segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

"Mais um passo para a abjecção"







Nunca pensei em ser polícia. Agora, o governo quer fazer de mim um polícia (ainda por cima à paisana) e também um denunciante.
O processo não é complicado. Quem pedir sempre a factura a quem lhe vende um café, um bife ou um casaco, chega ao fim do ano com um molho de bilhetes de lotaria para o sorteio de um carro “topo de gama”, que o governo oferece ao “bom cidadão”. Isto permite ao ministério das Finanças comparar o volume de negócios declarado de qualquer restaurante ou de qualquer loja com a documentação que lhe entregou a classe média à procura de um Audi ou de um Mercedes, que a faça brilhar na vizinhança e espicace a sempre viva inveja da família e amigos. Para animar as coisas, que, segundo consta, não andam bem, o Estado obriga toda a gente a pedir factura.
Como se compreenderá, o Estado transforma assim com habilidade e subtileza os portugueses numa corporação de espionagem encarregada de se espiar a si mesma, sem gastar mais do que um carro apreendido a um criminoso ou contrabandista. Vivendo perto da falência, o comércio e a restauração tendem a subtrair uma factura ou outra à tosquia fiscal a que estão submetidos. Esta prática irrita os peritos que aconselharam ao sr. primeiro-ministro este método democrático. A Espanha acha o estratagema “pitoresco”. Por mim, que não sou a Espanha, acho a ideia tenebrosa: vexatória, indigna, irresponsável, excessivamente parecida com episódios conhecidos da Ditadura e dos regimes que ela imitava e venerava. E, no fim do ano, gostava de ver a cara do meu compatriota que ganhou esse glorioso concurso.

Estou daqui a imaginar a cena. O indivíduo gordo e triunfante que atrapalhou a vida a centenas de pessoas, que tinham cometido o erro de confiar nele. O sr. Passos Coelho, seguido da sua trupe e da sua inconsciência. O automóvel cintilando ao longe. O premiado começará por apertar a mão a S. Exa. com uma grande vénia. E, a seguir, S. Exa. retribuirá com um pequeno discurso sobre as vantagens da coesão social, do enorme esforço que se espera do conjunto da Pátria e dos milhões que a operação angariou para os pobrezinhos, que ele particularmente estima. Um secretário entregará a chave do carro ao polícia e denunciante do ano e essa virtuosa personagem tornará a apertar com respeito a mão do sr. Passos. A sociedade portuguesa avançou um novo passo para a abjecção.

3 comentários:

Eduardo Freitas disse...

Neste tema, como em tantos outros, ler Orlando Vitorino é obrigatório - http://espectadorinteressado.blogspot.com/2013/10/exaltacao-da-economia-informal.html.

Uma boa semana.

ns disse...

Obrigado, Eduardo Freitas, pela sua informação. Já fui ler e concordo com o que O.Vitorino escreveu em seu tempo.
Noutro plano, sabe que me dei com o filósofo em causa, que me foi um dia apresentado pelo Manuel Patrício - durante a visita que me fizeram para assistirem ao lançamento aqui em Portalegre dum livro meu? Vitorino era um homem muito ligado ao teatro e o meu livro, uma peça intitulada "Passagem de Nível" (onde além do mais é previsto e referido com fundura o ambiente de corrupção e de arbítrio dos nossos mandantes de décadas) abriu-lhe a curiosidade. Até ele morrer mantivemos um contacto que só não foi mais marcado porque como soi dizer-se ambos tínhamos a nossa vida vidinha, além de morarmos longe um do outro.

Kruzes Kanhoto disse...

"Denunciante"?! Mas a emissão de facturas não é obrigatória?! Ainda hoje esperei mais de cinco minutos na caixa de um supermercado porque o dono de um café foi às compras - para casa e para o tasco - e pediu factura, tudo junto na mesma factura, com número de contribuinte, nome, morada e sei lá mais o quê!! Então por que raio não há-de este senhor lá no boteco dele passar-me também a factura a mim?