sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Um cheirinho de mistério*

À memória de Dinis Machado, leitor e escritor de “polars”
Ao povo americano, que soube criar e manter uma democracia
AMÉRICA DE LUZES E SOMBRAS Para nós, amantes da Literatura Policial, a América tem sido o país das mil-e-uma-noites: nela brotaram flores de mistério e de maravilhoso, de mágoa e de tragédia através dos dias e dos anos, plantadas por escritores e visionários como Edgar Alan Poe, H.P.Lovecraft, Dashiel Hammett, August Derleth, Raymond Chandler, Charles Williams, William Faulkner, Melville Davison Post e tantos outros.

A América atravessámo-la nós com os vagabundos de Frank Gruber, com os “road runners” de W.R.Burnett. Contemplámos as vertentes do Ohio e os arranha-céus de Nova Iorque e Chicago até às montanhas do Colorado e aos desertos do Arizona e do Novo México com Bill Ballinger, Hammond Hines, Burt Spicer e Jim Thompson. Excursionámos pelas vilórias e pelas pequenas cidades do Midlle West com Ellery Queen e Ray Bradbury, perdêmo-nos nas alfurjas dos portos e nos “fumoirs” de Chinatown e da Bowery com Craig Rice, Thomas Burke e um certo chinês filósofo de bigode a quem chamavam Charlie Chan e que estava ali de passagem vindo da sua ensolarada Honolulu.

Numa certa noite de neve, sob a lua da Carolina do Norte, ouvimos tiros na estrada deserta por onde minutos antes haviam passado Bruce Robinson e Jonatham Latimer, que nos esclareceram o enredo.

Amámos e padecemos em quartos e em caves, de mãos atadas atrás das costas pelos “gangsters” de serviço. E fomos salvos “in extremis”, com o fato rasgado e o nariz deitado abaixo, por um tal Mickey Spillane e pelo seu amigo dilecto Mike Hammer. A iluminação brotou-nos da mente num momento de sagacidade perpetrada por um fulano que atendia pelo nome de Philip Marlowe. E foi homem a homem que derrotámos o mafioso crápula pseudo político que nos envinagrava o quotidiano, devido aos sábios ensinamentos dum tipo chamado Continental Op, em escaramuça devastadora numa viela do Bronx.

De manhãzinha, com o nosso elegante fato cinzento de discreta risca azulada, entrámos num palacete onde um ancião atormentado pela nostalgia nos pediu auxílio para encontrar o genro e fomos catrapiscados por uma “mulher fatal” que nos lançou na senda da aventura. De outra vez, acompanhando um sofisticado cavalheiro conhecedor de arte assíria e etrusca que nos disse chamar-se Philo Vance, tivemos a dita de nos introduzirmos nos ricos salões de Nova Inglaterra e de Manhattan e, em troca, de juntura com um tal Humphrey Bogart, levámo-lo até aos confins do Colorado, até à High Sierra, e aprendêmos a beber uns valentes “bourbons” sem ficarmos caídos de caixão à cova.

Com um jurista desembaraçado que nos disse apelidar-se Perry Mason, jornadeámos pelas artérias de Los Angeles e pelos desertos da Califórnia em busca de assassinos nefandos.

Ouvimos muitas vezes o bramir dos ventos, sentimos na pele o negrume das noites e a chicotada da chuva inclemente, enquanto – dissimulados a uma esquina, com a gola da clássica gabardina levantada – esperávamos a chegada dum companheiro empregado na mesma agência que se chamava Caution, Lemmy Caution e que era pai dum tal James Bond.

Tudo isto sentímos nessa América onde havia e há problemas e conflitos não resolvidos, mas onde também sempre houve esperança e alegria devido a umas coisinhas simples, mas espantosamente importantes, que dão pelo nome de liberdade de palavra, de reunião, de pensamento e da sua divulgação não obrigada a mote, como sucede hoje em muitos sítios supostamente civilizados.

E, agora que se tornou moda ou característica pôr-se sistematicamente em equação essa América (toda a América?!) como símbolo do mal e da desgraça - principalmente para se sentir melhor a nostalgia dum Leste implodido e de novos bárbaros a quem se santifica como mártires - lembremo-nos de todos os mosaicos intemporais que ela criou através de membros humildes ou repletos de cultura viva que, hoje por hoje e amanhã por amanhã, se calhar só serão epigrafados e em altas vozes se, de novo, tiverem de dar a vida como em 39-45 para continuarmos a desfrutar de um pouco de futuro possível.

(da Comunicação aos Encontros de Tours)

ns

(Mural em cerâmica de João Garção)

2 comentários:

José Gonsalo disse...

No Brasil, Caetano veloso teve a coragem de desafiar o quadradismo da esquerda brasileira, fazendo, há pouco tempo, um disco de homenagem à grande música produzida nos USA no século XX, que mudou as perspectivas da música popular em todo o mundo.

Anónimo disse...

Que belo texto, Nicolau! Sempre fui fã da literatura de mistério e acho que foi de toda a justiça relembrar que os EUA não são na verdade o que os da esquerda caviar, da esquerda febra de porco e os da fiambre rosado querem fazer crer. Beijinho da Bia Lança