Via O Insurgente:
Os pais de Juan Moreno nasceram na Andaluzia e emigraram para a
Alemanha. Hoje ele é jornalista da Der Spiegel e este Verão resolveu
percorrer de novo as estradas que a sua família fazia quando ia de
férias à aldeia natal. O resultado é uma reportagem arrepiante que diz
mais sobre o actual estado da Europa do que a entrevista de Mario Monti à
mesma revista alemã. Moreno encontrou de tudo, desde a melhor
auto-estrada em que jamais circulou – mas com poucos carros – a um
aeroporto que nunca chegou a funcionar. Cruzou-se com gente que nunca se
endividou para além do razoável, e com gente que viverá com dívidas
colossais o resto da vida. Encontrou-se com quem ocupara um pequeno
apartamento em desespero e com trabalhadores rurais que nunca se
deslumbraram com o boom económico. Tudo para no fim concluir, com bom
senso, que não basta “introduzir uma moeda forte, construir dezenas de
aeroportos, linhas férreas e campos de golfe, e ter um Audi A6 em cada
garagem” para alcançar a prosperidade.
O que é interessante e diferente na
reportagem de Juan Moreno para a Spiegel é que ele combina um imenso
carinho pelo seu povo com a percepção de que a euforia dos anos do boom
foi uma doença partilhada por todos – políticos, banqueiros e cidadãos.
“A bolha imobiliária, o dinheiro barato e a euforia seduziram os
espanhóis, não porque sejam maus ou preguiçosos, mas porque são
simplesmente seres humanos”, escreveu a concluir. Seja lá como for,
aprenderam que a prosperidade “à europeia” não está ao virar da esquina e
não há outra forma de a alcançar senão com trabalho, persistência e
paciência.
Para muitos cidadãos do Sul da Europa, não é fácil aceitar esta
realidade depois de tantos anos de ilusão. Trocar o Audi ou o BMW por um
utilitário, vender a casa de fim-de-semana, fazer férias mais
económicas, desistir da assinatura de um canal Premium de televisão,
tudo surge como uma intolerável austeridade. Um caminhar para trás. Em
Portugal, como tem escrito repetidamente Vasco Pulido Valente, “o que
nos rói é o “atraso”, a “distância” que aumenta e nos separa da
“civilização”". Ou seja, da Europa rica do Norte. O mesmo que “rói” os
andaluzes entrevistados por Moreno. É um mal antigo que mesmo políticos
com vocação de prestidigitadores não fizeram desaparecer, antes
agravaram.
O intervalo de Agosto é boa altura para ganharmos distância e
abandonarmos as ilusões. O dinheiro barato que alimentou o nosso nível
de vida nos últimos dez, quinze anos não desapareceu por causa da
ganância dos banqueiros, da maldade dos alemães ou da fuga para
offshores. Desapareceu porque a crise financeira de há cinco anos acabou
com a ilusão do dinheiro eterno, do dinheiro que havia sempre, do
dinheiro que se inventava através de esquemas audaciosos para alimentar
bolhas imobiliárias (e não só) um pouco por toda a parte. E também para
alimentar a voracidade de políticos empenhados em deixar obra e
conseguir a reeleição.
Quando essa ilusão explodiu há exactamente cinco anos, com a
declaração de crise num primeiro banco, o Northern Rock, o mundo
percebeu que tinha mudado. Ou começou a perceber. E não tinha mudado
apenas por causa da que viria a ser conhecida como a “crise do
subprime”. Aquilo a que assistíamos era à mais colossal transferência de
poder económico desde os processos de descolonização. Para quem já se
tenha esquecido, basta recordar que há pouco mais de dez anos uma das
bandeiras da esquerda mundial era a do perdão da dívida ao “Terceiro
Mundo”, e hoje uma das suas reivindicações é que seja o “Primeiro Mundo”
a não pagar as suas dívidas, boa parte delas a países que antes víamos
como devedores crónicos. Há dez anos, ouvíamos críticas à globalização
porque empobrecia os países do Sul; hoje ouvimos críticas à globalização
porque está a abalar o estado de bem-estar dos países do Norte.
O mundo está, de certa forma, de pernas para o ar. Antes o Norte
emprestava ao Sul para este lhe comprar bens de equipamento. Hoje o Sul
empresta ao Norte para este lhe comprar bens de consumo. O “milagre
económico” do Norte transferiu-se para o Sul. Só na última década (dados
do Banco Mundial), a riqueza por habitante da China aumentou 138%, a da
Índia 76% e a do Brasil 28%. Em Portugal, desceu um por cento. Na zona
euro, tal como nos Estados Unidos, cresceu apenas seis por cento. Mas na
Alemanha foi de 12% e na Suécia (país que não aderiu ao euro) o salto
foi de 17%. Entretanto, se há dez anos a economia americana era sete
vezes maior do que a chinesa, em 2011 já só era cerca de três vezes
maior. Durante décadas, o estado de bem-estar europeu alimentou-se de
crescimento económico e de uma demografia favorável. Hoje temos uma
demografia desfavorável e o crescimento económico está como está – e
está assim desde antes da austeridade, não nos iludamos. O desequilíbrio
tornou-se inevitável e a única forma que os governos tiveram para lhe
responder foi contraírem dívidas e mais dívidas. Foi esse ciclo de
endividamento sem fim que terminou em Agosto de 2007. Hoje sabemos que
não voltará a haver dinheiro fácil – resta saber se voltará a haver
crescimento.
Na Europa, e não só em Portugal, as perspectivas não são animadoras. O
nosso sistema educativo, sobretudo nos escalões de elite, está
claramente a perder para os Estados Unidos. O mesmo se passa no domínio
da investigação científica (basta ver como a indústria farmacêutica
migrou do Velho para o Novo Continente). Não temos a mesma capacidade de
inovação. Nem de empreendedorismo. Nem de integrar imigrantes.
Tudo isto já seria mau, mas há ainda outros factores que agravam a
situação. Um deles é o medo da mudança e de tudo o que é novo. A Europa é
um continente assustado onde impera o “princípio da precaução”. Os
organismos geneticamente modificados estão a revolucionar a agricultura
mundial, mas não a europeia. Os Estados Unidos estão a passar por uma
revolução energética que lhes possibilitará a autonomia face às
petromonarquias do Golfo através da exploração do gás que existe
dissolvido em certas rochas (shale gas), mas na Europa o tema é quase
tabu por razões legais e regulatórias. Recentemente, um alto responsável
da União Europeia confessou-me mesmo que o melhor era não legislar já
por receio de que as leis viessem a sair demasiado restritivas. A Europa
passa também a vida a falar de inovação e a dificultar a vida a todos
os produtos inovadores.
É por tudo isso que desconfio que a austeridade que tanto criticamos
tenha vindo para ficar. Durante muitos milénios, quase não houve
qualquer progresso nos níveis de vida das populações. Depois, de
repente, deu-se a explosão propiciada pela revolução industrial. Nos 150
anos que terminaram na viragem do milénio, o rendimento per capita na
Europa Ocidental foi multiplicado por dez. Desde essa altura estagnou. E
estagnar, em tempos de envelhecimento da população, é sinónimo de
diminuir.
O que hoje vemos passar-se na Europa, sobretudo na Europa do Sul, é
uma retracção assustada que só agravará a decadência relativa. Faz
lembrar a retracção da China no século XIV, quando resolveu proteger-se
do exterior para preservar a sua riqueza e civilização, então as maiores
do Mundo. Sabemos o que lhe aconteceu a seguir.
O que mudou no mundo e torna a vida difícil à Europa não tem nada a
ver com a Alemanha (apesar de tudo, um dos países que melhor souberam
reagir) ou com a falta de lideranças europeias. É maior, mais complexo e
tem raízes mais antigas. E se esta decadência relativa nos condena a
uma austeridade eterna, ela não é fruto de nenhum novo Reich milenar.
Quem quiser continuar a ignorar tudo isto continuará a viver na mesma
ilusão de que tudo se resolve com o dinheiro que há sempre, a mesma que
atirou para o desespero actual alguns dos conterrâneos que Juan Moreno
reencontrou no seu regresso à Andaluzia natal.
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