Caros confrades e amigos/as
Não, não venho falar-vos de
absurdo e de desespero - apesar de tudo o que se passa e, temo, irá passando no
país, na nação, na pátria.
Como exemplo mínimo refiro-vos
apenas, num segundo, isto que pude constatar pessoalmente: durante bastante
tempo as leis que tinham a ver com a circulação automóvel foram deixadas ao
deus dará. Com o típico desleixo das administrações e o típico desprezo para
com o cidadão luso (?) as Finanças deixavam tudo no vago - e o cidadão desprevenido
no vago ficava...
Pois há meia-dúzia de dias, agora
que o Estado está com
as calças na mão e tenta, desesperadamente (digo eu com
boa-vontade e carinho, pois se calhar o desespero é mas é nosso!) arranjar
dinheiro dê lá por onde der, lembraram-se que haveria carros já na sucata ou
mesmo já inexistentes, a quem chamar à pedra.
Vai
daí, mihares largos de pessoas começaram a receber da repartição de assuntos
tributários, como agora se chamam aqueles serviços, cartas para que pagassem os
selos de circulação desses antigos veículos já a fazer tijolo.
E embora muitos, creio que se
calhar todos ou quase todos, tenham apresentado ou estejam a apresentar
declarações em como esses carros não circulam (porque não existem) há vários
anos, vão ter que pagar selos - em
paralelo aos que pagaram pelos carros que de facto utilizaram/utilizam a partir do falecimento dos
outros.
Ou seja e como se diria
ironicamente, com uma magoada ironia: nos
tempos de Salazar havia mortos que votavam,
agora há carros fantasmas que circulam ainda que estejam há
anos no pó dos cemitérios de popós, mortinhos da silva!
Mas vamos ao que de facto importa,
que isto foi apenas detalhe em tempos de crise (que nós povinho não provocámos,
mas que teremos de pagar porque estamos cheios
de pecado, para usar esta expressão
para-religiosa...de alguns lúcidos comentadores!
Quero eu dizer sim que vos
remeto, em anexo, um texto analítico - que irá sair em diversos órgãos de
comunicação, interactivos e não interactivos, no país e no estrangeiro - em que
me debruço sobre um excepcional acervo de foto-colagens dum dos mais
representativos autores brasileiros de hoje (como poeta e ensaísta, como
tradutor e interventivo viajeiro em toda a América, sendo uma verdadeira placa-rotativa para
confrades, para vozes da criação artística, para acções de criatividade em
transversal postura): Floriano Martins, de que também vos dou em
iluminação 4 dessas Máscaras a que o acervo se reporta e que foram o leit-motiv duma Exposição recente no país irmão.
Bom fim-de-semana, tanto quanto possível.
SOBRE MÁSCARAS de Floriano Martins
Floriano Martins, O intervalo da sílaba
1.
As máscaras como
representação geral
Quando
se trata com máscaras, procura-se ir para além do lugar comum: máscara como
disfarce, como alegoria, como simulação teatral? “Bem te conheço, ó máscara!” é aliás locução conhecida, inscrita num
cenário ou de festa ou de período
carnavalesco mas que contudo não esgota o significado que a máscara pode ser ou
inevitavelmente é em circunstâncias específicas. E muitas vezes tal asserção
transtorna os imaginários por esta razão muito simples: a máscara é uma
projecção de nós nos outros, havendo todo um “background” histórico que nos impele numa determinada direcção,
pois de acordo com especialistas a máscara começou por ser encenação ritual no
encalço da imitação do rosto dos “deuses”
ou do que como tal se tomava. E depois, com o correr do tempo, esvaziado que
fôra esse sentido primevo, passou a ser uma simulação de cariz sacerdotal,
dentro dum sagrado já perdido enquanto visão
imanente ou dependente dum real que se contemplara.
Ultimamente, neste nosso tempo dessacralizado
e filho dum inconsciente colectivo ou dum subconsciente forjado pelas
publi-imagens, ou imagens de substituição,
multiplicaram-se as fantasias como por exemplo as provenientes da cultura de massas
ou cultura popular assim chamada. Por
exemplo as fantasias à Batman que, nesse
caso, são a face normalizada e em
versão cinéfila dum dos mais antigos mitos do Homem revisitado pelo marketing hollywoodesco: o vingador que
sai das sombras mas é portador da luz, o anti-minotauro que, por razões
diversas e muito próprias (megalomania positiva,
adesão a monomanias justiceiras animais, fervor pelo insólito) resolve colocar
os seus poderes de máscara poderosa ao serviço da comunidade ferida pelas
prepotências diversas. Que é como quem diz: uma espécie de activista imerso em penumbra planejada que, em vez de transportar
consigo soluções sociais permitidas, políticas, de cidadania legitimada, traz
para o mundo da razão a força dos seus músculos e o engenho da sua perspicácia num
universo societário e conceptual paralelo mas que se torna benéfico e
reconfortado (reconfortante?). E a quem a comunidade quotidiana, sem máscara ou
com a máscara transparente dos direitos frente aos díscolos, aplaude com ardor,
enlevada pelas façanhas desse transformado
cuja missão é transformar/modificar sem
se dar a conhecer no seu contexto de personalidade civil.
Floriano Martins, A garrafa esfomeada
Nesta perspectiva particular a máscara
propõe pois o indizível, o impossível aos
que não dispõem desse artefacto que pressupõe poderes mais vastos e eficientes.
Sem a sua máscara, no caso vertente, o homem-morcego não passa dum argentário
vulgar, algo excêntrico e snob mas
apenas dono de um lirismo um pouco ingénuo que o aproxima do diletantismo de
filho-família. Mas assim que assume a máscara o personagem muda literalmente de
figura…
Sendo uma clara face de substituição, mesmo
de transfiguração como ficou sugerido, a máscara é igualmente uma projecção dos
nossos continentes submersos, das partes demasiado sugestivas e reveladoras do duplo que se acoita nos nossos
compartimentos mais recônditos e que através dela é acordado para as actuações que doutra forma não teriam
ensejo de se manifestar. Através da máscara que nos vela e nos esconde,
paradoxalmente mostramos então a parte oculta da nossa Lua pessoal. Ao mesmo
tempo que nos disfarça, a máscara revela/desvela:
o que somos intimamente ou, dizendo doutro modo, o que sem máscara nunca
patentearíamos à realidade circundante e colectiva.
E sendo o teatro (ou o theatrum mundi), como é, a assunção plena da máscara, natural se
torna que todos sejamos um pouco actores, ora num plano de recusa ora no da
aceitação de uma certa estratégia de saber
viver numa sociedade em que as mais graves encenações se apresentam contemporaneamente
de forma “aberta” mas num universo em que o grosso da população praticamente perdeu
a privacidade na polis em que os
donos da realidade fingem que tudo continua a existir normalmente. (Quem não
sabe que, hoje por hoje, o reino dos que mandam no quotidiano é uma completa mascarada?).
Nesta conformidade, o grande e real perigo
que nos espreita é que a máscara se nos cole à cara, fazendo com que o
imaginário encenado, para uma hipótese mínima de defesa, passe para o lado de
lá do palco.
Que é como quem diz: para o lado de cá da
existência em sociedade…
Floriano Martins, A colheita de acasos
2.
As máscaras como
representação do artista
Neste impressionante acervo de quarenta e
cinco máscaras proposto por Floriano Martins o que de imediato salta aos olhos
é a sua modificação expressiva. Não
são máscaras, digamos, para usar mas
para contemplar, para ver, na verdade para que o destinatário
– que é o público em geral, se assim me exprimo – se encontre frente ao
mistério que elas sugerem. Que elas são – constituindo matéria ora de maravilhamento
ora de espanto, ora de inquietação (ora mesmo de medo) frente ao inusitado da
transfiguração.
E tal facto é sublinhado pelos títulos que as
certificam, que obviamente as definem tanto no mundo da expressividade como no
do humor negro, da surpresa e da eventual estranheza que ante elas se sintam.
Máscaras de teatro? Não o afirmarei. Máscaras sobretudo de arte criada por
intermédio duma vivência em que o experimentador joga com um certa tradição mas
principalmente com os contrastes mais íntimos de quem as pode observar, num
jogo incessante (incessado?) de sugestões e de procuras propiciado pelas novas
tecnologias de que dispõe hoje em dia um autor plástico capacitado.
Pela
visão do conjunto percebe-se, sente-se, que a máscara com que estamos a contas é todo um engendro patenteado em diferentes recorrências, em diversas
visualizações, em diversas montagens calibradas por uma ideia base: elas trazem
já em si corpos, transportam subjacentes transmutações carnais, são já o
elemento humano que em si-mesmo se transfigurou, se projecta então num universo
multifuncional e objectivo que só neste mundo ficcionado cobra a representatividade
que lhe é própria fazendo jus à frase canónica de que a Arte, afinal, não é uma
verdade mas uma mentira que torna possível a Realidade. Ou seja, por palavras
operativas eficazes: que, transtornando a “verdade” que é a mentira global societária
em que subsistimos (em que conseguimos ir subsistindo?) atinge e consagra uma
realidade mais funda, ou apenas realmente
verdadeira, para além do Bem e do Mal que os controladores sociais
apresentam como inevitáveis. E que não são mais que impostura num contexto por
eles criado e mantido e onde tentam
que não tenha lugar a imaginação
criadora, pedra philosofal da Liberdade.
E nestas
máscaras compósitas integrando uma intenção,
como em toda a verdadeira obra artística, não se detecta uma mística nem mesmo
uma metafísica – inúteis e complicativas, alibis para encandear ingénuos ou os que
por razões específicas vivem afastados (pois os afastaram) do conhecimento
verdadeiro e da sabedoria possível. Estão ali, frente aos nossos olhos, na sua
naturalidade e na sua nudez real (e consequentemente surreal, que é a realidade em todas as direcções), constituindo
corpo concreto ainda que solúvel numa globalidade que por estes meios se desamarra.
Aqui, nelas, “on ne peut évidemment s’atendre à une autre jugement sur ce symbol”,
como referia Guillaume d’Auvergne citado por Justin van Lennep, “senão àquele que era comum aos alquimistas e
aos sábios de antanho”.
Floriano Martins, A garrafa escorregadia
E é este o justíssimo intuito, a meu ver,
deste autor que me habituei a estimar
– entendendo nesta palavra o que de salubre e de fundamental existe numa
criação visando a permanência duma proposta transfiguradora e, para tudo dizer,
intemporal.
Casa do Atalaião de Portalegre, Setembro de 2012
Nicolau
Saião
(Os
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