... de Alberto Gonçalves, no Diário de Notícias, que achei por bem ilustrar com obras de Escher:
Imagine-se uma minoria cujos membros foram historicamente
perseguidos a pretexto das suas preferências sexuais. Imagine-se que à
discriminação activa se acrescentava com frequência as purgas, as prisões
arbitrárias, os julgamentos sumários, a tortura e, não raras vezes, a morte.
Imagine-se que, pela força da lei e do terror, os indivíduos em causa
abandonaram os hábitos que os distinguiam ou passaram a praticá-los em segredo.
Imagine-se que, assim subjugada ou dissimulada, essa minoria apesar de tudo
resiste na América dos nossos dias. Imagine-se que uma parte da América dos
nossos dias acha natural que, além de oprimir por via legislativa os
comportamentos da minoria, se enxovalhe em público os comportamentos de que a
dita minoria abdicou ou simula abdicar. Imagine-se que a parte da América em
questão é, teórica e ironicamente, a mais progressista.
Imagine-se agora que nada disto depende da imaginação, que a
minoria referida são os mórmons e que, graças à candidatura presidencial de
Mitt Romney, gozar com a seita é preconceito indispensável aos activistas
contra o preconceito. Recentemente, coube à comediante Wanda Sykes, conhecida
pela série "Curb Your Enthusiasm" e pela absoluta falta de graça,
parodiar a poligamia que Romney, ao que se sabe, nunca praticou. A sra. Sykes,
preta e homossexual, achincalha as características e costumes que não possui,
mas desconfio que não gostaria de ver as suas características e costumes
achincalhados por outrem. A discriminação está apenas nos olhos de quem a vê -
e de quem vota em Barack Obama, claro, os únicos habilitados a distinguir os
estigmas pérfidos dos estigmas engraçados.
É também claro que a sra. Dykes, perdão, Sykes não passa de um
mero exemplo. Quando não satirizam George W. Bush, o anterior presidente,
incontáveis vedetas de Hollywood passaram a divertir-se com um presidente
eventual. No presidente de facto é poucos se atrevem a tocar, sob pena de
exílio nas franjas do sistema ou o puro desemprego, os castigos reservados
pelos guardiães da tolerância àqueles que não toleram. Se a indústria do
espectáculo é um sintoma desta América "racista", o sr. Obama,
funcionário público simpático e talvez perigoso, é o seu símbolo maior. É
discutível que Romney mereça chegar à Casa Branca. Por isto e por aquilo, é
recomendável que o sr. Obama a deixe.
Em nome da "igualdade",
o Tribunal Constitucional vetou a supressão dos subsídios de férias e Natal dos
funcionários públicos (ainda que não tenha vetado, em nome do mesmo princípio,
a média salarial do sector). Confrontado com isto, Pedro Passos Coelho percebeu
num ápice a oportunidade de aplicar um imposto aos subsídios de quem trabalha no
"privado". Valeu-nos, momentaneamente, a "troika": o chefe
de missão local do FMI, por exemplo, explicou que as medidas
"compensatórias" devem vir do lado da despesa e não da receita. Mas
nem a "troika" nos vale, já que o Governo, como todos os governos,
decidiu então reduzir a única despesa que não cessa de encolher: a nossa. Se
não fica bem inventar novos impostos, espremem-se os velhos.
O truque, aliás habitual, chega
tipicamente disfarçado de "combate à evasão fiscal". Desde tempos
imemoriais, ou há cerca de uma década, que os governos da pátria combatem essa
entidade maligna, sob o argumento de que se os contribuintes em falta pagarem o
que devem, os contribuintes ordeiros pagarão menos. Você paga menos? Eu, que
mantenho as minhas relações com o fisco num rigor próximo do masoquismo, não
pago menos. Pelo contrário. Muito pelo contrário.
Em artigo no "Jornal de
Negócios", Camilo Lourenço lembra o óbvio: quanto mais o Estado arrecada,
mais gasta. Por diferentes palavras, a "justiça fiscal" não passa de
propaganda, por definição destinada a enfeitar o abuso que constitui o modus
operandi das quadrilhas, perdão, dos senhores que nos tutelam. É por isso que
embora em teoria ofenda ver os representantes da hotelaria e restauração
prometerem revoltar-se contra a anunciada obrigatoriedade da
"facturinha", na prática a atitude consola.
No contexto actual, não existe nenhuma razão que legitime a
transferência, até ao último cêntimo possível, do dinheiro ganho pelo
proprietário de um café para um Estado calão e trapaceiro. Mesmo que o primeiro
esbanje irresponsavelmente o que lhe pertence, o segundo arranjará sempre
maneira de esbanjar pior o que retira aos outros. Chegámos assim ao ponto em
que um Estado indigente é capaz de ser a única hipótese para termos um país
remediado, na economia e na moral. Por azar, a hipótese é remota.
Curioso. Meio mundo tem uma opinião sobre os privilégios
académicos de Miguel Relvas, mas quase ninguém menciona o fundamento desses
privilégios. E nem é necessário grande capacidade dedutiva. O "dr."
Relvas é maçon, variante Grande Loja do Oriente Lusitano. O presidente da
Lusófona também é maçon, e também membro da mesma "loja". Em 2006,
ano da matrícula do "dr." Relvas naquela universidade, ambos já eram
"irmãos" na sociedade que se desejaria secreta.
Percebe-se o secretismo: fica bem
a um homem adulto o pudor em revelar que, nas horas livres, gosta de vestir
aventais e cair na brincadeira. Mas perceber não é sinónimo de aceitar. O
"caso" Relvas, explorado até à exaustão devido à antipatia natural
que o protagonista suscita e, palpita-me, à respectiva área ideológica, é
apenas um fragmento de um "caso" muito mais vasto chamado maçonaria.
Não pretendo dizer que a
maçonaria é tema ausente do noticiário caseiro. De vez em quando, o bando obtém
honras de manchete e debate graças a um pequeno escândalo, conforme há meia
dúzia de meses aconteceu com a divulgação de segredos de Estado numa história
que envolvia o entretanto lendário Jorge Silva Carvalho, ex-director do SIED,
sócio da "loja" Mozart e - o mundo é pequeno - correspondente por sms
do "dr." Relvas.
O problema é que, à semelhança de
inúmeras desgraças pátrias, a maçonaria ocasionalmente irrompe em força nos
"media", fomenta discussões apaixonadas, produz gritos indignados e,
após uns dias em que se jura que nada voltará ao que era, tudo permanece
intacto. E "tudo" não é força de expressão: as personagens, os
cargos, as trocas, os favores, os interesses, as ilicitudes, as trafulhices,
etc. Quem acha que o país está óptimo como está deve dar os parabéns à
maçonaria, que em larga medida os merece. Quem acha o contrário, deve dar à
maçonaria outra coisa qualquer. Talvez uma ordem de despejo.
Não
sou apreciador de proibições. Porém, não faltam por aí entusiastas. Do sal ao
açúcar, do tabaco às emissões de dióxido de carbono ataca-se diária e
galhardamente as chagas sociais sem nunca beliscar a maior delas: porque é que
não se erradica a maçonaria? Numa época em que a crise encerra tantas lojas
inocentes, algumas não deixariam saudades. No mínimo, tomava-se à letra a
inclinação da seita pela privacidade e impedia-se aos seus devotos o desempenho
de funções públicas. Alegadamente, os maçons não querem ser conhecidos.
Comprovadamente, nós só ganhamos em desconhecê-los.