Nicolau Saião, No escuro da noite e do sol
“A
mais bela artimanha do diabo é a de persuadir-nos de que não existe” –
Baudelaire
INTRODUÇÃO
Organizei este pequeno ensaio em duas
entradas num período em que o meu país saía de uma grave situação que num
futuro podia ter caído em algo irreversível. Um período em que sucessivos
esqueletos saltam dos armários anteriormente construídos por uma administração
pública liderada por aventureiros políticos que visou – percebemo-lo agora
claramente – estabelecer um ambiente autoritário/cleptocrático de tipo
peculiar, ainda que não original e que George Orwell aflorou, embora com
recorrências imaginativas, numa das suas encenações literárias.
Eu poderia dizer, parafraseando ironicamente
Georges Arnaud, o famoso autor de O salário do medo, que “Esta sociedade, por exemplo, não existe. Eu
sei-o, vivi lá!”.
Como
na obra de Samuel Beckett, Malone está a
morrer, é referido a dada altura, “O
que interessa é só prestar atenção aos sobressaltos”. Ou, para citarmos
Jules Morot no seu O espírito do bem,
“A casa/ou da vida ou da morte/ costuma
sempre ficar um bocadinho mais ao lado”.
Por outras palavras menos simbólicas, mais
chãs e terra a terra: se estamos vivos já nem sequer é por acaso, como
assinalava algures Jean Rostand, mas sim porque os senhores do mundo nos
consentem, por altamente lhes convir, que existamos em todos os pontos
cardeais… E o resto é conversa.
As 2 análises seguintes, ainda que se
refiram a livros diferentes de autores de diferentes origens, apontam para algo
que lhes é comum e que, a meu ver, explica um específico universo conceptual e
societário em que hoje existimos nesta parte do mundo - a violência camuflada
da parte de sectores privados, a “suave brutalidade” de cunho estatal e, por
último, o que num geral mundial se apresenta inquietantemente às consciências:
o relativo desconhecimento da insídia e dos manejos nefandos de seres
criadores/dependentes de um mundo pervertido pela desrazão que subscrevem.
Não é por acaso que todos eles têm por
cenário ou invólucro a escrita e as suas diversas faces do eventual
conhecimento, de potencial acesso à sabedoria (ou a sua negação absoluta) e as
armadilhas e perversões que eles podem possibilitar ou esconder.
Dito isto, comecemos.
1. SOBRE
“VERSÃO ORIGINAL”
ENTRE OS FUMOS DO AMOR E
DA MORTE DE BILL BALLINGER
“Obrigam-nos a engraxar sapatos e depois alegam que só servem para
engraxadores” – Langston Hughes
Chega-se ao fim desta novela discretamente
temerosa, uma das mais belas e perturbadoras da literatura de mistério, com uma
sensação de perda e de amargura. De relativa surpresa, que contudo possui uma
indicação norteadora.
Nesta tragédia poderosamente encenada e
magnificamente urdida na sua progressão enquanto matéria escrita, o acento
tónico recai sobre a questão das realidades e dos enganos que estas podem ter
em si, uma vez que não é dado ao Homem saber o que está além do que se toma por
verdadeiro e afinal contém todo um universo de falsos indícios, de falsas
indicações, de desconhecimento dos sentimentos que realmente forjam as relações
entre os seres. E que num outro contexto tudo teriam de criativo e de salubre
ultrapassando a fábula dos desencontros.
“Se
abro o bico sem ser com um tipo fixe, estou liquidado. E, além disso, quem
acreditaria em mim?”, pergunta-se o protagonista logo na abertura desta
ópera de dois tons em que o discurso pessoal é contrapontado no itálico dos
capítulos que explicitam o que, para além dele, vai sucedendo no quotidiano que
o ultrapassa. “A coisa não faz sentido.
Não faz mesmo nenhum sentido. Tenho pensado no assunto vezes sem conta,
debatido a coisa comigo mesmo. E no fim só consigo obter vagas imagens” –
continua Dan April (Abril, significativo nome de mês) a questionar-se numa
tentativa de entender os
acontecimentos que o rodearam e que se transformaram num “retrato de fumo” (o título original é esse) iniciado numa noite do
Illinois, nessa Chicago enevoada ou ardente de sol, “quente e preguiçosa”, essa cidade também brumosa devastada anos
atrás por um incêndio que a História registou.
Mas a breve trecho o leitor suspeita, e
acaba por concluir devido ao seu estatuto, que a coisa de facto faz sentido, ou melhor: que há um sentido
singular, ainda que temível, oculto nesta novela que por seu turno, ao
contrário de outras que analisámos, resulta dos próprios limites do conhecimento ou se debruça, digamo-lo desta maneira,
sobre o que se pensa saber.
É por assim dizer, simbolicamente, uma
representação desse labirinto ou
desse fumo sulfuroso que se depara ao
”laborator per ignem” numa fase em
que este caminha para a Segunda Obra e em cujos meandros tem de enfrentar as
figuras enganadoras ou sinistras dos dragões velhos cuspindo lava ou lamas
mefíticas.
“Krassy
Almauniski abriu os olhos e distendeu-se na cama. Ficou quieta uns momentos
antes de se espreguiçar de novo. – Dezassete de Março…Dia de São Patrick –
disse para si mesma com satisfação – o dia dos meus anos! – Saltou da cama e
caminhou sobre o soalho nu até junto dum pequeno espelho que estava suspenso de
um fio passado num gancho pregado à parede. Desabotoou a camisa de seda de
homem, passajada, que lhe chegava até quase aos pés e despiu-a.
- A
partir de hoje – disse para si mesma – as coisas vão modificar-se”.
Por representação, enquanto Dan é a parte de
sonho Krassy é a parte de realidade prática que a novela vai explicitar
enquanto progride.
Citemos para melhor compreensão, sem irmos
demasiado longe – o que retiraria ao leitor a surpresa da sequência do relato –
o texto de apresentação inserido na contracapa: “Ao percorrer os arquivos da Agência de Cobranças que comprara no dia
anterior, Danny April encontrou o retrato de uma rapariga.
Mas
ele conhecera aquela rapariga… dez anos antes… Que seria feito dela?
A
ideia de a ver novamente tornou-se uma obsessão… Finalmente encontra-lhe a
pista. Mas essa pista onde o conduz? À rapariga de outrora, que ele sonhava meiga
e delicada, ou a uma criminosa que, à custa dos mais pérfidos ardis, subira,
partindo do nada, até à mais elevada situação financeira e social?
A
acção passa-se em Chicago, a cidade dos mil contrastes, e decorre durante e
após a 2ª guerra mundial”.
Deste núcleo, à volta dessa busca que o
protagonista enceta com esperança e a pouco e pouco se transforma em encontro
e, depois, em desespero, o autor pinta-nos um fresco sugestivo de situações, de
personagens e de imagens que nos subjugam através da progressão do relato.
Nem sempre o que parece é ou, de forma ainda
mais cruel (o que é constitui a verdadeira face do drama mas noutro espaço e
num outro tempo, daí o itálico em que esses capítulos estão vazados) Dan April
é a figuração clara do mal-amado, do indivíduo cuja existência nunca poderia,
num mundo cuja hostilidade a todo o momento se manifesta a despeito das
aparências, ir dar aos lugares de felicidade que se lhe antolhava merecer.
Neste relato, ao contrário do que sucede
noutras novelas policiais, não é o autor que funciona como “deus ex machina” mas sim o leitor – que
assiste a tudo sem nada no entanto poder fazer. O enigma não se apresenta ante
o leitor mas ante a personagem masculina, limitada pelos sentimentos que a
envolvem.
Personagem trágica, tem sem que o suspeite,
do outro lado, outra trágica personagem que se desconhece enquanto tal, que não
pôde ou não soube guindar-se a um patamar de salutar formulação. Por outras
palavras: Danny, ser vencido de antemão, conserva contudo a pureza dos que se
lançam na vida com toda a carga de boa-fé, de decência pessoal e de lealdade
que confere humanidade à existência, numa mistura de coração e de razão que
frequentemente acaba mal. A razão de Krassy é contudo outra e é essa razão,
estranhamente – porque não caldeada pelo coração - que irá provavelmente
(digamo-lo desta forma) destruir a ambos ainda que por vias dissemelhantes.
Fábula dos desencontros? Mais lhe chamaria
fábula sobre a impossibilidade de, num determinado contexto, a matéria se unir ao espírito – usando
esta metáfora dos antigos alquimistas. O que é, na verdade, como os nossos
tempos mostram à saciedade e esta novela confere com aprumo, arte e evidente
desembaraço, muito mais vulgar do que as diversas moralidades procuram
estabelecer ou escamotear…
2. A
PROPÓSITO DE EXTERMÍNIO NO 31º ANDAR
A AURORA BOREAL DE PER
WAHLOO
“Porque vos ensinam eles a amá-los, se é
para vos tratar assim? Porque não vos deixam eles em paz?” – William Irish
“O homem é perecível; pode ser. Mas
pereçamos resistindo – e se ao fim o que nos reservam é o vazio e o nada,
façamos com que isso seja uma injustiça” – Étienne de Senancour
Há livros assustadores. Uns pelo espírito,
como por exemplo o Lázaro, de Andreiev,
que nos coloca de chofre e sem complacências em frente do facto de que uma vida
de ressuscitado seria, afinal, tão angustiante e repugnante como a degustação
de uma refeição apodrecida. Outros, pela letra, como o Drácula, de Bram Stoker, sobre o qual já se disse que só um leitor
completamente destituído de sensibilidade conseguirá ler numa casa deserta e
pelas horas mortas da noite.
Outros, por seu turno – e é o caso desta “utopia negra” vazada nas luzes boreais
que conformam as sociedades escandinavas – porque o que neles se encena está a acontecer paulatinamente. E não
só naqueles rincões.
O caso sucedido tempos atrás na
politicamente correcta Noruega, onde os monstros particulares são produto de
uma administração cuja tenaz cegueira é a prova do seu cinismo suave e perito em enterrar a cabeça na neve (e já não, como
os avestruzes, na areia do deserto) para sagração de um oportunismo que finge supor
que os cidadãos são um resíduo angélico
para que se não vejam as partes demoníacas do seu poder governativo, mostra-o
sem véus e sem disfarces.
Nesta obra de entrecho quase linear, duma
secura de estilo necessária para que a sugestão
resulte, Per Wahloo (que com sua mulher Maj Sjowal deu na época a lume um belo
punhado de polars bem inseridos no
género, mas com um timbre de novidade que os distinguiu) segue passo a passo os
sete dias duma investigação que um inspector da polícia efectua para que naquela
sociedade pacífica e onde o Estado
mais ou menos cordial procura que o cidadão viva sem traumas (e onde o único
crime significativo e punido aliás sem muita violência expressa é a embriaguez, que entretanto se
multiplica) tudo continue a ser sereno.
Nesta sociedade o controle é exercido pela leitura: leitura de revistas e de
jornais com visão positiva, onde o próprio fenómeno desportivo (fautor de
paixões e frequentemente de conflitos) não recebe muita atenção a não ser a que
possibilita que se possa epigrafar televisivamente o sucesso das vedetas que o
integram.
O consórcio que o domina é constituído por
gente esclarecida e de “boa formação” partidária e propugnadora de uma igualdade social estabelecida de maneira
amena e que até quando despede dos empregos o faz cordatamente: o indivíduo ou
indivídua em causa recebe uma reforma razoável e um diploma por bons serviços,
assinado por altas individualidades. E o além está muito longe…mesmo quando ao
virar da esquina.
Mas há sempre alguém que, com impetuosidade
maldosa, “sem olhar à felicidade social a
que se conseguiu chegar” (sic), resolve meter um pauzinho na engrenagem.
Por puro sadismo (como se diz neste
ocidente cristão, civilizado e culto) ou por maldoso anarquismo (como há dias disse publicamente um comandante
da polícia metropolitana inglesa, que ao mesmo tempo solicitou aos cidadãos
britânicos que, e cito, denunciassem os vizinhos que soubessem que perfilhavam ideias anarquistas – o que quer que isto
seja…)? Ou, ainda, por impiedade,
como se diz naqueles países do oriente que têm a dita de existir em teocracias?
Alguém, portanto, usando precisamente uma
folha anexa não preenchida dum desses diplomas, (uma vez que o papel é
pacificamente controlado), endereçou às autoridades uma carta inquietante,
sugerindo que inquietantes acontecimentos iriam dar-se. E embora as forças
vivas tenham essa carta por eventual simples brincadeira, tal como uma outra
insistência significante, nunca fiando – a própria brincadeira indicaria já um
escabroso, quiçá injusto, desvio e Jensen - polícia compenetrado e eficiente
sofrendo no entanto de um doloroso e crónico desarranjo gástrico que nem a
comida cientificamente confecionada e posta à disposição dos cidadãos pelo
ministério da saúde que tem a seu cargo as dietas racionais consegue
tranquilizar – mergulha num universo de entrevistas e de encontros que pouco a
pouco lhe patenteia os meandros do jornalismo, se jornalismo se lhe pode
chamar, e da criação escrita quando a criação
escrita é apenas um simulacro que ora leva ao suicídio dissimulado (ou
assistido) ora à entrega a um ambiente de mundanidade, de sucesso e de
notoriedade bastante semelhantes ao que usa utilizar-se nesta Europa das
pátrias e, suspeito-o com alguns tremores relativos, nas sociedades
alfabetizadas de outros continentes…
Homem sério e bom profissional, ético tanto
quanto as circunstâncias peculiares o permitem, nesta viagem iniciática de uma
semana nem sequer negra em que a desesperança do protagonista é irmã colaça da
desesperança sentida pelo leitor enquanto mergulha na naturalidade do relato, a
regra da “detective novel” é
subvertida, ou melhor: invertida. Os chefes que o comandam preferiam não saber
e a demanda de Jensen dirige-se não à descoberta
mas à ocultação. Nas sociedades
racionalmente policiadas, como por exemplo a sociedade lusa, o polícia, (que
funciona como Némesis justiceiro) age preferencialmente como aquele que camufla o enigma ou, dizendo ainda mais
esclarecedoramente, faz com que o enigma
seja uma camuflagem que garante ou sustenta o “equilíbrio” entre as
classes, para que a paz e o progresso coabitem salutar e airosamente…
No entanto, nem nestas mansões quase
celestiais as coisas são como deviam ser (ou se esperava que fossem).
Dizia António Maria Lisboa, numa frase bem
respigada por Cesariny, que “Todo o acto
premeditado ou todo o acto leviano tem a sua guilhotina própria”.
A mim sempre me pareceu que ele tinha razão
ao cunhar este conceito. E, se o pudesse ter lido, creio que Jensen – e muito
mais os seus chefes – teriam dolorosamente entendido a verdade que assistia ao
infausto poeta surrealista lusitano.
À sua deles própria custa – mas isso seria
já uma outra estória…