O macaco e a
essência
Tempos atrás vi na TV uma cena que me
esclareceu para sempre sobre as misérias e as grandezas da actividade pública –
política, religiosa, militar, desportiva, judicial. Com um famoso condutor de
massas, um desses seres excepcionais que movem multidões?
Nem por sombras!
O protagonista que me elucidou foi um humilde
vigarista de bairro.
Melhor dizendo: modesto, insinuante. Com uma
forma de estar na vida que depressa conquistou – pois participava num talk show posto a correr por uma esbelta
serigaita das nossas noites televisivas – a assistência que o ouvia, quase
fascinada.
O inspector da polícia que em tempos o
prendera, também presente no programa, bem se fartou de prevenir os
espectadores de que era mesmo aquela a técnica de que o indivíduo se servia
para perpetrar os seus golpes. E que propiciava que um simples mortal, depois
de o ouvir, lhe entregasse tudo o que ele queria. “Já vos conquistou a todos!” - dizia o pobre chui (polícia) em desespero de causa – “ Digam lá se agora não entravam no negócio que ele vos propusesse…”.
E o simpático vigarista, com um sorriso fraternal no rosto aberto e franco, saiu
do cenário coroado por uma enorme salva de palmas.
Da série "Monstrinhos lusitanos"
Eu e milhares como eu, decerto, acolhemos
com proveito a inapreciável lição que ali nos fora dada.
Lembrei-me disto e também de uma notícia
referente ao ex-ministro Alain Joupé, que tinha tempos atrás sido condenado a
18 meses de prisão, com pena suspensa (é sempre pena suspensa a que estes
ilustres cidadãos apanham), para além de 10 anos de impedimento de se
candidatar a qualquer cargo – por ter cavilosamente manipulado uns dinheiritos
chegados aos seus bolsos de forma esquisita.
Ora o Supremo Tribunal, instado a
pronunciar-se, reduziu para catorze meses a pena aplicada, além de considerar
que lhe bastava um aninho de travessia do deserto. E o nosso homem agora soma e
segue…
Em 1999, num encontro sobre Literatura
Policial numa cidade francesa, defendi a tese de que “o sistema judicial é o cancro que está a destruir a Democracia”, a
qual foi bem acolhida pela assistência que me quis ouvir. E disse ainda que o
sistema judicial politicamente correcto, eticamente corrompido até à medula,
não o era devido a magistrados receberem dinheiros desta ou daquela entidade
mas sim por no seu coração e no seu cérebro – com as naturais excepções -
aceitarem o jogo de que os poderosos são seus irmãos de cena e portanto
credores de cuidados especiais, aliás generosamente dispensados.
Mediante o estatuto granjeado pelas suas
qualificações pessoais – companheirismo de formatura, de família (pessoal ou
política), lábia poderosa e poderoso desembaraço, preparação e cultura – o
homem público cai no goto do vulgus pecus
e daí em diante praticamente tudo lhe é consentido. Passou-se com Joupé como se
tem passado com outros simpáticos safardanas europeus e mundiais, que quais sempre-em-pés logo se erguem e seguem
triunfantes ou pelo menos perdoados mal os atira a terra uma vigarice ou um
acto assacanado. Ou o simples desprezo que acalentam pelo povo, sobre o qual
tripudiam com o beneplácito dum universo societário podre e complacente para com
esses irmãos naturais, que aliás lhe pagam com juros deixando os seus próceres
bem ancorados no seu específico conforto corporativo.
E tudo isto é mais eficaz – e muito mais
inquietante - que a simples vigarice dum tratantezito de bairro…
in
As
vozes ausentes
1 comentário:
É isso mesmo!
Uma das coisas mais espantosas do cérebro humano é a facilidade com que ele pode ser manipulado; mais espantoso do que isso só a convicção das pessoas de que não são manipuláveis.
Um amigo dizia-me que um vigarista é o tipo mais simpático do mundo, doutra forma não conseguiria vigarizar ninguém; que a mulher, advogada, tinha de vez em quando clientes vigaristas, que ela aceitava defender mesmo sabendo que, no fim, acabaria vigarizada porque o vigarista vigariza mesmo o advogado que o defende.
Aqui está uma coisa que a ciência devia dedicar-se a estudar; mas, claro, tal estudo é valiosíssimo... porque permite a quem o faz passar a vigarizar as outras pessoas, logo...
Ao menos devíamos aprender a reconhecer um vigarista; confesso que na tomada de posse deste governo um arrepio me percorreu a espinha e todas as minhas luzes de alarme contra vigaristas se acenderam
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