Disse assim Alberto Gonçalves:
O socialismo
que não ousa dizer o seu nome
O socialismo tem imensas faces. Na Venezuela, por exemplo,
persegue os comerciantes que vendem produtos acima dos preços que os senhores
no poder consideram aceitáveis (esta semana, o Imperador Maduro incitou os
clientes a invadirem as lojas a fim de obter o "reembolso"). Em
Portugal, multa os comerciantes que vendem produtos abaixo dos preços que os
senhores no poder consideram aceitáveis (há tempos, a ministra da Agricultura e
da UDP em exercício assim procedeu).
A vantagem venezuelana é a sinceridade. Lá, o socialismo, às vezes
chamado de "revolução bolivariana", orgulha-se de o ser e é
reconhecido como tal. Aqui é envergonhado e passa inexplicavelmente por
"neoliberalismo". Dito de outra maneira, o nosso querido Governo
disfarça as verdadeiras convicções sob retórica de sinal contrário. É por isso
que quando, há dias, o ministro da Economia defendeu a obrigatoriedade de uma
disciplina escolar dedicada ao "empreendedorismo", a primeira coisa
que apetece é recomendar ao Dr. Pires de Lima e respectivos colegas que a
frequentem.
À semelhança de tantos crimes passionais, o amor do Governo pela
iniciativa privada é de uma intensidade que termina invariavelmente com o
homicídio desta a golpes de faca. Ou de lei: quase em simultâneo às arrebatadas
declarações do Dr. Pires de Lima, um secretário de Estado adjunto do ministro
da Saúde anunciou, muito contentinho, que para o ano será proibido fumar em
todos, todos, todos os espaços "públicos", conceito que no peculiar
"neoliberalismo" indígena inclui os espaços particulares dos
restaurantes, bares e discotecas.
Prometo não voltar a discutir os "perigos" do fumo
passivo e o direito de cada um a arruinar a sua saúde da forma que entender.
Limito-me a notar uma fulminante banalidade, a de que os proprietários dos
estabelecimentos em causa deviam decidir sozinhos aquilo de que a casa gasta -
e os potenciais clientes apreciariam ou não. Desde que não promova actividades
criminosas, género sacrifício de virgens, parece-me natural que o dono de um
restaurante, afinal o sujeito que investiu no dito, possa escolher a comida que
serve, os comensais que atende e os hábitos que tolera. É tão absurdo abolir o
fumo quanto forçar uma casa de pasto minhota a servir chop suey no lugar de
sarrabulho. Por azar, sendo o Governo o que finge não ser e o país o que é,
esse dia também não tardará. E ninguém se manifestará na rua. Em Portugal, a
liberdade, palavra linda, assusta mais do que o enfisema pulmonar.
Em defesa dos trabalhadores
Os trabalhadores que confiam na CGTP para expressar o seu
descontentamento deveriam acompanhar com maior assiduidade a forma como o
descontentamento dos trabalhadores de outras paragens é tratado nos regimes com
que a CGTP simpatiza.
A proeza está longe de ser inédita, mas segundo jornais da Coreia
do Sul a vizinha do norte acabou de fuzilar oitenta infelizes por suspeita de
subversão das regras da casa. E não, os trabalhadores em causa não fizeram
greve, não marcharam aos berros contra o comunismo na Avenida da Liberdade lá
do sítio nem organizaram um protesto contra a remoção de "direitos
adquiridos" - até porque não têm direito nenhum. Os trabalhadores em
causa, que frequentemente ganham um ou dois euros mensais (lá, a classe média
aufere cerca de 20 euros e os empresários ricos a exorbitância de 70 euros),
acabaram assassinados por crimes tão graves quanto a contemplação de programas
televisivos sul-coreanos ou filmes proscritos (essencialmente, todos) e lerem,
ou pelo menos possuírem, um exemplar da Bíblia. Alguns viram-se acusados de
espalhar pornografia, esse palpitante instrumento da decadência ocidental. De
acordo com as fontes citadas, decerto ao serviço do imperialismo americano,
milhares de pessoas foram obrigadas a testemunhar as execuções e os familiares
das vítimas enviados para campos de concentração (ou reeducação, de modo a
poupar os espíritos sensíveis).
Nada disto pretende concluir que os portugueses não se devem
manifestar. Apenas que conviria repararem nas companhias em que o fazem. Se,
por absurdo, os sonhos mais profundos do Sr. Arménio Carlos se realizassem um
dia, para milhões de criaturas a troika haveria de tornar-se uma saudade, e a
austeridade uma lembrança de tempos felizes. E se, numa democracia europeia do
século xxi, é um bocadinho primário usar a Coreia do Norte como termo de
comparação, mais primária é a democracia que torna a comparação legítima.
Casos de miséria
Pelo menos um jornal diário conta a história, presumivelmente
trágica, de um rapaz que paga um euro e tal pelo almoço na cantina da escola
para depois queixar-se da qualidade da comida e, cúmulo dos cúmulos, de o
impedirem de repetir a dose. Os responsáveis da escola negam. O pai do rapaz
garante que o filho tirou fotografias com o telemóvel a comprovar os factos.
Suspeito que nenhuma foto explicaria o resto, a saber: que espécie de refeição
"gourmet" se espera obter a troco de trezentos escudos? Se a refeição
é péssima, porque é que os comensais desejam repeti-la? O que faz com telemóvel
um adolescente de 14 anos, membro de uma família que quer parecer necessitada?
O mistério permanece.
Porém, o mistério não se compara com o da indignação dos juízes
portugueses, os quais, com vasta repercussão na imprensa em geral, se queixam
dos "ataques" ao Tribunal Constitucional, do número de empregos
previstos no novo mapa judiciário e, muito principalmente, dos cortes
salariais. As críticas ao TC, órgão de derivação partidária, deveriam
constituir uma portentosa trivialidade em democracias adultas. As vagas disponíveis
para o cargo são aquelas que, correcta ou erradamente, quem de direito acha
indicadas (e a ministra Paula Teixeira da Cruz até jura que serão mais do que
as actuais). E os lamentos da classe acerca da quebra nos rendimentos são um
insulto a todos os infelizes que ganham misérias ou não ganham nada de nada.
A propósito: se o jornalismo ambiciona a suprema redundância de
mostrar que a crise fomenta apertos e casos dramáticos, o jornalismo que esteja
à vontade. Mas convém limitar os relatos a situações aflitivas de facto, sob
pena de reduzir a aflição a uma anedota e a crise a um pretexto para a rematada
estupidez.
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