domingo, 20 de janeiro de 2013

Quatro por cento

[Alberto Gonçalves no DN]:

Segundo um estudo da seguradora Zurich, 96% dos portugueses não acreditam nos políticos. Como agora é habitual, estes dados foram apresentados com preocupação e imputados à austeridade. Basta espreitar um noticiário televisivo ou folhear um jornal para perceber que, no caldo ideológico vigente, a austeridade está na origem de todos os fenómenos ocorridos no país, desde os suicídios ao abandono de cães, passando pelos assaltos à mão armada e a decadência do Sporting.

Fora das alucinações em voga, a notícia merece aplausos. Descrer da classe política não é, ao contrário do que a própria classe gosta de sugerir, meio caminho andado para o advento de uma ditadura, mas o primeiro passo para a consolidação de uma sociedade livre. As ditaduras erguem-se sobre a adesão excessiva aos "salvadores" nascidos justamente da veneração e da fé cegas. Numa democracia autêntica, criatura nenhuma depositaria nos políticos mais confiança do que a estritamente indispensável. Os políticos são um mal necessário, que se tolera com a resignação dedicada a uma gripe em Fevereiro. É óptimo que os portugueses suspeitem dos políticos. É trágico que, provavelmente, isso seja mentira.

Uma coisa é resmungar em inquéritos contra os senhores que mandam. Outra é supôr que os resmungos traduzem a capacidade de compreender que os senhores que mandam, quaisquer que sejam, constituem o problema e não a solução. Infelizmente, palpita-me que as pessoas não criticam o poder porque o poder é por definição criticável. Criticam-no porque não recebem dele tudo o que desejam. O poder, em suma, não satisfaz as expectativas, e a mera existência de expectativas, no sentido em que os de "baixo" delegam aos de "cima" a orientação das suas vidas, é flagrante sinal de atraso.

Entre parêntesis, note-se os extraordinários 4% de indivíduos que, íntima e publicamente, proclamam acreditar nos políticos. Antes de nos espantarmos com tamanha demonstração de primitivismo, convém somar os eleitos para cargos nacionais e locais, os adjuntos, os assessores, os secretários, os motoristas, os compinchas, os parceiros de negócios e todos os que sonham atingir um dos postos anteriores. O número parece plausível.

Terça-feira, 15 de JaneiroA carteira e a vida
As patrulhas não dormem. Uma campanha da Samsung filmou uma jovem ligada à moda a enumerar desejos para 2013. O principal desejo consistiu numa carteira Chanel, que a jovem sonha comprar logo que junte dinheiro para tal. A irrelevância do anúncio é tamanha que nenhuma criatura psicologicamente equilibrada repararia nele. Por sorte, o Facebook está repleto de criaturas à beira de um colapso nervoso e o filmezinho em questão transformou-se depressa no que agora se designa por fenómeno viral. Muitos milhares de pessoas decidiram considerar criminosa a ambição pela tal carteira e, com a indispensável valentia que define a raça, começaram um processo de enxovalhamento da jovem, de seu nome Filipa Xavier.

É ou não é bonito? É, sim senhor. Sobretudo num país em que todos os dias figuras públicas, semi-públicas e anónimas exprimem sem pudor nem consequências alucinados apetites. O dr. Mário Soares pode ansiar por guerras civis, europeias ou mundiais que o vulgo não arrisca um comentário menos abonatório. O inqualificável prof. Freitas e o sr. Carlos da CGTP reclamam a dissolução do Parlamento e o vulgo acha o pedido normalíssimo. Diversos capitães de Abril reivindicam golpes de Estado e o vulgo não dá um pio. Comentadores encartados e o sr. Baptista da Silva convocam a "solidariedade" europeia a patrocinar-nos os delírios e o vulgo aplaude. Jornalistas que perceberam mal a natureza da profissão adoptam a retórica demagógica em vigor e o vulgo aprecia a proeza. O próprio vulgo, ou parte dele, ciranda por manifestações e "telejornais" a exigir em simultâneo protecção social e isenção de impostos. E nada disto suscita uma fracção do escárnio inspirado pela carteira Chanel. Ou uma chamada aos estúdios da Sic.

Numa das páginas mais embaraçosas do jornalismo pátrio, Filipa Xavier viu-se entrevistada no noticiário por aquela senhora que, durante dez minutos, tentou uma carreira como correspondente de guerra. "Entrevistada" é força de expressão: Filipa Xavier foi alvo de um interrogatório paternalista, onde acabou forçada a fazer votos de pobreza pessoal e familiar, a mostrar-se aflitinha com a situação económica e, juro, a garantir que ajudaria os desvalidos a vestirem-se para concorrer a um emprego. Entretanto, a referida "jornalista" esqueceu--se de exibir o guarda-roupa ou de anunciar a partilha do salário, decerto superior aos confessos 700 euros de Filipa Xavier. E a Samsung suspendeu a campanha. A pior crise está nas cabeças, não na carteira.

Quinta-feira, 17 de Janeiro A questão racial
No Alentejo, um pitbull matou uma criança e os portugueses descobriram novo pretexto para a polémica. Dezenas de milhares de pessoas assinaram petições contra o abate do bicho. Suponho que outras tantas exibiram posição contrária. Eu, que decidi não ter filhos por falta de paciência e sempre tive imensa paciência para os meus diversos cães, tendo resignadamente a concordar com a segunda escola de pensamento, ou no mínimo a achar absurda a promoção do convívio entre o ser humano e espécimes susceptíveis de o trucidar. Em simultâneo, não percebo o debate sobre as raças perigosas e as raças inofensivas. Sobretudo porque o problema canino está, justamente, no conceito de raça.

Um cão, companhia fiel e alegria permanente, só o é de facto quando resulta da aleatoriedade na procriação. As raças, principalmente se manipuladas pelos criadores, não são um aprimoramento dos animais, mas o seu exacto oposto. A humanidade não reprimiu quase universalmente o incesto apenas para promover alianças tribais: a verdade é que os filhos de parentes próximos tendem estatisticamente para a toleima, e não é à toa que certos biógrafos, por azar charlatães, procuram uma origem incestuosa no berço de Hitler.

Compreendo o apelo pelos cachorrinhos de "marca" que custam pequenas fortunas em lojas da aberrante especialidade. Infelizmente, é inegável que tais criaturas não se distinguem pela estabilidade "emocional", mesmo considerando os voláteis padrões da espécie. Não digo que os animais acabem por se mostrar perigosos. Digo apenas que existe esse risco, e que, de acordo com o bom senso, o risco é proporcional à respectiva envergadura. Um "chihuahua" resultante da mais grotesca endogamia nunca oferece perigo de maior. Um rottweiler de condição similar é uma ameaça latente.

Não vou cair na armadilha da psicanálise e sugerir que a necessidade de possuir cães potencialmente ferozes é uma compensação do pénis (assim de repente, apostaria na compensação do cérebro). Porém, há por aí demasiados rafeiros fiéis, espertos, meigos e gratuitos a precisar de um lar e de um dono que não os utilize como símbolo de status. Se Deus não me livrar de um dia vir a defender uma "causa", que seja esta.

Sábado, 19 de JaneiroFalta de legitimidade
As razões apontadas para a alegada falta de legitimidade do Governo, hoje lengalenga recorrente, prendem-se com a discrepância entre o programa reformista que teoricamente o elegeu e o assalto fiscal que evidentemente pratica. Isto é, com a mentira.

Num certo sentido, a tese está correcta: ninguém duvida de que o dr. Passos Coelho mentiu, ou no mínimo enganou-se e enganou-nos muito. Sucede que daqui à "inevitabilidade" da queda vai uma certa distância. A distância que, por exemplo e para não recuar mais, manteve durante seis anos no poder os dois governos anteriores, cujos programas não correspondiam exactamente às políticas executadas. O PS do eng. Sócrates jurou em campanha duplicar a dívida pública? Obter recordes na dimensão do défice? Estimular o desemprego? Levar o país à bancarrota? Colocar-nos na dependência de credores? Se bem me lembro, nada disto foi prometido, tudo isto foi realizado - sem que se ouvisse um pio de discórdia dos críticos actualmente de serviço.

Em qualquer dos casos, a questão é meramente académica. Se o Governo actual ameaça (só ameaça) levar a cabo o vestígio de uma reforma, ou seja, aplicar o programa com que se apresentou nas urnas, os críticos estrafegam-no com idêntico vigor. Os que acusam o Governo de falta de legitimidade não têm legitimidade nenhuma.

O futuro da esquerda?
Primeiro o sr. Hollande anunciou um "pacote" de austeridade. Depois, pediu aos sindicatos a "flexibilização" das leis do trabalho. Em seguida, resolveu caçar terroristas islâmicos no Mali. Por fim, elogiou o Governo do dr. Passos Coelho. É isto o futuro da esquerda? Pelos vistos, sim, se apenas considerarmos a pequenina parte da esquerda às vezes capaz de recuar nos desvarios quando confrontada com a realidade. Há a esquerda restante, da qual os exemplos são numerosos e escusados.

3 comentários:

Lura do Grilo disse...

No meu humilde blog convido a Filipa a realizar o seu sonho! É mais legítimo que as greves que uns bandalhos fazem por lhes terem baixado as horas extraordinárias pagas a peso de ouro quando outros vivem no desemprego.

Anónimo disse...

Perfeitamente apoiado. É hoje claro que os pitecantropos não erectos que na net estrafegaram a moça não o fizeram por amor à sobriedade mas sim por mero marialvismo. Apanharam uma mulher a jeito e vá de corajosamente lhe baterem. Não tenhamos medo das palavras: estão ao nível dos heróis que na Índia sequestram mulheres e as violam corajosamente em grupo. Receita: tanto para uns como para outros, uma carga de lenha na lombeira. Como aperitivo...para o resto da dose!

Jorge Guelvada

Joaquim Simões disse...

Ah ganda Guelvada!