(imagem obtida aqui)
É assim que sintetizaria estas três crónicas de Alberto Gonçalves:
As origens da nacionalidade
Abominar
a esquerda não significa conviver com a direita. Sobretudo em Portugal, onde a
dita parece vastamente povoada por tontos e tontas capazes de embaraçar um
anticomunista primário, que é como convém que os anticomunistas sejam.
Recentemente, tivemos as confissões de uma tal Cristina Espírito Santo, a filha
de um banqueiro que, segundo declarações ao Expresso, gosta de passar férias na
herdade da família porque isso a convence de que está, cito, a "brincar
aos pobrezinhos". Por outro lado, há um par de meses, a Sábado revelou que
a presidente da Assembleia da República mandou apagar da Wikipédia a referência
à profissão do pai (alfaiate). E, em larga medida, é isto a nossa direita:
gente orgulhosa do berço dourado e gente envergonhada das origens humildes. No
fundo, trata-se de uma contrapartida adequada aos preconceitos da esquerda, que
tanto odeia os que nasceram ricos quanto os que se fizeram ricos (o velho derby
"fascistas" versus "arrivistas"). E trata-se de um retrato
fiel do país que somos.
Nos
lugares com alguma tradição liberal, a ascensão é que merece louvores. Nos
Estados Unidos, por exemplo, não existe percurso mais grandioso do que o dos
presidentes que vieram ao mundo na proverbial (e às vezes algo mitificada)
barraca de madeira. Logo a seguir, vêm os empresários que a partir da miséria
ou no mínimo de fracas perspectivas constituíram fortuna. A subida na escala
social é não só sintoma de liberdade colectiva: a sinceridade dos seus
protagonistas é também sintoma de inteligência individual. Afinal, que mérito
sobra à criatura que deve exclusivamente a prosperidade aos antepassados? E que
discernimento se atribui à que finge a prosperidade dos mesmos? Recentemente,
um jornalista indígena alinhavou um longo obituário de uma familiar, que segundo
o texto o iniciara nos rudimentos do Antigo Egipto e na história das religiões.
Na verdade, a senhora era vendedora de peixe e, ao que sei, praticamente
analfabeta. Os portugueses envaidecem-se daquilo para que nada contribuíram e
escondem as provas do próprio esforço.
Permitam
que um português abra uma excepção. O meu pai formou-se em engenharia
electrotécnica e a mãe andou um par de anos num instituto de contabilidade. Daí
para trás, desfila uma imensa linhagem de guardas-fiscais, empregados fabris,
moleiros, agricultores, donas de casa e, se recuar três gerações, uma pedinte.
Os privilégios de que gozo devo-os ao trabalho deles e, se não se importam, um
pedacinho ao meu. De qualquer modo, aqui a gratidão - essencial - importa menos
do que os factos. E a desesperada incapacidade em lidar com estes exibe um tipo
notável de carácter individual, além de um talento colectivo que não engana.
Embora queira enganar.
O que faz falta
Lembram-se
de Raquel Varela, a personalidade celebrizada numa emissão do Prós e Contras
após ter sofrido um banho de economia básica a cargo de um adolescente? Ao que
parece, os 15 minutos de fama terminaram, pelo que a senhora regressou à
obscuridade do blogue subsidiário do PCP (5dias.wordpress.com) onde desabafa
para consolo de cerca de duzentos e trinta devotos. O lado mau é os delírios da
dr.ª Raquel estarem limitados a tão poucos. O lado óptimo é os delírios
continuarem intactos e impermeáveis à realidade.
Ainda há
dias, a dr.ª Raquel amanhou um pequeno texto sobre o que parece constituir o
seu assunto de eleição: a juventude. O ponto de partida nem é abstruso de todo,
já que a dr.ª Raquel acha os jovens (no caso entre os 16 e os 25 anos) do nosso
tempo "incultos, ignorantes", que vegetam "em frente ao
computador" e vivem "no estado animal de comer, dormir e ler dois
parágrafos no Facebook".
Abstrusa
e, convenhamos, hilariante é a alternativa proposta. Uma pessoa normal
consideraria que a mocidade actual genericamente carece de um ensino mais
exigente, de um módico de autonomia, de noções de responsabilidade, de ambições
profissionais, de expectativas adequadas ao mundo contemporâneo e de alguma
curiosidade face ao mesmo. A dr.ª Raquel não. Para ela, o que faz falta aos
jovens é seguirem o exemplo que a dr.ª Raquel supõe ser o dos respectivos
antepassados e provocarem baderna pública. Um só parágrafo representa todo um
programa (de humor): "Ser empreendedor era começar por tirarem um curso de
memória histórica de organização com os pais, outro de política e cultura com
os avós, e virem para a rua e tornar esta política ingovernável."
Quando
terminarem de rir, convirá notar que a dr.ª Raquel se esqueceu, talvez
deliberadamente, dos jovens cujos progenitores não possuem no currículo a
militância comunista ou em grupelhos afins e preferiram menos totalitárias. Mas
isso é irrelevante: desde que os restantes saiam de casa aos berros ou
decididos a partir o que os rodeia, a dr.ª Raquel ficará realizada e o País resolvido
- pelo menos na opinião dela, que se confessa estudiosa dos movimentos sociais.
Trata-se,
evidentemente, de um problema de deformação profissional. Se a dr.ª Raquel
fosse ornitóloga, incentivaria a juventude a empoleirar-se nos galhos das
árvores. Sendo especialista em revoluções, não descansa enquanto não assistir a
uma, sobretudo das que derrubam democracias. Esperemos que tenha azar: antes
vegetais que criminosos.
Sem limites
A chamada
lei da limitação dos mandatos autárquicos, cujo espírito ninguém percebeu ou
percebe, é bastante discutível. O resultado não se discute: há poucas
democracias tão exóticas quanto a nossa. Basta assistir à quantidade de
autarcas que, chegados ao limite de reeleições no seu poiso de longos anos, vão
literalmente pregar para outra freguesia ou, para ser exacto, município. Basta
notar os escrúpulos com que a classe política se eximiu de produzir um
esclarecimento definitivo - ou provisório, vá - sobre o assunto. E basta, por
fim, constatar a pluralidade de interpretações que os tribunais dedicam a cada
caso, de acordo com a instância, a geografia ou a preferência.
Mas se se
fala imenso dos autarcas espertalhões, fala-se estranhamente menos dos autarcas
que acumulam a esperteza com a preguiça, leia-se aqueles que não só insistem em
recandidatar-se após cumprirem três mandatos consecutivos como insistem em
fazê-lo no concelho original. O processo é simples: escolhe-se um verbo de
encher (diplomaticamente: um "delfim", ou uma "jovem
promessa") que concorra à câmara no lugar do ex-presidente enquanto este
desliza para a Assembleia Municipal e manipula daí os cordelinhos. De norte a
sul, o arranjinho traduz-se em diversos cartazes, nos quais o retrato do chefe
ensombra o do verbo de encher. Sem novidades, o arranjinho também já divide a
jurisprudência.
Não
falha. Entre nós, as intenções sinceras ou simuladas de democratizar o Estado
terminam em estado comatoso. A regionalização, abençoadamente enxotada, abriu o
apetite de uma vasta estirpe de caciques. As candidaturas independentes,
idealmente destinadas à abertura à "sociedade civil", limitam-se por
regra a amparar o refugo partidário. E as limitações dos mandatos deram nisto.
Eis o famoso desenrascanço pátrio. A pátria é que assim não se desenrasca.
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