No Estadão, por Demétrio Magnoli, via Nivaldo Cordeiro:
A assinatura da deputada Nice Lobão - campeã em faltas na Câmara e
esposa do ministro Edison Lobão, protegido de José Sarney - no projeto
de lei de cotas nas instituições federais de ensino superior e médio é
um desses acasos repletos de significados. Por intermédio de Nice, a
nova elite política petista se abraça às elites tradicionais numa santa
aliança contra o princípio do mérito. Os aliados exibem o projeto como
um reencontro do Brasil consigo mesmo. De um modo perverso, eles têm
razão.
Nunca antes uma democracia aprovou lei similar. Nos EUA as políticas
de preferências raciais jamais se cristalizaram em reservas de cotas
numéricas. Índia e África do Sul reservaram parcelas pequenas das vagas
universitárias a grupos populacionais específicos. O Brasil prepara-se
para excluir 50% das vagas das instituições federais da concorrência
geral, destinando-as a estudantes provenientes de escolas públicas.
O texto votado no Senado, ilustração acabada dos costumes políticos
em voga, concilia pelo método da justaposição as demandas dos mais
diversos "amigos do povo". Metade das vagas reservadas contemplará
jovens oriundos de famílias com renda não superior a 1,5 salário mínimo.
Todas elas, em cada "curso e turno", serão repartidas em subcotas
raciais destinadas a "negros, pardos e indígenas" nas proporções de tais
grupos na população do Estado em que se situa a instituição. Uma
extravagância final abole os exames gerais, determinando que os cotistas
sejam selecionados pelas notas obtidas em suas escolas de origem.
Gueto é o nome do jogo. Só haverá uma espécie viciada de concorrência
entre "iguais": alunos de escolas públicas concorrem entre si, mas não
com alunos de escolas privadas. Jovens miseráveis não concorrem com
jovens pobres. "Pardos" competem entre si, mas não com "brancos" ou
"negros", detentores de suas próprias cotas. Cada um no seu quadrado:
todos têm um lugar ao sol - mas o sol que ilumina uns não é o mesmo que
ilumina os outros. No fim do arco-íris, cada cotista portará o rótulo de
representante de uma minoria oficialmente reconhecida. O "branco" se
sentará ao lado do "negro", do "pardo", do "indígena", do "pobre" e do
"miserável" - e todos, separados, mas iguais, agradecerão a seus
padrinhos políticos pela vaga concedida.
Nice Lobão é apenas um detalhe significativo. O projeto reflete um
consenso de Estado. Nasce no Congresso, tem o apoio da presidente, que
prometeu sancioná-lo, e a bênção prévia do STF, que atirou o princípio
da igualdade dos cidadãos à lixeira das formalidades jurídicas ao
declarar a constitucionalidade das cotas raciais. O Estado brasileiro
desembaraça-se do princípio do mérito alegando que se trata de critério
"elitista". Na verdade, é o avesso disso: a meritocracia difundiu-se no
pensamento ocidental com as Luzes, junto com o princípio da igualdade
perante a lei, na hora do combate aos critérios aristocráticos de
promoção escolar e preenchimento de cargos no serviço público. Naquele
contexto, para suprimir a influência do "sangue azul" na constituição
das burocracias públicas, nasceram os concursos baseados em exames.
O princípio do mérito não produz, magicamente, a igualdade de
oportunidades, mas registra com eficiência as injustiças sociais. Os
vestibulares e o Enem revelam as intoleráveis disparidades de qualidade
entre escolas privadas e públicas. Entretanto, revelam também que em
todos os Estados existem escolas públicas com desempenho similar ao das
melhores escolas particulares. A constatação deveria ser o ponto de
partida para uma revolução no ensino público destinada a equalizar por
cima a qualidade da educação oferecida aos jovens. No lugar disso, a lei
de cotas oculta o fracasso do ensino público, evitando o cotejo entre
escolas públicas e privadas. Os "amigos do povo" asseguram, pela
abolição do mérito, a continuidade do apartheid educacional brasileiro.
O ingresso em massa de cotistas terá impacto devastador nas
universidades federais. Por motivos óbvios, elas estão condenadas a
espelhar o nível médio das escolas públicas que fornecerão 50% de seus
graduandos. Hoje quase todos os reitores das federais funcionam como
meros despachantes do poder de turno. Mesmo assim, eles alertam para os
efeitos do populismo sem freios. O Brasil queima a meta da excelência na
pira de sacrifício dos interesses de curto prazo de sua elite política.
Os "amigos do povo" convertem o ensino público superior em ferramenta
de mistificação ideológica e fabricação de clientelas eleitorais.
No STF, durante o julgamento das cotas raciais, Marco Aurélio Mello
pediu a "generalização" das políticas de cotas. A "lei Lobão" atende ao
apelo do juiz que, como seus pares, fulminou o artigo 208 da
Constituição, no qual está consagrado o princípio do mérito para o
acesso ao ensino superior. Mas a virtual abolição do princípio surtirá
efeitos em cascata na esfera do funcionalismo público, que interessa
crucialmente à elite política. As próximas leis de cotas tratarão de
desmoralizar os concursos públicos nos processos de contratação, nos
diversos níveis de governo.
A meritocracia é o alicerce que sustenta as modernas burocracias
estatais, traçando limites ao aparelhamento político da administração
pública. Escandalosamente, a elite política brasileira reserva para si a
prerrogativa de nomear os ocupantes de centenas de milhares de cargos
de livre provimento, uma fonte inigualável de poder e corrupção. A
ofensiva dos "amigos do povo" contra o princípio do mérito tem a
finalidade indireta, mas estratégica, de perpetuar e estender o controle
dos partidos sobre a administração pública.
O país do patrimonialismo, do clientelismo, dos amigos e dos favores
moderniza sua própria tradição ao se desvencilhar de um efêmero flerte
com o princípio do mérito. Nice Lobão é um retrato fiel da elite
política remodelada pelo lulismo.
* SOCIÓLOGO, É DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP.
E-MAIL: DEMETRIO.MAGNOLI@UOL.COM.BR
1 comentário:
Um post magnífico. Desmascarando o fascismo lulista, como o fascismo petista por extenso. Não é de estranhar pois que os bandidões de fora estimassem tanto o senvergonha Lula. Gente canalha, gente suja e sem dignidade.
Conheço o ambiente e alguns destes bandidos até se dizem anarquistas, como um "editor" moralmente pervertido. Para melhor sujarem as ideias libertárias e passarem a perna aos demais caras. Uma corja, morou?
Lido Vilaça
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