(Gravura de Nicolau Saião)
Quem fala de
Natal perde palavras
à entrada do
Inverno, na secura dos dias
no vasto frio
das noites, tão lúcidas e antigas
tão de infância
e de Agosto. O fogo
misturado:
árvores, luzes, fantasmas
e as doces mãos
das Avós. E ainda
um postal velho
velho cheio de vento e de memórias.
Quem fala de
Natal perde palavras, ganha
e perde as
demais coisas que as palavras edificam.
“Quem grita no
Natal? E Deus
não os fulmina?
“. Quem mergulha os seus pulsos
na fria água do
rio? Com seus chapéus à banda
em barcos
engalanados
os anjos vão
passando, dizendo amores esquecidos
dizendo
estranhas frases, assombrando as moradas
onde afinal não
nasce o tal de Nazareth. O sal e o
pão terrenal
dos que ainda não foram
pelo ar, pela
vida, pelos túmulos vazios.
Sim, pelo Natal
as pobres casas em ruínas.
Para ser do
Natal é preciso possuir
uma lembrança
ardente, um brinquedo estripado
e muita
tristeza feita nos anos em leilão
dos retratos
tombando com um nó na garganta.
Para ser do
Natal é preciso morrer
e viver de
seguida com o sangue nos braços
esperando a
estrela fixa do brusco espanto nocturno
junto à porta
perdida dum milagre adiado.
Ah falar de
Natal! Quem o consente?
O pão e o sal
talvez
de toda a
gente. E um olho de animal
pairando no
poente. Decisivo, visceral. E Deus, pobre dele
abrindo a água
lustral (no bem, no mal)
frente ao
horror da morte
terrena e
inocente.
Por isso, no
Natal
os segredos
demoram
e tudo muda e
tudo se envolve num pano branco barato
para que
ninguém esqueça um corpo ferido que por debaixo jaz
uma nova e
desconhecida espécie de cadáver achado na ilha
dos animais
inominados
e outras
diversas coisas que por desespero se não apontam.
No Natal treme
a casa, a casa
sempre caiada,
como um sepulcro sem número e sem nome.
E o inventário
dá, se estiver certo:
um coração
ardido todo azul
uma recordação
minúscula que se guardou num bolso
um riso salutar
ensanguentado
uma pequena
ironia desenhada a tinta de colegial
uma apenas
esboçada mão posta sobre um antebraço
o lenço de
cabeça duma tia que desapareceu na manhã
um gato
tranquilamente dormindo ao cimo das escadas
uma rosa e uma
palavra que a si mesmas se julgaram
duas mãos de
pedra tremendo atravessadas por uma ferida
numa cruz de
polo a polo
um hálito que
soprado no peito nos enlouquece
um arrepio, uma
agonia
uma tarde a
fechar-se repleta de amargura e de alegria.
Talvez o Natal
seja um rosto
ou uma
madrugada de outono
ou um avião
nocturno
ou um verão por
detrás das coisas aparentes
ou um
combatente jazendo de borco numa pia baptismal
ou os bramidos
de dois seres abandonados encarando-se de súbito
numa rua da
cidade
no escuro muito
escuro de uma cidade do universo
quer dizer –
luminosa e aterrada. E talvez
que tudo afinal
esteja a mais, que tudo afinal
se resuma a
filhós e azevias de um outrora
a canecas de
café familiar
algures num
horizonte, numa idade, num momento
no imenso
murmúrio de uma voz sulcando o tempo.
E a chuva que diabo
irá cobrindo tudo
no infinito
Natal dos mundos desaparecidos.
2 comentários:
Um poema belíssimo!
Ora Viva, li o seu comentário. Que agradeço. E dou-lhe esta informação cordial, para que veja que nem toda a gente o apreciou como o meu amigo: escrito em 1996 (todos os anos apenas vou actualizando a data - este ano o seu título foi Natal Catorze pelo que se entende - valeu-me diversos enxovalhos na terra que habito, provindos pelo que se analisou de gente da área fideísta! Num blog que se especializara em injuriar e caluniar, propunha-se mesmo que eu fôsse hostilizado pelo bispo local, dado que eu não passaria dum "ateu anarquista" que até batia nos filhos e mulher (o que valeu a dois meliantes uma queixa no sítio adequado, os quais tiveram, para eu a largar e evitar-lhes sentarem-se no banquinho, de me pagar uma substancial quantia). É assim que se faz a Estória. E é assim que se vai para o Hades...pelo menos o hades pequenino desta nação de alguns canalhas e bufos. O abraço e Bom Ano Novo!
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