Não existem crises financeiras sem culpas avassaladoras da banca.
Conceptualmente a possibilidade é admissível mas na realidade, para mais numa
tão devastadora como esta, é quase impossível. A banca portuguesa tem
alimentado o mito de que, apesar da convulsão mundial, o seu balanço está livre
de lixo tóxico e portanto imune aos problemas das congéneres, nomeadamente
espanholas. Surge assim como inocente da euforia que gerou o desastre,
pretendendo-se apenas vítima dos apertos da recessão. Essa ideia, credível e
conveniente durante a fase mais negra, começa a constituir um obstáculo à
recuperação.
Deve dizer-se que esse mito foi-nos muito útil a todos. Ele tinha
uma base de verdade, pois o sistema financeiro português esteve, por várias razões,
bastante afastado do sub-prime americano, razão directa do colapso de 2008.
Isso constituiu um bom argumento para manter a reputação dos nossos bancos,
precisamente no período em que uma suspeita seria fatal. Em época de tanto
tumulto e desconfiança, era crucial manter a credibilidade das instituições
bancárias. A base desse negócio, como aliás de toda a moeda, é apenas a
confiança; quando ela desaparece, tudo se dissolve em fumo, com resultados
socioeconómicos catastróficos. É por isso que abalar a imagem da banca é sempre
irresponsável, em especial em momentos de turbulência. Nada do que este artigo
diga pretende criar a menor dúvida acerca a solidez dos nossos bancos, que são
sólidos e credíveis. Mas isso não deve servir para esconder problemas e evitar
ajustamentos dolorosos.
É verdade que a banca portuguesa esteve, na sua maioria, imune ao
contágio financeiro global de há seis anos. Mas existiu também uma euforia
financeira doméstica, que usou irresponsavelmente crédito interno e externo
(este último canalizado através de instituições nacionais) em projectos vácuos
e mirabolantes. É bom não esquecer a nossa década perdida do crescimento, desde
a viragem do milénio, que paradoxalmente acompanhou o inflar da bolha de
dívida. O mundo viveu um período de crescimento artificialmente alimentado por
crédito; em Portugal aconteceu o mesmo, só que sem crescimento.
Quando no fim de 2008 as empresas privadas portuguesas atingiram
um valor de endividamento de 172% do PIB e as famílias de 101%, a culpa
principal é evidentemente delas; mas os bancos não se podem dizer inocentes.
Eles tinham de saber que era irresponsável distribuir o dinheiro a tais fins, e
que grande parte desses empréstimos iria dar mal, mais cedo ou mais tarde. Um
crédito malparado desta dimensão nunca é erro apenas de um dos lados, e o seu
custo tem de ser repartido.
É indubitável que existem muitos negócios desvalorizados, se não
mesmo moribundos, no activo dos bancos. A segunda metade dos anos 1990 e
primeiros anos do milénio foram férteis em projectos optimistas que realmente
nunca chegaram a lado nenhum. Os mais conhecidos são as sagas públicas do TGV e
o novo aeroporto de Lisboa, mas houve miríades de privados. Pior, muitos
igualmente mirabolantes chegaram mesmo a ser criados, para depois nunca terem
os efeitos pretendidos. Nesses de novo a fama recobre os exemplos estatais,
como o Magalhães e as PPP, mas muitas empresas se meterem em tolices
equivalentes, a todos os níveis. Tudo, público ou privado, acaba sempre a
apodrecer na banca.
Quando se verifica um caso destes o que há a fazer é estripar o
cancro e lavar a ferida. Isso é sempre doloroso mas inevitável. O pior é
negação e ocultação, que só aumentam o tumor. Isso podia fazer sentido na época
em que o estado geral do doente era tão frágil que a cirurgia era impensável.
Agora parece ter chegado a altura de tratar desse assunto.
A economia precisa de crédito para se levantar. Existem até
investidores interessados em comprar e recuperar os monos dos balanços
bancários, desde que cotados a desconto. Quando a banca se recusa a vender para
não assumir perdas, que são evidentes, ela surge como sabotadora da economia
que devia servir. Só admitindo a verdade se sai da crise.