Primeiro, o Governo deixa escapar a notícia do saque às pensões das viúvas. Depois, fingindo-se zangado, o Governo faz o anúncio oficial: o saque limita-se a três por cento das beneficiárias. Por fim, desvenda-se o Orçamento e instala-se a confusão acerca da percentagem do saque. Entretanto, cem por cento dos socialistas outrora inquilinos de Belém imitaram uma cantilena em voga e apelaram à insurgência das massas.
Evidentemente, o apelo não foi explícito. Jorge Sampaio, no estilo
críptico que desenvolve há sessenta anos, ofendeu-se sobretudo com o
desrespeito do sagrado Tribunal Constitucional e pediu "um assomo
patriótico", o que quer que isso seja. Mário Soares falou dos
"delinquentes" no poder e confessou temer que "o ódio do povo se
torne violento", formulação que numa cabeça matreira e pouco sofisticada
significa que espera com impaciência a sublevação das massas.
Não pretendo defender as aventuras dos Drs. Coelho e Portas, de
facto próximas do grotesco. Porém, é esquisito que alguns dos nossos mais
celebrados democratas tenham uma visão peculiar da democracia, maravilhosa
quando aclama os nossos, detestável quando premeia os restantes. Se não estou
em erro, o Governo em funções resultou de uma escolha dos cidadãos, chamados a
votar em eleições livres e justas. O Governo é mau? É, sim senhor, embora por
não cortar onde devia e não pelos motivos que o Dr. Soares e o Dr. Sampaio
sugerem. O Governo é ilegítimo? Não é, não senhor, excepto na opinião de
criaturas como o Dr. Soares e o Dr. Sampaio, para quem a legitimidade advém da
coincidência entre os titulares dos cargos e as suas simpatias pessoais.
Simular preocupação com a "pátria" ou o "povo" para tentar
impor as simpatias é estrategicamente compreensível. Mas é também uma trapaça.
Não me lembro de ouvir o Dr. Sampaio reclamar "assomos"
enquanto o Governo anterior inscrevia a pátria na sopa dos pobres europeia. E
sou capaz de jurar que, nesses gloriosos tempos, nunca o Dr. Soares avisou para
os riscos da plebe indignada. A verdade é que ambas as alminhas citadas
representam com brio o ramo do pensamento filosófico lusitano segundo o qual a
"direita" (ou o que em Portugal passa por direita) moralmente não
merece mandar. Se o povo real e bruto decidiu assim, há que imaginar um povo
iluminado capaz de decidir assado e correr com a "direita" à
bordoada.
Por enquanto, trata-se apenas da imaginação de dois antigos
presidentes da República, felizmente para nós e, no fundo, felizmente para
eles: nem sempre a fúria popular pendura uma comenda no pescoço dos respectivos
instigadores. Às vezes, limita-se a uma corda.
Uma amiga que trabalha no ramo falou-me recentemente e entre risos
do sofrimento de inúmeros pais no momento de deixar o rebento no infantário. Ao
que parece, a coisa não se distingue da despedida dos soldados que partiam para
o Ultramar, com lágrimas e tudo. Uma das poucas diferenças é que os combatentes
em África não estavam "monitorizados" (julgo ser o termo usado) por
um sistema de vigilância que informasse os familiares das suas actividades
diárias. Os rebentos começam a estar.
Vi no "telejornal". O sistema chama-se My Child, já foi
adoptado em Portugal por dezenas de creches e similares e consiste numa
"rede social" (também é o termo usado) que permite aos paizinhos
acompanharem no computador, através de fotografias e vídeos, o fascinante
quotidiano dos filhinhos. O filhinho come flocos ao pequeno-almoço? Os
paizinhos vêem. O filhinho desenha um rabisco? Os paizinhos observam. O
filhinho dorme a sesta? Os paizinhos contemplam. O filhinho bolsa? Os paizinhos
admiram, ao longo do dia e com provável prejuízo do trabalho pelo qual alguém
absurdamente lhes paga.
Não cabem aqui algumas considerações sobre as maleitas sociais e
psíquicas de que semelhante toleima é sintoma: a solidão e o vazio de tantas
vidas, a infantilidade dos padrões de comportamento, o alheamento face às
responsabilidades, a obsessão maníaca elevada a norma. Limito-me a lembrar que
o desmesurado zelo dedicado ao presente das crianças garante-lhes um futuro no
mínimo sombrio. E isso, se as circunstâncias não dessem vontade de rir, é que
mereceria copioso pranto.
Um modelo
Mário Soares, que diligentemente tenta bater o recorde de
afirmações esdrúxulas na mesma semana, estranhou que Cavaco Silva não fosse
julgado pelo "caso" BPN. Com a paciência que não dedica aos
jornalistas e populares que o insultam, o Prof. Cavaco remeteu o Dr. Soares
para os esclarecimentos que já prestara sobre a matéria e que, sendo
verdadeiros, o colocam na posição de simples depositante do banco em questão.
Segundo o Expresso, o Dr. Soares terá enviado um discreto pedido de desculpas
ao chefe da Casa Civil, confessando que não dera pelos ditos esclarecimentos.
Mas essa não é a questão.
A questão é a radiante facilidade com que o Presidente da
República está sujeito ao tipo de ataques que ninguém ousa lançar aos
ex-presidentes. Veja-se o mero exemplo da Fundação Mário Soares, que em 2014
receberá 210 mil euros do erário público, a juntar aos cerca de milhão e meio
que já recebeu entre 2008 e 2013. Não espantaria que, em tempos de crise
extremada, um populista pedisse o julgamento do Dr. Soares e dos benfeitores do
Dr. Soares por aquilo que qualquer cidadão menos cauteloso no verbo poderia
classificar de roubo, embora um roubo legalíssimo. O espantoso é que esse
populista não surgiu. O respeitinho que o Dr. Soares suscita é directamente
proporcional ao desrespeito que o próprio dedica ao mundo em seu redor, desde o
Chefe de Estado ao simples contribuinte. Em países normais, semelhante fenómeno
deveria servir de alerta. Aqui, serve de modelo.
A provocação e a serenidade
Para quem abomina a propriedade privada e venera a estatal, a CGTP
possui uma noção peculiar de ambas. Ao longo de um fascinante debate que durou
semanas, a central sindical exigiu dispor de duas pontes em Lisboa e no Porto
como se ambas pertencessem à espantosa multidão que presumivelmente viria
gritar contra o Governo, a austeridade, a troika e etc. Contas feitas, o
solitário motivo de espanto foi a pequenez da empreitada.
A cada dia, passam pela Ponte 25 de Abril cerca de 150 mil carros,
talvez 300 mil criaturas. Proibidos de desfilar a pé, os fiéis do sindicalismo
conseguiram que umas dúzias de autocarros percorressem o tabuleiro devagarinho.
À saída, em Alcântara, as notícias da "concentração" falam em
"milhares de pessoas", maneira genérica e simpática de descrever o
que, à hora a que escrevo, tresanda a fracasso.
No Porto, onde as previsões arriscavam 30 mil manifestantes e não
houve a divertida desculpa da chuva, "fracasso" tresanda a eufemismo:
a TSF contou "centenas" de indignados. A "capacidade de mobilização"
da CGTP só impressiona por comparação com a do microscópico Movimento Que Se
Lixe a Troika, que normalmente mobiliza com dificuldade a quantidade de
elementos de uma equipa de râguebi (sem suplentes). Ou por comparação com os
poderes místicos que comentadores de diversa índole lhe atribuem.
A única proeza que a CGTP cometeu no sábado prende-se com o facto
de as autoridades terem por sua causa encerrado ao trânsito uma série de ruas
nas duas maiores cidades do país, afinal subjugando o lendário interesse comum
à ambição imediata do extraordinário Arménio Carlos, leia-se atrapalhar a vida
alheia.
Sem
querer, e referindo-se ao FMI, o Sr. Arménio afirmou ao DN o essencial sobre a
relação do sindicalismo com a sociedade: "Aqui mandamos nós." É o que
parece, por muito que apeteça perguntar porquê. Ainda a propósito do FMI, o Sr.
Arménio prosseguiu: "Respondemos à provocação com serenidade." E nós,
incluindo os milhões que por óptimas ou péssimas razões já não aguentam o
Governo mas não se iludem com prepotentes e reaccionários no pior sentido,
pelos vistos também.
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