sábado, 8 de fevereiro de 2014

Passagens de nível e Iniciações




 Introdução

…E eis senão quando, a pouco e pouco e ao ritmo dos relatos paulatina e sabiamente doseados pelos “órgãos de comunicação” (capitaneados pelos tabloides), o país que ainda lê e que muito vê televisão e lateralmente ouve a rádio, acordou para um epifenómeno que se habituara a simplesmente relancear ou, quando muito, a contemplar em diagonal: a brutalidade ou o desaforo das chamadas “praxes” académicas.

Brutalidade e desaforo esses, exercidos não em todos os lugares, não em todos os “estabelecimentos de ensino” (como reza a novilíngua do luso neo-liberalismo primário e queirosiano por essência), é claro. Mas encrespados em todos eles, seja numa versão soft e controlada pelo provincianismo e a timidez dos “jovens”(como se tornou clássico dizer nos textos governativos ou nos relatórios policiesco-judiciais) com a complacência mais ou menos paternalista (oportunista?) das direcções, seja num tom mais marcado embora sem atingir, como parece ter sido o caso do Meco, proporções criminais e absurdamente envoltas em negrume.

As ditas praxes académicas constituem, encaradas apropriadamente, um meio-termo específico entre a “iniciação” e a “passagem de nível” e são um epifenómeno circunstancial nas sociedades de sedimentação ocidentalizada, de conformação mais ou menos democratizante (ou partidocratizante, como é o caso da nossa sociedade onde vigora o denominado tecnicamente cripto-fascismo - ou ur-fascismo ou, ainda, fascismo doce – serve dizer, aquele onde a população não é constrangida pela repressão mas mediante manipulação por meios específicos naturais e consentidos) de tendência cleptocrata e judicialmente desqualificada a nível ético.

São, digamo-lo com adequação e lucidez, um verdadeiro ersatz daqueles dois fenómenos aludidos, pois não visam uma qualificação  (como entre os artesãos medievais, que tinham de efectuar determinadas práticas e trabalhos até se verem aceites nas corporações respectivas) ou uma iluminação, assim dita (tal como se pratica nas maçonarias ou irmandades herméticas diversas).

Mas que tipo de integração visam atingir? Que tipo de conformidade fundacional essa “integração” procura, se é que procuram alguma?

Veremos isso a seguir, mas primeiro detenhamo-nos um pouco sobre o tipo de iniciações e passagens de nível entre determinadas etnias – onde aqueles dois fenómenos tinham foros de necessidade civilizacional ou grupal pois buscavam uma subida de estatuto prático e operativo e constituem exemplos acabados e profundamente colectivos: os índios norte-americanos, os africanos da região centro-sul e os esquimós.




Pequeno enfoque histórico

Nas sociedades vivendo conceptualmente no neolítico, ainda que inscritas no tempo moderno ou contemporâneo, como era o caso das tribos de índios norte-americanos, dos esquimós, dos pigmeus do Congo e dos masai do Grande Rift, para nos referirmos apenas a estas etnias, as passagens de nível bem como as iniciações correspondiam e eram efectivadas visando uma qualificação prática de subsistência ou de sociabilidade encarada dum ponto de vista lato. Assim, entre os índios, cumpriam-se ritos de passagem tais como suportar a dor pendurados por ganchos de madeira presos na pele do peito (entre os Lakotas e os Pawnees), irem para o campo – bosques, pradarias, montanhas, desertos – só com uma tanga e apenas com um “tomahawk”(machado) ou uma faca e sem comida, devendo voltar passados dias sãos e salvos (Cheyennes, Kiowas…) ou, ainda, isolarem-se numa serra, monte, rio, sem comer ou dormir até terem uma visão iluminadora à qual seguidamente ficariam ligados por esta passar a ser o seu totem ou definição. Noutras tribos (hopi, apaches, navajos) tinham de se submeter por vezes a ritos que incluíam o uso do peyotl ou da mescalina, em circunstâncias específicas, para poderem ascender ao estatuto de guerreiros; ou de roubar cavalos, sem portarem armas, a tribos adversárias ou inimigas ou aos “white eyes” (brancos)  - e não “rostos-pálidos”, invenção holiúdesca.

Todas estas passagens de nível/iniciações se envolviam numa razoabilidade compreensível e actuante: ter fibra de guerreiro ou de caçador capaz, de saber tomar conta dum agregado tribal e de estar nuclearmente inserido na boa condução dos assuntos ou ritmos do respectivo grupo ou etnia.

Assim era entre os bosquímanos do Calaári, os inuit/esquimós ou entre os masai e os pigmeus da África central, como já se referiu, que efectuam passagens de nível para serem caçadores e pastores experientes ou, como nas caçadas às grandes feras, poderem proteger quando necessário o conjunto da comunidade.

E nas chamadas confrarias ocidentais, maçonarias ou carbonárias, ou outras irmandades (rosas-cruz, “agricultores celestes” ou “irmãos do orvalho”) o procedimento é semelhante, tendo apenas graus de selectividade que lhe são próprios.

O que se visa é uma adequação peremptória ou uma iluminação funcional.

Actuação bem diferente é a existente nas denominadas, grosso-modo, mafias ou seitas criminais, sejam elas laicas ou fideístas: a passagem de nível decorrente do estatuto criminal próprio e intrínseco, acentuo e sublinho, tem sempre um cariz ora obnóxio ora retintamente perverso e criminal senão criminoso: entre, por exemplo, os traficantes mexicanos/sul americanos, a obrigatoriedade de eliminar uma ou mais pessoas para ascender ao grau de “soldado” (conforme a terminologia da Mob norte-americana ou italiana…) ou efectivar outros sinistros actos que não só “iniciam” como jungem o oficiante a uma eventual pressão ulterior. É o mesmo procedimento feito noutras associações criminosas como, por exemplo, a dos yakuza nipónicos.

Como explicar, entretanto, o ordálio das praxes académicas ou militares (pois também acontecem entre nós e noutros locais)? Uma vez que não visam adequação para ascensão de mérito ou crescimento específico (ou seja, um estudante de física por ser praxado não se torna melhor cientista, um de matemática não passa a entender melhor a teoria de Einstein ou a do “conjunto de grupos” de Evariste Galois…).

Para que servem ou, ainda mais esclarecedoramente, o que visam os ritos praxistas como os do nefando Meco?


João Garção, Colagem


Do Meco e outras malas-artes

Segundo é dito por membros praxistas ou observadores tendenciais como alguns especialistas em “sacudir a água do capote” ou partidários das “expectativas de milagre”, as praxes dest’arte visam integrar(?) o novo aluno (vulgarmente denominado caloiro pelos trintanários). Mas integrar como e onde ou em que partis pris regimental? Uma vez que o aluno, enquanto aluno, está já integrado e mesmo submetido às disposições em código, legal ou consuetudinário, que regulamentam o estatuto do discente?

Se analisarmos as premissas com uma liminar penetração ou suficiente informação e perspicácia, dando com bonomia de barato que as praxes são sucessos/actos decorrentes de uma tradição, vazando-as desta forma num território de festejo ou de emanação lúdica, meio-goliarda meio-turística propiciada, mantida e acatitada por mancebos e mancebas ad corda, nada haveria a antepor. Tratar-se-ia duma mensagem, duma comunicação pró-imergível numa alegria de viver característica de grupos etários, de gente à entrada dos posteriores e sérios assuntos adultos.

No entanto, o caso aqui fia mais fino. A talhe de foice trazemos à colação, respigada com vénia dum escrito a nós dirigido por uma profunda conhecedora de certas classes de hermetismos, a grã-senhora carbonária Maria Estela Guedes, uma indicação esclarecedora.

E o que ela nos diz é que, e cito, é que “Afinal a última Carbonária Portuguesa, a mais importante, fundou-a Luz de Almeida com estudantes da Maçonaria Académica. Praxes e iniciações maçónicas estão interligadas”. Sem dúvida.

Então, assim sendo e chamando a atenção para certas passagens do seu lúcido texto publicado no TriploV, a explicação que enquadra e faz luz sobre o porquê das “narrativas brutalizadoras” (como agora se diz na senda dum conhecido uomo publici …) uma vez que as irmandades são de jure ou de facto “gente de bem”, opostas pois a turiferárias, terá de ser procurada noutro plano. E qual? Precisamente no plano do societário e, dentro deste, dentro do que se sabe ou convencionou ser o imaginário português, um imaginário dominado (mais grave – determinado!) por um tipo de continente social e colectivo de índole não democrática, onde faz lei o compadrio, os sentidos de casta e de família (como se dizia em Espanha, de cunhadismo), de classe e de privilégio, no limite de corrupção moral, ética e conceptual e da exacção cleptocrata.

As praxes de que nos ocupamos, no seu sentido mais exacto, visam pois adequar o praxado, depois praxante quase sempre, a adquirir o sentido da humilhação e da prepotência, signo maior da tardo-sociedade lusa onde os proverbiais “doutores e engenheiros” - que serão os presuntivos futuros governantes ou “assessorantes” – em todo o caso a casta que tem dominado de forma geralmente espúria a intendência e o armazém luso de há dois séculos a esta parte, verdadeiros vagomestres que em grande parte se certificam na sociedade de que decorrem.

(É esta, ainda, a formulação que explica ou descripta o esforço quase heróico de certos mandantes partidários que, a todo o custo, tentam a colação de grau engenheiral ou doutoral sem esforço ou suor mensuráveis…)

É esta pois a integração a que, (ora com inadequação ora com cinismo), certa gente bem determinada onde até avultam governantes mais ou menos nauseabundos – para usar esta expressão grata a Tomás de Figueiredo – alude  com não despicienda maneira de ser onde se nota o desplante.

Daqui se infere que é lançar poeira nos olhos do vulgo pecus, ainda que o façam apenas por tolice e não por maldade, vir ejacular-se a ideia de que uma legislação repressiva podia melhorar o tema…a questão. Não! As praxes existem desta forma nefanda porque à sociedade portuguesa, melhor, aos mandantes grupais portugueses interessa instilar nos mansos cérebros juvenis – e por osmose em todos os outros – que há o dono (que foi submetido a sofrimentos que lhe caucionam o instalado bem-estar académico ou outro) e há o futrica, sendo o povo, todo o povo que não recebe prebendas nem benesses, futrica potencial ou de facto.

A praxização em estilo meco, usemos este neologismo irónico-magoado, é verdadeiramente a antecâmara do sentimento-acto de domínio sobre este povo macerado, desprezado pelos diversos condottieris que num outro plano privilegiam os interesses dos argentários enquanto esmifram o zé-povinho até às fezes.

Os estilos e as acções estilo Meco terminarão quando não houver espaço para bosses autoritários ou conceptualmente cavernícolas, quando em suma vigorar na sociedade lusa academizada ou geral, capturada de há décadas a esta parte pela apagada e vil tristeza em que sobrevivemos, uma real, digna e limpa democracia – não um arremedo de carnaval seja nas ruas ou nas academias do reino… destes barões “republicanos”.

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