A ternura dos
setenta
Não é novidade que o Governo apenas pareça sofrível por comparação
com a empenhada toleima da oposição, mas não convém exagerar. Pôr o sr. Marco
António às vezes Costa a reagir aos manifestos pela "reestruturação"
da dívida - o indígena e o estrangeiro - já é forçar a nota.
Não sei se devido ao assombroso currículo do cavalheiro, se devido
à respectiva envergadura (moral), ou se devido à convicção geral de que daquela
cabecinha nunca sairá nada vagamente semelhante a um pensamento aproveitável, a
verdade é que ver o sr. Marco António às vezes Costa refutar as críticas à
governação do País não difere muito de promover o treinador Jorge Jesus a
crítico literário. Por algum motivo, ou por inúmeros motivos, há a tendência
para suspeitarmos que, quando o Governo de Portugal se deixa representar pelo
sr. Marco António às vezes Costa, o Governo é uma anedota e Portugal está
perdido. O sr. Marco António às vezes Costa quase inverte a ordem natural e,
por contraste, transforma os opositores em gente ponderada e responsável. A
sorte do Governo é que depois os opositores contra-atacam e devolvem a harmonia
ao universo.
Atente-se, por exemplo e se não for pedir demasiado, em João
Cravinho. O promotor do manifesto caseiro considera que o manifesto não caseiro
"revela", cito, "que o que dizemos não é nenhum disparate".
Tamanha franqueza comove. Sem o notar, o dr. Cravinho admite que a opinião dele
e das outras 69 alminhas subscritoras do panfleto nacional importa pouco - pelo
menos até que 70 e tal economistas "internacionais" assinem um
panfleto a corroborá-la.
Nem vale a pena perder tempo com a evidência de que não custaria
encontrar 70 ou 700 economistas de gabarito mundial capazes de ridicularizar o
manifesto do dr. Cravinho. Se nas ciências exactas o consenso já é precário,
nas artes de prestidigitação como a Economia, o consenso é por definição
absurdo. Porém, o que aqui salta à vista é a ancestral submissão ao juízo de
valor que chega de além-fronteiras: temos razão na medida em que "lá
fora" nos dão razão.
Trata-se de um pequeno tique, infelizmente com consequências de
gravidade diversa. Uma coisa é convencermo-nos de que precisamos de um Teatro
Nacional porque "lá fora" existem teatros nacionais. Coisa diferente
é acreditar no carácter essencial do "investimento" público porque
"lá fora" é assim, na imortalidade do Estado "social"
porque "lá fora" é assim ou, conforme o dr. Cravinho se lembrará, no
sucesso das PPP porque "lá fora" as PPP são assado. E acreditar na
"reestruturação" da dívida porque o sucesso do precedente grego salta
à vista.
Brincadeiras à parte, o facto é que o Governo, coitado, tem vindo
a renegociar a dívida dentro do possível e do aceitável pelos credores. O que
os campeões da "reestruturação" pretendem é algo assaz diferente: um
milagre que nos dispense de reformas, obrigações e maçadas afins. Um Estado
irreformável e intocável. No fim de contas, uma falência colectiva apesar de
tudo sem grandes precedentes locais. No fundo, é isto, embora isto soasse mais
convincente se não fosse o sr. Marco António às vezes Costa a dizê-lo.
Decretar a prosperidade
Há pouco tivemos o manifesto pela "reestruturação" da
dívida. Agora temos o BE, o PCP e o relevantíssimo pingente chamado PEV a pedir
que as eleições europeias constituam um voto de protesto contra a austeridade.
Sendo partidos parlamentares e pouco admiradores da democracia, não sei o que
os leva a esperar pela decisão popular, inevitavelmente incerta e ambígua: a
extrema-esquerda podia muito bem cortar caminho e submeter o voto de protesto à
Assembleia da República. Com alguma sorte, e a abstenção ou a distracção de
meia dúzia de deputados da maioria, talvez se conseguisse proibir a austeridade
mediante decreto.
Aliás, é difícil perceber porque é que a austeridade, e não só a
austeridade, ainda não foi abolida. Uma nação tão virtuosa e legalista já devia
ter interditado por lei a austeridade, a dívida, o défice, a crise, a sra.
Merkel, o FMI, a gripe sazonal e a família Carreira. Em contrapartida, urge
considerar obrigatório: a felicidade; o salário médio luxemburguês; o crédito
externo sem juros nem prestações; a solidariedade europeia; o direito às
trufas; o Mercedes; o spa no jardim de casa; o jardim de casa; a casa e a
abundância em geral.
É verdade que a Constituição já não anda longe de semelhantes
desígnios, mas carece de uma ou duas revisões para consagrá--los. Excepto a
realidade, o que nos impede?
A miséria
Não costumo alongar-me nas citações. E certamente não costumo
alongar-me nas citações de José Sócrates. Mas corre pelos blogues liberais (não
são muitos) um pequeno e esclarecedor vídeo extraído do debate entre o
ex-secretário-geral do PS e o ex--chefe do Bloco de Esquerda durante a campanha
eleitoral de 2011. O debate é moderado por Clara de Sousa. A certa altura, o
eng. Sócrates propõe-se esmiuçar um tema hoje relativamente em voga:
"- Vamos ao essencial da sua proposta: o que é que Francisco
Louçã propõe para resolvermos o problema? Diz assim: vamos reestruturar a
dívida. O que é que significa reestruturar a dívida? Reestruturar a dívida é um
termo técnico. Isto significa não pagar parte da nossa dívida.
- Isso seria trágico para Portugal, eng. José Sócrates?
- Absolutamente trágico!
- Quais eram as consequências para o País?
- Vou responder. Isso significa calote aos credores. Isso
significaria, em primeiro lugar, Portugal passar imediatamente a fazer parte do
lote de países que não cumprem, da lista negra. Isso significaria desde logo o
colapso do sistema financeiro, porque nenhum dos nossos bancos, nenhuma das
nossas grandes empresas se poderia, digamos assim, financiar. E isso teria
consequências gravíssimas na nossa economia, nas empresas e nos trabalhadores.
Pagaríamos isso com desemprego, com falências e com miséria, Francisco Louçã. É
por isso que essa proposta é absolutamente irresponsável."
Por irresponsável que também tenha sido a governação do eng.
Sócrates, houve momentos em que, por comparação com os delírios dos partidos
comunistas, o homem passava por um estadista sensato (principalmente se
esquecermos que a dívida em questão fora, em larga medida, criada por ele).
Este é um desses momentos, por um lado abonatório para o antigo
primeiro-ministro, por outro desanimador para Portugal, cujas alegadas elites,
alegadamente de todas as cores políticas, exigem agora de modo oficioso a
reestruturação da dívida, leia-se o tal calote, o tal colapso e a tal miséria.
Ou seja, à esquerda, à direita e ao centro, hoje existe pior do
que o eng. Sócrates, incluindo o próprio, que um destes dias se declarou de
acordo com o célebre manifesto dos 70, logo em desacordo consigo após meros 3
anos. Por cá, o pessimismo é uma aposta segura.
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