domingo, 23 de março de 2014

A geração dos 70...







A ternura dos setenta


Não é novidade que o Governo apenas pareça sofrível por comparação com a empenhada toleima da oposição, mas não convém exagerar. Pôr o sr. Marco António às vezes Costa a reagir aos manifestos pela "reestruturação" da dívida - o indígena e o estrangeiro - já é forçar a nota.

Não sei se devido ao assombroso currículo do cavalheiro, se devido à respectiva envergadura (moral), ou se devido à convicção geral de que daquela cabecinha nunca sairá nada vagamente semelhante a um pensamento aproveitável, a verdade é que ver o sr. Marco António às vezes Costa refutar as críticas à governação do País não difere muito de promover o treinador Jorge Jesus a crítico literário. Por algum motivo, ou por inúmeros motivos, há a tendência para suspeitarmos que, quando o Governo de Portugal se deixa representar pelo sr. Marco António às vezes Costa, o Governo é uma anedota e Portugal está perdido. O sr. Marco António às vezes Costa quase inverte a ordem natural e, por contraste, transforma os opositores em gente ponderada e responsável. A sorte do Governo é que depois os opositores contra-atacam e devolvem a harmonia ao universo.

Atente-se, por exemplo e se não for pedir demasiado, em João Cravinho. O promotor do manifesto caseiro considera que o manifesto não caseiro "revela", cito, "que o que dizemos não é nenhum disparate". Tamanha franqueza comove. Sem o notar, o dr. Cravinho admite que a opinião dele e das outras 69 alminhas subscritoras do panfleto nacional importa pouco - pelo menos até que 70 e tal economistas "internacionais" assinem um panfleto a corroborá-la.

Nem vale a pena perder tempo com a evidência de que não custaria encontrar 70 ou 700 economistas de gabarito mundial capazes de ridicularizar o manifesto do dr. Cravinho. Se nas ciências exactas o consenso já é precário, nas artes de prestidigitação como a Economia, o consenso é por definição absurdo. Porém, o que aqui salta à vista é a ancestral submissão ao juízo de valor que chega de além-fronteiras: temos razão na medida em que "lá fora" nos dão razão.

Trata-se de um pequeno tique, infelizmente com consequências de gravidade diversa. Uma coisa é convencermo-nos de que precisamos de um Teatro Nacional porque "lá fora" existem teatros nacionais. Coisa diferente é acreditar no carácter essencial do "investimento" público porque "lá fora" é assim, na imortalidade do Estado "social" porque "lá fora" é assim ou, conforme o dr. Cravinho se lembrará, no sucesso das PPP porque "lá fora" as PPP são assado. E acreditar na "reestruturação" da dívida porque o sucesso do precedente grego salta à vista.

Brincadeiras à parte, o facto é que o Governo, coitado, tem vindo a renegociar a dívida dentro do possível e do aceitável pelos credores. O que os campeões da "reestruturação" pretendem é algo assaz diferente: um milagre que nos dispense de reformas, obrigações e maçadas afins. Um Estado irreformável e intocável. No fim de contas, uma falência colectiva apesar de tudo sem grandes precedentes locais. No fundo, é isto, embora isto soasse mais convincente se não fosse o sr. Marco António às vezes Costa a dizê-lo.


Decretar a prosperidade

Há pouco tivemos o manifesto pela "reestruturação" da dívida. Agora temos o BE, o PCP e o relevantíssimo pingente chamado PEV a pedir que as eleições europeias constituam um voto de protesto contra a austeridade. Sendo partidos parlamentares e pouco admiradores da democracia, não sei o que os leva a esperar pela decisão popular, inevitavelmente incerta e ambígua: a extrema-esquerda podia muito bem cortar caminho e submeter o voto de protesto à Assembleia da República. Com alguma sorte, e a abstenção ou a distracção de meia dúzia de deputados da maioria, talvez se conseguisse proibir a austeridade mediante decreto.

Aliás, é difícil perceber porque é que a austeridade, e não só a austeridade, ainda não foi abolida. Uma nação tão virtuosa e legalista já devia ter interditado por lei a austeridade, a dívida, o défice, a crise, a sra. Merkel, o FMI, a gripe sazonal e a família Carreira. Em contrapartida, urge considerar obrigatório: a felicidade; o salário médio luxemburguês; o crédito externo sem juros nem prestações; a solidariedade europeia; o direito às trufas; o Mercedes; o spa no jardim de casa; o jardim de casa; a casa e a abundância em geral.

É verdade que a Constituição já não anda longe de semelhantes desígnios, mas carece de uma ou duas revisões para consagrá--los. Excepto a realidade, o que nos impede?


A miséria

Não costumo alongar-me nas citações. E certamente não costumo alongar-me nas citações de José Sócrates. Mas corre pelos blogues liberais (não são muitos) um pequeno e esclarecedor vídeo extraído do debate entre o ex-secretário-geral do PS e o ex--chefe do Bloco de Esquerda durante a campanha eleitoral de 2011. O debate é moderado por Clara de Sousa. A certa altura, o eng. Sócrates propõe-se esmiuçar um tema hoje relativamente em voga:

"- Vamos ao essencial da sua proposta: o que é que Francisco Louçã propõe para resolvermos o problema? Diz assim: vamos reestruturar a dívida. O que é que significa reestruturar a dívida? Reestruturar a dívida é um termo técnico. Isto significa não pagar parte da nossa dívida.

- Isso seria trágico para Portugal, eng. José Sócrates?
- Absolutamente trágico!
- Quais eram as consequências para o País?
- Vou responder. Isso significa calote aos credores. Isso significaria, em primeiro lugar, Portugal passar imediatamente a fazer parte do lote de países que não cumprem, da lista negra. Isso significaria desde logo o colapso do sistema financeiro, porque nenhum dos nossos bancos, nenhuma das nossas grandes empresas se poderia, digamos assim, financiar. E isso teria consequências gravíssimas na nossa economia, nas empresas e nos trabalhadores. Pagaríamos isso com desemprego, com falências e com miséria, Francisco Louçã. É por isso que essa proposta é absolutamente irresponsável."

Por irresponsável que também tenha sido a governação do eng. Sócrates, houve momentos em que, por comparação com os delírios dos partidos comunistas, o homem passava por um estadista sensato (principalmente se esquecermos que a dívida em questão fora, em larga medida, criada por ele). Este é um desses momentos, por um lado abonatório para o antigo primeiro-ministro, por outro desanimador para Portugal, cujas alegadas elites, alegadamente de todas as cores políticas, exigem agora de modo oficioso a reestruturação da dívida, leia-se o tal calote, o tal colapso e a tal miséria.

Ou seja, à esquerda, à direita e ao centro, hoje existe pior do que o eng. Sócrates, incluindo o próprio, que um destes dias se declarou de acordo com o célebre manifesto dos 70, logo em desacordo consigo após meros 3 anos. Por cá, o pessimismo é uma aposta segura.

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