... Alberto Gonçalves:
Contracultura
Não vou mentir: houve um momento em que quase
duvidei da capacidade de António Costa para regenerar o País. A culpa não é
minha. Sucede apenas que, de tanto se habituar a políticos medíocres, uma pessoa
sente dificuldade em distinguir a grandeza à primeira vista. Porém, à segunda
não falha.
A minha epifania com o Dr. Costa aconteceu no dia
em que li o manifesto "A Cultura apoia António Costa", e reforçou-se
no dia em que o Dr. Costa se reuniu com "centenas de intelectuais"
disposto a demolir convenções caducas. Em situação de crise, o populista comum
falaria do desemprego e prometeria trabalho, falaria da dívida e prometeria
crescimento, falaria dos pobres e prometeria compaixão. E melhor saúde e justiça
mais equitativa, e educação mais capaz. O Dr. Costa ignorou estas palermices,
foi directo ao que de facto importa e prometeu um Ministério da Cultura. A
casa, no caso o Mercado da Ribeira, em Lisboa, veio abaixo - felizmente em
sentido figurado.
Confesso que me rendi naquele momento. Não faz
sentido pensar em distribuir benesses aos pobres ou à classe média sem antes
assegurar que os intelectuais recebem a sua parte do bolo. Nas palavras, sempre
belas, da escritora Lídia Jorge, "o sector cultural é um pulmão do corpo
social", e ninguém de boa-fé deseja que Portugal sufoque. De que serviria
uma economia pujante (as pernas da sociedade) ou o equilíbrio das contas
públicas (os cotovelos) se a Cultura, com gigantesco C, agoniza com enfisema
por falta de intervenção estatal? Dito de outra maneira, de que nos vale uma
nação próspera em que a dona Lídia carece dos estímulos necessários à
respectiva obra?
E quem diz a dona Lídia diz qualquer um dos
intelectuais empenhados em consagrar o Dr. Costa, os quais, por definição,
sabem aquilo que nos convém a todos. Se Virgílio Castelo recomenda o Dr. Costa,
para mim chega. E se Luís Represas também o faz, para mim sobra. Eu quero estar
onde estão Paco Bandeira e Tomás Taveira, Io Apolloni e Maria do Céu Guerra,
Nicolau Breyner e Isabel Alçada, o Sr. Júlio do cavaquinho e António Mega
Ferreira, Diogo Infante e Júlio Pomar. Por que carga de água duvidaria da
superior percepção, face aos mortais, do realizador João Canijo e da fadista
Mísia? Haverá alguém suficientemente burgesso para questionar o caminho
apontado por Ana Zanatti e Alice Vieira?
Agora a sério. O ódio da "Cultura" à
independência e à liberdade, passe a redundância, talvez não seja tão grande
quanto o desprezo pela sociedade que diz ajudar a respirar. Ainda assim, não
sei o que é pior, se a desmesurada presunção dos vultos citados, se a
possibilidade de no eleitorado haver uma quantidade significativa de gente
influenciável pelos vultos. Caso a haja, merece tudo de mau, incluindo a
Cultura dos simples e o Dr. Costa.
O regresso das caravelas
Antes do jogo do Brasil com a Alemanha, um
colunista do jornal Globo acusou a Presidente indígena de usar o Mundial de
futebol como indicador do sucesso do seu Governo. Não sei quem vive mais fora
da realidade, se o colunista se a dona Dilma. Em matéria de
"projecção" internacional, realizar um evento daquelas dimensões no
Brasil foi uma ideia tão luminosa quanto fazer um filme promocional de Dresden
em 1945. Ao começar por chamar a atenção para a bola, o Mundial acabou a chamar
a atenção para o resto: a miséria, a violência, a repressão, o caos, o atraso,
a corrupção e uma economia que, há um par de meses, o responsável de um banco
dinamarquês considerou a pior entre as dezenas de países que visita anualmente.
Aparentemente, a ideia, típica dos populismos
latinos e de dois ou três regimes do hemisfério norte, era a de que o êxito
desportivo disfarçaria o desastre fora do desporto. Ao que consta, o Brasil
levou com sete golos e cada um ajudou a realidade a aproximar-se da superfície:
o campeão mundial dos fracassos (cito de novo o Sr. Steen Jakobsen) conquistou
mais um triunfo. E, se reeleger uma criatura com o esclarecimento e a seriedade
da dona Dilma, não ameaça perder o título nos próximos tempos. Os tumultos e as
lágrimas posteriores à goleada sugerem que a realidade local, submersa em doses
variáveis de ressentimento e sentimentalismo, continua a ser um mistério para
os autóctones.
E para muitos estrangeiros também. Numa daquelas
rajadas de inanidades que alegram o dia de qualquer um, o sociólogo Boaventura
de Sousa Santos apareceu a explicar que a União Europeia "morreu com a
crise grega" e que Portugal e a Europa devem procurar "alternativas,
olhando para o Sul global". Ao cuidado dos que já desataram a rir, informo
que o melhor ainda vem aí. Ei-lo: é urgente um "regresso das
caravelas", com uma "política renovadora de conhecimento", em
busca da "inovação e das experiências de luta e de resistência do
Sul".
Traduzido em português menos alucinado: a Grécia
(e Portugal) arruinou-se, logo há que encobrir as causas da ruína - em suma o
excesso de estatismo, a inépcia e a trafulhice - e proclamar a falência do
projecto europeu, que por sua vez abre as portas à aprendizagem com calamidades
em forma de nação, do Brasil à Venezuela, da Bolívia ao Uruguai. Num ápice, os
gregos (e os portugueses) ficariam com saudades da penúria vigente, mas
sofreriam uma penúria terminal arquitectada pelo Dr. Boaventura, obviamente um
consolo. No fundo, dado que o prestígio dos idiotas aumenta em função da
desgraça alheia, trata-se de convencer os alcoólicos a acrescentar ao currículo
os prazeres do jogo e da cocaína.
Em princípio, é improvável que um adulto diga
estas coisas a sério. Sucede que, no Sul das "alternativas", milhões
de adultos não só dizem coisas similares: pensam-nas e votam em conformidade.
Não admira que o Sul desperte a inveja da Terra. E não admira que, numa
prolongada vénia ao absurdo, o Dr. Boaventura arrisque um comentário sobre a
selecção portuguesa, que acha "o espelho do País: sem soberania e sem
aspirações". Miremo-nos, pois, no Brasil. As caravelas estão prontas?
O que é preciso é saudinha
Só um coração empedernido não se comoveria face à
greve dos médicos, sempre a zelar pelo bem-estar dos utentes. No Telejornal, um
utente particularmente felizardo explicava que fizera 70 quilómetros para uma
consulta que, afinal, não houve. Como ele, muitos viram as consultas adiadas ou
canceladas. Aos mais afortunados aconteceu o mesmo com as cirurgias.
Em Portugal, morrem por ano cerca de três mil
pessoas por negligência médica ou, para usar um termo brando, por "evento
adverso". A Deco calcula que 60% dos portugueses receiam ser vítimas de
erros médicos e que 58% já se queixaram formalmente dos ditos. Não é preciso
ser sobredotado para perceber que um simples dia de greve reduz em 1/365
semelhante flagelo, que um mês e pouco de greve reduziria o flagelo em 10% e
que uma greve permanente e ininterrupta acabaria com o flagelo de vez.
Quando se acusa a classe médica de
corporativismo, esquece-se que nenhuma outra corporação assumiria com tamanha
frontalidade as próprias limitações e falhas. E quando os médicos dizem que a
sua "luta" é em defesa da nossa saúde, não estão a brincar. Até porque,
é sabido, com a saúde não se brinca.
1 comentário:
Excelente!Alberto Gonçalves vinga-nos a todos da existencia de cretinos pedantes e de canalhas armados em arco, através do seu senso de humor certeiro e da sua lucidez acerada, que nos diz que a dignidade de pensar, numa terra de Boaventuras e de Lídias, ainda não é algo atirado às malvas. Bem haja e bem haja também este blog por o publicar.
Albicastrense
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