Por um lado, Helena Cristina Coelho:
A má memória de Soares
"O principal para que o Governo tenha êxito é saber persistir. Ter a coragem de não mudar de rumo, independentemente dos acidentes de percurso. Recomeçar, pacientemente, quantas vezes forem necessárias. Tomar decisões. Não se deixar perturbar por agressões verbais, por incompreensões ou por injustiças. Aguentar de pé. Para os homens de convicção e de recta consciência, o que conta é sempre - e só - o futuro". O texto foi-me recordado por uma amiga de boa memória, que se lembra de quem o escreveu há 29 anos.
E foi igualmente repescado por outras figuras, como José Manuel Fernandes, que o replicaram para recordar as palavras e, sobretudo, o seu autor: Mário Soares, em Maio de 1984, quando era primeiro-ministro. O país não estava como agora, estava bem pior. Havia empresas a fechar portas e os salários em atraso tornaram-se uma chaga social, havia bolsas de fome e protestos irados nas ruas, os preços dispararam, a moeda desvalorizou, o crédito acabou.E o que fez o governo de bloco central? Acabou a estender a mão para assinar um memorando de entendimento e receber dinheiro do FMI. Foi então o tempo de ouvir pequenas pérolas de austeridade como a de que "Portugal habituara-se a viver, demasiado tempo, acima dos seus meios e recursos" ou que "a única coisa a fazer é apertar o cinto" ou ainda que "não se fazem omoletas sem ovos, evidentemente teremos de partir alguns". O autor? Acertou: Mário Soares.
Não há notícia de que alguém na altura tenha partido as pernas ao primeiro-ministro como represália por estas declarações ou pela dureza das medidas - nem mesmo quando teve de enfrentar manifestantes violentos na Marinha Grande, na campanha de 1986. Aliás, foi premiado por essa valentia e acabou por ganhar as eleições.
A política não tem a virtude (nem sequer a presunção) de ser coerente. E, se faltarem provas, Mário Soares está a encarregar-se disso. Aquilo que usou como sua defesa enquanto governante, é exactamente aquilo que hoje ataca sem pudor. Não pode ser apenas um problema de memória e a idade não pode ser desculpa para algo que não é só irresponsável:é inflamável. Com o país ainda de garrote apertado, polícias a escalaram o Parlamento para darem sinais do que são capazes, sindicalistas a invadirem ministérios para expressar indignação, uma simples palavra pode ser incendiária e deitar tudo a perder.
Independentemente de se gostar ou não da figura ou do seu passado, Mário Soares teve um papel relevante na história do país. Só por isso, e porque pelos vistos continua a reclamar a paternidade da democracia (que ninguém quer aniquilar) e de uma ideologia de esquerda (com óbvias crises de identidade), devia ser o primeiro a preservá-la. Mas não é isso que está a acontecer: ao atacar o presente (leia-se, quem hoje governa o país) de uma forma tão agressiva e estéril, Soares está a destruir um passado que passou por si e a hipotecar um futuro que devia ajudar a construir. E um país sem memória não pode ter grande futuro. Soares devia ser o primeiro a lembrar-se disso.
Por outro, Alberto Gonçalves:
Cabeças
perdidas
Manuel Alegre (poeta). Vítor Ramalho (soarista). Carlos do Carmo
(fadista). Boaventura Sousa Santos (latinista). Vasco Lourenço (abrilista).
Marisa Matias (bloquista). Ruben de Carvalho (comunista). Pedro Silva Pereira
(socrático). Jorge Sampaio (sampaísta). António Capucho e Pacheco Pereira
(embaixadores do "centro-direita"). Pinto Ramalho (general). Helena
Roseta. Maria de Belém. Carlos Zorrinho. Alberto Martins. Ferro Rodrigues.
Jorge Lacão. João Semedo. António Costa. Manuel Tiago. Domingos Abrantes.
Almeida Santos.
Estas são algumas das personalidades que, através de mensagem de
apoio ou presença corpórea, disseram "sim" à convocatória de Mário
Soares e iluminaram a Aula Magna a fim de alegadamente defender a Constituição
e o Estado "social". Na verdade, o exercício versou mais o ataque ao
Governo e ao presidente da República, a quem se exige imediata demissão a bem
ou posterior remoção a mal. As sugestões de violência, os apelos à violência e
as ameaças de violências foram tantos e tão explícitos que apenas a transmissão
televisiva do evento nos lembrou não se tratar de uma reunião da Carbonária a
conspirar o regicídio. O Dr. Soares "aconselhou" os governantes (e
Cavaco) a regressar a casa pelos próprios pés enquanto podem. Vasco Lourenço
incitou que os corressem, cito, "à paulada". Helena Roseta defendeu
que "a violência é legítima para pôr cobro à violência". E, visto que
as camisas de força nunca chegaram, um longo etc.
Talvez não valha a pena notar que, em 2013, a "família
real" em causa foi eleita pela maioria dos cidadãos. Vale a pena notar que
ninguém elegeu os revolucionários em questão. Sobretudo ninguém lhes passou
procuração. Os amiguinhos do Dr. Soares falam em nome de um "povo"
que, abençoadamente, não existe. O "povo" que existe pode não gostar
do Governo e lamentar o Prof. Cavaco, mas boa parte da população é capaz de
abominar com maior empenho o bando de privilegiados da Aula Magna, que no
entender de muitos devia estar na cadeia pelo que outrora fez ao país ou pelas
desmioladas soluções que agora propõe.
Sou avesso a excessos. É claro que umas centenas de malucos
fechados numa sala (de que infelizmente não se perdeu a chave) não definem o
espírito do tempo. O que o define é a importância que se dá à coisa. Assim de
repente, os augúrios não são simpáticos: sem discernível ironia, os media
dedicaram ao encontro a seriedade que se dispensaria a um encontro de gente
séria, e quando se vê comentadores solenes interpretarem as palavras do Dr.
Soares como interpretariam as de alguém digno de atenção, é lícito constatar
que a democracia não atravessa um período radioso. Não discuto que o Governo
não seja um paradigma de incompetência. Digo que enquanto a alternativa
reconhecida implicar múltiplas exibições de demência, aliás em nítido
desrespeito pelo Código Penal, isto não vai longe.
De resto, não imagino se o "povo" um dia pegará em armas
e varrerá a tiro ou à paulada os poderosos. Porém, tenho a certeza de que o
"povo" não berra a uma só voz e sem dúvida não pensa pelos cerebelos
do Dr. Soares e respectivo séquito de parasitas: o trágico caos que se seguiria
à hipotética sublevação varreria também a estirpe de poderosos que inflama as
massas por diletantismo ou preservação de regalias. Os Robespierres de trazer
por casa já perderam a cabeça no sentido figurado. Vê-los perdê-la no sentido
literal seria, para os menos piedosos, o único alívio cómico do caos.
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