segunda-feira, 27 de agosto de 2012

TEXTOS DIVERSOS (4)




O macaco e a essência


   Tempos atrás vi na TV uma cena que me esclareceu para sempre sobre as misérias e as grandezas da actividade pública – política, religiosa, militar, desportiva, judicial. Com um famoso condutor de massas, um desses seres excepcionais que movem multidões? 

  Nem por sombras!

  O protagonista que me elucidou foi um humilde vigarista de bairro.

  Melhor dizendo: modesto, insinuante. Com uma forma de estar na vida que depressa conquistou – pois participava num talk show posto a correr por uma esbelta serigaita das nossas noites televisivas – a assistência que o ouvia, quase fascinada.

  O inspector da polícia que em tempos o prendera, também presente no programa, bem se fartou de prevenir os espectadores de que era mesmo aquela a técnica de que o indivíduo se servia para perpetrar os seus golpes. E que propiciava que um simples mortal, depois de o ouvir, lhe entregasse tudo o que ele queria. “Já vos conquistou a todos!” - dizia o pobre chui (polícia) em desespero de causa – “ Digam lá se agora não entravam no negócio que ele vos propusesse…”. E o simpático vigarista, com um sorriso fraternal no rosto aberto e franco, saiu do cenário coroado por uma enorme salva de palmas.



Da série "Monstrinhos lusitanos"


   Eu e milhares como eu, decerto, acolhemos com proveito a inapreciável lição que ali nos fora dada.

  Lembrei-me disto e também de uma notícia referente ao ex-ministro Alain Joupé, que tinha tempos atrás sido condenado a 18 meses de prisão, com pena suspensa (é sempre pena suspensa a que estes ilustres cidadãos apanham), para além de 10 anos de impedimento de se candidatar a qualquer cargo – por ter cavilosamente manipulado uns dinheiritos chegados aos seus bolsos de forma esquisita.

  Ora o Supremo Tribunal, instado a pronunciar-se, reduziu para catorze meses a pena aplicada, além de considerar que lhe bastava um aninho de travessia do deserto. E o nosso homem agora soma e segue…

  Em 1999, num encontro sobre Literatura Policial numa cidade francesa, defendi a tese de que “o sistema judicial é o cancro que está a destruir a Democracia”, a qual foi bem acolhida pela assistência que me quis ouvir. E disse ainda que o sistema judicial politicamente correcto, eticamente corrompido até à medula, não o era devido a magistrados receberem dinheiros desta ou daquela entidade mas sim por no seu coração e no seu cérebro – com as naturais excepções - aceitarem o jogo de que os poderosos são seus irmãos de cena e portanto credores de cuidados especiais, aliás generosamente dispensados.

   Mediante o estatuto granjeado pelas suas qualificações pessoais – companheirismo de formatura, de família (pessoal ou política), lábia poderosa e poderoso desembaraço, preparação e cultura – o homem público cai no goto do vulgus pecus e daí em diante praticamente tudo lhe é consentido. Passou-se com Joupé como se tem passado com outros simpáticos safardanas europeus e mundiais, que quais sempre-em-pés logo se erguem e seguem triunfantes ou pelo menos perdoados mal os atira a terra uma vigarice ou um acto assacanado. Ou o simples desprezo que acalentam pelo povo, sobre o qual tripudiam com o beneplácito dum universo societário podre e complacente para com esses irmãos naturais, que aliás lhe pagam com juros deixando os seus próceres bem ancorados no seu específico conforto corporativo.

   E tudo isto é mais eficaz – e muito mais inquietante - que a simples vigarice dum tratantezito de bairro…

  in As vozes ausentes

1 comentário:

alf disse...

É isso mesmo!
Uma das coisas mais espantosas do cérebro humano é a facilidade com que ele pode ser manipulado; mais espantoso do que isso só a convicção das pessoas de que não são manipuláveis.

Um amigo dizia-me que um vigarista é o tipo mais simpático do mundo, doutra forma não conseguiria vigarizar ninguém; que a mulher, advogada, tinha de vez em quando clientes vigaristas, que ela aceitava defender mesmo sabendo que, no fim, acabaria vigarizada porque o vigarista vigariza mesmo o advogado que o defende.
Aqui está uma coisa que a ciência devia dedicar-se a estudar; mas, claro, tal estudo é valiosíssimo... porque permite a quem o faz passar a vigarizar as outras pessoas, logo...

Ao menos devíamos aprender a reconhecer um vigarista; confesso que na tomada de posse deste governo um arrepio me percorreu a espinha e todas as minhas luzes de alarme contra vigaristas se acenderam