticos que seguem negando o
direito de Israel de existir e que, portanto, não aceitam a construção de um
Estado palestino ao seu lado. Eles são vários, com destaque para o Hamas. Ao
mesmo tempo, a razão política israelense degenerou com a idade.
Se Israel aceitou a
partilha em 1948, e se pretendia, logo após a vitória de 1967, negociar
imediatamente a devolução dos territórios recém-ocupados em troca do
reconhecimento de Israel e de acordos definitivos de paz (segundo as atas de
reuniões do próprio gabinete israelense de 1967),[1] as
recusas egípcia, jordaniana e palestina (que somente mudariam a partir de
meados dos anos 1970), abriram espaço (e tempo) para que grupos israelenses
contrários à devolução de Gaza e Cisjordânia (mas não do Sinai) – ortodoxos com
uma visão religiosa da geopolítica e militares com uma visão de segurança da
mesma geopolítica, apoiados por e aliados aos partidos de direita e religiosos
– pudessem confrontar e, por fim, sequestrar a liderança histórica e a
estratégia trabalhistas, apoiadas pela esquerda israelense e, na maior parte do
tempo, pela maior parte da população de Israel. A “janela de oportunidade”
aberta pela disposição de negociar os territórios já em 1967 não cessou de se
fechar desde então, com uma de suas folhas sendo empurrada por parte importante
do espectro político israelense, e a outra, por parte não menos importante do
espectro político palestino.
10 A janela emperrada
Essa
janela, por outro lado, jamais se fechará inteiramente, por mais que a
empurrem. Pois ela tem um “defeito de fabricação” que, a partir de certo ponto,
a emperra: o atrito da interpenetração dos povos. Parte da população israelense
é árabe-palestina, parte da população da Cisjordânia é hoje judaico-israelense.
E se parte das colônias pode e deve ser desmantelada (as menores e mais
isoladas), parte não o pode (as maiores e contíguas ao território de Israel),
pois isso levaria a uma guerra civil israelense, com o exército, com seu
caráter de milícia, em que todos os cidadãos servem, recebendo ordens de
desalojar à força centenas de milhares de famílias que, armadas de
metralhadoras e dogmas, não deixarão suas casas. O caminho, já proposto pelo
lado israelense, é a troca de territórios. Sim, isso significa a entrega de parte do território israelense
(na região norte do país, a Galileia), em troca da manutenção de áreas equivalentes da Cisjordânia
ocupadas pelas colônias a serem mantidas. Os quatro outros problemas “irresolvíveis”
são o “retorno” dos refugiados palestinos para
território israelense, a partição de Jerusalém, a desmilitarização do
futuro Estado palestino e o controle conjunto da fronteira natural leste, o
vale do Jordão.
Para os “puros e
duros” dos dois lados, as duas primeiras medidas são equivalentemente
inaceitáveis. Ou seja, para os palestinos é “impossível” negociar o “sagrado
direito de retorno” dos “refugiados”; para os israelenses, é “impossível”
negociar a “sagrada” integridade de Jerusalém, “capital eterna e indivisível de
Israel”.
A grande quantidade
de aspas dessas frases não é um recurso de estilo, mas uma indicação gráfica de
que esses argumentos não devem ser tomados em sua pura literalidade. A pureza
não é deste mundo. Vários governos israelenses, a partir de Rabin, já aceitaram
a divisão de Jerusalém, e recentemente a Autoridade Palestina, em conversações
secretas, aceitou discutir a exigência de “retorno dos refugiados” palestinos.
O caminho seria a substituição desse “retorno” em massa (envolvendo milhões de
indivíduos) pelo “retorno” de uma parte simbólica dessa população de apátridas,
enquanto o restante receberia indenizações. Ao mesmo tempo, os governos árabes
que desde 1948 e 1967 abrigaram os refugiados iniciais (e sem aspas) e seus
descendentes (que, portanto, não estariam retornando, mas partindo), porém se
negaram a lhes conceder cidadania (com destaque para a Síria e o Líbano), estenderiam
sua cidadania a todos os nascidos em seus territórios.
As duas outras
questões, relativas diretamente à segurança, são mais simples de equacionar.
Ser um Estado desmilitarizado não deveria ser um problema para o novo Estado
palestino, mas uma solução. Com quem o novo Estado palestino faria a guerra, se
nasceria no contexto de um acordo de paz abrangente com Israel? Invadiria,
talvez, o Egito a partir de Gaza? O Líbano? A Síria? A Jordânia? E por qual
motivo? Disputas de fronteira? Como, se elas seriam definidas no mesmo acordo
abrangente? A Costa Rica é o Estado latino-americano politicamente mais
estável, de instituições democráticas mais sólidas e de maior IDH. A causa
principal está na abolição de suas forças armadas em 1948. Livrou-se ao mesmo
tempo dos golpes e dos gastos militares. Considerando a histórica instabilidade
política do mundo árabe, a tradição do uso da força na política e a
fragmentação ideológica, incluindo explosivas questões religiosas (o Hamas, por
exemplo), a desmilitarização palestina é o caminho mais seguro para a
estabilidade.
O controle conjunto
da fronteira natural ao leste, o vale do Jordão, é um imperativo geopolítico.
Até 1967, a parte central de Israel tinha 15 quilômetros de largura. Afastar a
fronteira militar para o Jordão resolve esse problema. Além disso, no contexto
de um acordo abrangente, que incluiria a partição de Jerusalém, sem o controle
conjunto do vale do Jordão, a fronteira externa de Israel passaria pelo centro
de sua capital. Que país tem sua capital na fronteira? Que país tem sua capital
dividida ao meio por uma fronteira?
11 A distante viagem à proximidade
Um acordo definitivo
israelense-palestino não está no campo do impossível, mas em algum lugar
esquivo entre o dificílimo e o improvável. Há uma frase de John Kennedy sobre
seu desafio à comunidade científica e tecnológica americana, feito em 1960, de
levar um homem à lua e trazê-lo de volta em segurança antes do fim daquela
década (considerado, a princípio, surpreendente e impossível por boa parte
daquela comunidade), em que ele afirma tratar-se de algo a ser feito, e ser
feito pelos EUA, não por ser fácil, mas por ser difícil. Obviamente, é muito
menos complicado chegar à lua do que a um acordo de paz israelense-palestino.
Mas ainda assim não se sai do campo do possível. Esta é a primeira verdade ao
mesmo tempo lógica e factual sobre a qual pisar com alguma firmeza, a fim de
escapar do terreno instável e escorregadio em que a coisa toda patina. Se é
possível, pode ser feito – apesar de
todas as dificuldades e todos os obstáculos.
Se pode ser feito e
se também deve sê-lo, por não haver alternativa para alcançar a paz e a justiça
para todos os envolvidos, trata-se de ter a coragem e a grandeza moral de
trocar o esquivo “se” por um definido “quando”. Negociar, não se
tais condições forem aceitas pela outra parte, mas porque não se aceita mais a
continuação das condições atuais. As lideranças de ambos os lados não podem
mais se esquivar de responder, antes de qualquer dúvida sobre as negociações, à
antiga pergunta do romano Cícero: “Até quando?”.
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