No Blasfemias:
Hoje, no Público, defendi que mais depressa desculpo a inépcia fatal de
um governante do que a irresponsabilidade incendiária dos demagogos:
“Não se iludam: vamos ficar cada vez mais pobres.
Escrevi esta frase em Maio de 2009. Era o título de um texto sobre
alguns problemas estruturais da nossa economia. Repito: Maio de 2009.
Ainda Sócrates era primeiro-ministro, ainda Manuela Ferreira Leite
liderava o PSD. E ainda havia economistas a assinar manifestos a pedir
mais despesa pública. Foi também antes de os portugueses terem dado a
vitória eleitoral a quem prometia mais Scut, mais PPP, mais Magalhães e
até um “cheque bebé”.
Hoje sabemos que estamos a ficar mais pobres e não sabemos quando isso
vai acabar, se é que vai acabar. Hoje alguns acham que essa pobreza
deriva das intenções malévolas de políticos desapiedados, mas
enganam-se: o mal já cá estava quando ninguém sequer ouvira falar de
alguns desses políticos. Esse texto baseava-se num livro de Vítor Bento –
Perceber a Crise para Encontrar o Caminho – onde se previa o que nos
tem vindo a acontecer, do crescimento da dívida externa ao
estrangulamento do crédito ou à assumida degradação de muitas prestações
sociais, em especial das pensões de reforma.
Hoje estou ainda mais pessimista. Começo a duvidar que existam condições
para Portugal superar as principais debilidades e até que a Europa nos
possa salvar de nós mesmos. Ainda esta quarta-feira, ao escutar um
programa da SIC Notícias, dei com essa figura sensata e ponderada que é
Silva Lopes a recordar, com tristeza e desalento, que desde a revolução
liberal, há quase dois séculos, nunca Portugal conseguiu equilibrar as
suas contas em democracia – só o fez em ditadura. Horas depois li, na
capa do Jornal de Notícias, que uma sondagem revelava que 87% dos
inquiridos estavam desiludidos com a democracia. Isto na altura em que o
“pai” da nossa democracia anda por aí a advogar a queda de um governo
com apoio maioritário na Assembleia e a sua substituição por misteriosas
sumidades que não identifica.
Estar mais pessimista não era inevitável. Num país que estivesse mais
habituado à democracia e com uma elite mais sensata, as manifestações de
sábado teriam sido recebidas como uma enorme demonstração de maturidade
do povo português e incorporadas com naturalidade no processo de
decisão política. Não teriam sido cavalgadas de forma oportunista por um
dos líderes da coligação de Governo. Não teriam também levado a que
supostos “senadores” vissem nelas uma substituição dos mecanismos da
democracia representativa. Declarações como as que ouvimos esta semana
seriam impensáveis em Inglaterra ou na Suécia, mesmo em França ou em
Espanha, países também habituados a manifestações gigantescas. À
civilidade dos manifestantes responderam alguns dos nossos políticos com
uma total incivilidade.
É em boa parte esta incivilidade que nos colocou à beira de uma crise
política – a maior das imagináveis tragédias – que alimenta o meu
pessimismo. Essa incivilidade e a demagogia reinante, que parece ter
tomado conta de todos os espaços informativos. Ainda esta semana Vítor
Bento notou, num debate com empresários, que “dizem que há alternativas à
austeridade”, mas ainda ninguém disse quais eram as “alternativas
concretas e exequíveis”. Isso sucede, acrescentou eu, porque não há
alternativas boas à austeridade. Todas são más.
Basta pensar no seguinte: em 2009 (ano de eleições) e 2010, o défice
público foi de cerca de 10% do PIB. Ou seja, uns 16 mil milhões de
euros. Quase o dobro de todo o IRS liquidado nesses anos. Oito vezes o
corte de dois subsídios à função pública e aos pensionistas. Dez vezes o
que este ano se está a cortar na Saúde e na Educação. Para trazer esse
défice para zero era necessário cortar mais de um quinto de toda a
despesa pública, pensões incluídas. É por isso que não é sério – não é
sério hoje como não era sério no passado – sugerir que o problema se
resolve com as PPP, as fundações ou os carros dos ministros. Tudo isso é
importante e, sobretudo, é simbólico, mas vai para a cova de um dente.
Os cortes necessários são muito maiores e muito mais dolorosos. Omiti-lo
é demagogia.
Hoje sabemos como era frágil o consenso dos “80%” que apoiavam o
memorando da troika. Frágil porque o PS na oposição não tem feito outra
coisa senão roer a corda. Frágil porque a inépcia do Governo levou à sua
ruptura com um país a dizer “não” sem saber ao que há-de dizer “sim”.
Estamos como estivemos muitas vezes na nossa anterior história
democrática, como recordou João César das Neves no Diário de Notícias:
“O problema estava nos cidadãos honestos, nos trabalhadores patriotas,
que queriam mais do que havia. Se somássemos tudo o que as pessoas
comuns achavam ter direito, e calculássemos o total daquilo que os
contribuintes consideravam justo pagar, os valores não equilibravam.
Mesmo eliminando todos os desperdícios, abusos e roubos, o buraco
permanecia. Por isso é que só havia medidas más.”
Essa anterior experiência democrática acabou em ditadura, pura e dura.
Os nossos excessos actuais conduziram-nos a outro tipo de restrição das
liberdades, pois vivemos sob a tutela dos credores. Mas pode ser ainda
pior. Podemos perder as outras liberdades que ainda temos. E ficarmos
mais pobres mais depressa. Porque, de facto, existe alternativa à actual
austeridade.
Portugal pode continuar pelo actual caminho, com todas as pedras que ele
tem, na esperança de equilibrar os gastos do Estado e os gastos dos
cidadãos, e assim recuperar a liberdade de fazer o orçamento sem ter uma
troika a ameaçar não enviar o próximo cheque. É o caminho do “custe o
que custar” para chegar aos objectivos definidos.
Mas também pode escolher outros caminhos. Um é o da ilusão de que haverá
alguém a pagar as nossas facturas, e que por isso podemos adiar as
medidas dolorosas, que podemos “empurrar o problema com a barriga”. É
mais ou menos o caminho que seguimos nos últimos dez anos com os
resultados que estão à vista de todos. Outro caminho é deixar de pagar
as dívidas, mesmo que lhe chamemos outro nome. Já outros o fizeram, mas
os cortes foram então mais brutais e incontrolados. E também podemos
sair do euro. Se calhar até devemos sair do euro. Não se falará mais de
TSU ou de desvalorização fiscal, porque a desvalorização do novo escudo
não será de 7%, talvez seja de 40%. Já não será preciso pedir ao BCE
para imprimir mais dinheiro, o nosso Banco de Portugal fá-lo-á
freneticamente. Escolhas não nos faltam.
Por vezes interrogo-me se não seria melhor preparar já este último
cenário, por muito apocalíptico que ele nos surja. É que se o Governo e o
primeiro-ministro têm a maior das responsabilidades na forma como
perderam o país, choca-me muito mais a irresponsabilidade do CDS e do
PS, ambos lestos a cavalgar a onda do descontentamento e ambos omissos
sobre as suas próprias responsabilidades (do CDS na TSU, do PS no estado
a que levou o país) e sobre as suas alternativas. Helena Garrido teve
razão quando ontem escreveu, no Jornal de Negócios, que, “para Paulo
Portas e António José Seguro, é mais importante garantir votos de curto
prazo do que defender o interesse de Portugal e respeitar os sacrifícios
que os portugueses já fizeram”. Assim como me choca o silêncio
incendiário do Presidente da República, que depois de múltiplas
intervenções desastradas deixou que se instalasse a percepção de que
fala por interpostos “cavaquistas”. Fez até pior: convocou Vítor Gaspar
para o Conselho de Estado, um gesto inédito na nossa história
constitucional que é uma facada nas costas do primeiro-ministro.
Portugal chegou onde chegou porque teve os líderes que teve. Não apenas
os dos últimos anos, mas os das últimas décadas. E também por causa dos
partidos que tem. O meu pessimismo não reside nas pessoas que se
sacrificam e se revoltam, pois isso é corajoso, é natural e é saudável.
Deriva sim dos que as enganaram e enganam, vendendo eternas ilusões.
Isto ainda acaba bem pior do que já está.
1 comentário:
Um texto amargo mas que toca no ponto. O mal de Portugal, com efeito, tem a ver com o total cinismo das "nossas" elites políticas, a 90% vigaristas e ávidas, que emanam das "elites sociais" que há séculos roubam o povinho e tripudiam sobre ele. Daí que tão cobardola e hipócrita seja o senhor que está presidente da ratice pública como o inclassificável soares, que vem agora "defecar sentenças" senis quando foi um dos coveiros morais da nação, transformando o país numa charlotada de apaniguados.
Claro, caro Graça, que isto vai acabar mal - para eles, para o povo sempre foi uma desgraça daí que este já nada tenha a perder. E eles sabem-no agora, que os olhos se lhes abriram por estarem com o medo nas canelas, pois o grosso do povo não está nas ruas por ideologia nem por egoísmo "midlle class" mas porque já não pode mais. Cito aqui um político autarca que, a uma observação minha, "mas vocês não têm pejo do que mais tarde se dirá de vós?", me respondeu repugnantemente: "Ora...Os que vierem depois serão iguais a nós...!". Enganou-se. E vão pagá-lo, alguns com a língua de três palmos!
Vicente Páscoa
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