Fá-las Alberto Gonçalves, no DN. As que se seguem, por exemplo.
Sócrates, serviço público
A SIC
Notícias anuncia repetida e orgulhosamente o seu leque de novos comentadores.
Os anúncios tendem para o solene, com imagens de Jorge Coelho a examinar o
oceano, de Francisco Louçã a contemplar obras de "arte" contemporânea
e de Bagão Félix a folhear um livro no jardim. Os comentadores são os citados
(além, dizem-me, de Marques Mendes, cujo spot não vi), nomes de indiscutível
notoriedade, duvidoso esclarecimento e nulo contributo para o progresso da
nação. Mais curioso ainda, são todos políticos.
Em todo o
mundo civilizado, e em boa parte do mundo incivilizado, seria inconcebível que
sujeitos de reconhecida militância partidária (ou com escancaradas pretensões à
dita) fossem chamados a opinar regularmente acerca do universo dos partidos.
Por cá, é o costume. Já o era quando há menos de um ano diversos
correspondentes da imprensa estrangeira em Portugal confessavam à Sábado nunca terem testemunhado
semelhante. E hoje, principalmente nas televisões mas não apenas nas
televisões, é quase lei.
Não vale
a pena tentar perceber os motivos que levam as direcções a decidir assim.
Porém, a fim de aferir a dimensão da excentricidade, talvez conviesse imaginar
um documentário de David Attenborough sobre o reino animal sem a participação
do conhecido naturalista britânico e com o rumo do programa entregue a
gastrópodes, marsupiais e batráquios. Engraçado? Com certeza. Sucede que a
graça haveria de se perder, coisa que infelizmente não aconteceu com a
paciência do público.
O
público, que gosta de fingir rebelar-se contra a "partidocracia" na
política, aceita sem objecções a partidocracia na análise da política. Excepto,
pelos vistos, no caso de José Sócrates, que a RTP se lembrou de contratar para
emitir palpites. É verdade que os palpites do homem ajudaram imenso à ruína do
país. É verdade que ao contribuinte custará muito pagar um novo salário (em
numerário ou em tempo de propaganda) a quem tanto contribuiu para a sua
penúria. É verdade que dói ver facultar a liberdade de expressão a um seu incessante
inimigo. É verdade, em suma, que o "serviço público" decidiu
adicionar o insulto à injúria. Porém, julgo excessivo que a indignação das
massas, traduzida numa série de petições inflamadas, recaia exclusivamente em
cima do ex-primeiro-ministro, ex-estudante de Filosofia e actual vendedor de
medicamentos na América Latina.
No
mínimo, há o risco de o pormenor obscurecer o princípio. E o princípio é o de
que nada aconselha a que A
Vida na Terra seja comentada
por caracóis, cangurus e rãzinhas. A circunstância de uma das rãs ostentar um
passado particularmente repulsivo é um detalhe, não a autêntica questão. Os
consumidores, que durante anos legitimaram a promiscuidade, carecem de
argumentos para os queixumes de agora: aberta a porta do zoo, a bicharada em
peso sai à rua e entra nos estúdios televisivos. Aqui, a selecção natural é uma
falácia.
E se apetecer a algum leitor
escrever-me a notar que, ao contrário dos bichos, os animais políticos se
distinguem pela inteligência, recomendo que pense duas vezes. Ou uma: uma
deverá bastar.
Para quem é, 'Grândola' basta
No
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, em Lisboa, alguns
estudantes receberam o primeiro-ministro aos gritos de "demissão" e
"Coelho sai da toca". Fizeram muito bem. Se a mocidade sente o
impulso de berrar qualquer coisa, ao menos que não seja a Grândola. A melodia é quase
inexistente. As harmonias são pobres. A letra é um refogado de lugares-comuns
e, para cúmulo, mentirosos, já que da única vez que visitei a "vila
morena" não vi nenhum amigo à esquina: vi um automóvel ultrapassar-me a
uma velocidade pouco recomendável. Um par de quilómetros depois, o automóvel
despistara-se e o condutor jazia meio morto no chão.
Mas fujo
do assunto. Grândola, a
cantiga, é tão maçadora quanto a generalidade das mais célebres cantigas ditas
de "intervenção". Os autores do género, nacionais ou estrangeiros,
acham que as massas só apreendem produtos simplórios na música e na lírica.
Além de ser um pressuposto falso (Brother, Can You Spare a Dime, escrita
em 1930 pelo então comunista "Yip" Harburg, é um raro exemplo de que
uma canção de protesto relativamente sofisticada pode comover imensa gente), é
um pressuposto revelador da opinião que os intelectuais ao serviço do povo têm
do povo que servem. Mesmo José Afonso guardava os ocasionais momentos de
inspiração para canções alheias ao comentário "social" (ocorre-me Era um redondo vocábulo). Nos
momentos de indignação, lá vinha a Grândola ou o enervante
"tiriririri" de Venham
mais cinco e desgraças afins.
E Sérgio Godinho, outro "baladeiro" que compôs meia dúzia de coisas
esteticamente decentes, concentrava a indecência estética em misérias comoLiberdade ("A paz, o pão/
habitação/[etc.]"). Nos restantes "cantautores" indígenas não
vale a pena procurar: o lixo é omnipresente.
Se os
paladinos dos "oprimidos" lhes servem lixo quando são contrapoder,
imagine-se o que lhes serviriam no poder. E quem não for dado à imaginação
dispõe de pacotes de viagens a Cuba, pérola das Caraíbas e consumada terra da
fraternidade.
O descaramento ilimitado
Para
início de conversa, esclareço que, na minha opinião, uma lei ideal limitaria os
mandatos autárquicos a cerca de uma semana, período a partir do qual os
senhores autarcas começam a definir a rede de interesses que servirão. Também
defendo que a lei deveria impedir as candidaturas dos vereadores, chefes de
gabinete, secretários, assessores, compinchas, conhecidos e primos até terceiro
grau do autarca cessante. Por fim, acho que a lei faria bem em limitar em
quantidade as próprias autarquias, pormenor que aliás parecia constar do
"memorando" assinado com a troika e que o Governo varreu airosamente
para debaixo do tapete.
Quanto à
lei que temos, é uma vergonha em matéria de clareza jurídica e um portento de
matéria de clareza política. O PSD, que apresenta a votos diversos veteranos de
outras freguesias (ou câmaras, para ser exacto), entende que a limitação incide
nos municípios e não nas funções. O Bloco, que praticamente não é para aqui
chamado, entende que a limitação incide nos municípios e nas funções. O PCP,
que tenciona mudar dois ou três caciques alentejanos, entende que a limitação
incide nos municípios e não nas funções. O CDS, uma fortaleza de convicção,
entende que a limitação incide nos municípios e nas funções, excepto no caso de
Lisboa. E o PS, que não viu interesse estratégico na transladação de
candidatos, finge que o assunto não lhe diz respeito e pretende passar por
exemplo ético.
Eis o
perfeito retrato dos princípios que fundamenta o sistema partidário: com a
lógica natural numa empresa, cada partido faz os cálculos, antecipa perdas e
ganhos e decide de acordo com o respectivo interesse imediato, vendido aos
simples sob o rótulo de "interesse nacional" e não,
surpreendentemente, de Relatório & Contas. Resta apurar o número de simples
que ainda engolem a patranha e confiam apaixonadamente nos partidos como nunca
confiariam numa empresa. As eleições autárquicas serão um óptimo indicador e,
suspeito, o péssimo sinal do costume.
Teste à
amnésia
A estratégia não é complicada - dadas
as cabecinhas que a conceberam, não podia ser. A ala "socrática" usou
António Costa para apear António José Seguro, acusado de traição aos ideais que
enfiaram o País na bancarrota. Inicialmente convencido de que o partido e o
povo o desejavam com ardência, o dr. Costa ensaiou o avanço para a liderança.
Posteriormente esclarecido de que o partido não o estima e o povo mal o
conhece, o dr. Costa consumou uma retirada airosa e, sem surpresas, acabou
acusado de cobardia. A ala "socrática" continuava sem um herói para
recuperar o "seu" PS. Um belo dia, alguém propôs o próprio Sócrates e
este, perito em despachar licenciaturas, voltará em Abril para desfilar
sapiência na RTP. O dr. Seguro já afirmou que isto não põe em causa o seu
posto, afinal uma confissão de que acha o contrário. Se funcionar, a estratégia
mostrará que, além do PS, Portugal bateu no fundo.
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