terça-feira, 3 de julho de 2012

Três estórias de Vincenzo Quillici


(imagem recolhida aqui)


Ando, tenho andado, por fora do lar doce lar num périplo que amavelmente me arrastou da Zafra até ao norte lusitano trespassando fronteiras, bordejando as Hurdes e atravessando o vale do Jerte, repleto de cerejeiras em fruto. Em frutos já em plena colheita.

Não me interpretem mal... Gosto muito de flores, mormente as que esplendem como imensos reques nos cerejais a que já Tchekov teatralmente emprestou prestígio e garbo. Mas... não sei... o Jerte, o maravilhoso Jerte, emociona-me mais se as flores esplendorosas brancas singulares se transfiguraram nos pequenos abundantes frutos de um rubro peculiar, emocionante... e saboroso.




(imagem recolhida aqui)

Mas adiante.

Agora que vim a estes rincões interactivos, tirando-me de meus cuidados e com a cordialidade fraternal de sempre mando-vos estas três "cerejas" de colheita francesa, que decerto vos deixarão no "palato" um sabor gratificante.

Que tenham uma excelente semana...e hasta la vista, folks!





                 QUILLICI OU A DOÇURA SUFOCADA
         




(ilustração de Nicolau Saião)

   Conheci Vincenzo Quillici em Junho de 99, aquando da minha estadia em Paris e em Bruxelas para lançar na Livraria Lusófona, frente à Sorbonne (e, a seguir, numa galeria da capital belga que tinha o ambiente dos contos de Jean Ray) o meu livro de poemas “Flauta de Pan”.

    Chamou-me a atenção aquele homem que se mantivera ligeiramente à parte da assistência luso-francesa enquanto o apresentador, depois um confrade e, finalmente, eu mesmo debitávamos com o melhor esmero as nossas orações de sapiência...Usava um chapéu de abas largas e uma gravata fina à Gary Cooper, serve dizer: um daqueles objectos ornamentais tão usuais nos filmes dos anos 50 com que os “dandys” pistoleiros criavam o seu pessoal cenário de elegância.

    Mais tarde, soube que não o fazia para se singularizar, mas apenas porque amava a fantasia percorrida por um senso-de-humor inteiramente partilhado com os amigos e as outras pessoas em geral.

    Disse-me que viera ali para me contactar, pois amigos comuns lhe tinham dado a notícia do evento e a localização da funçanata.

    Finalizámos o encontro, já tarde na noite, em frente de umas canecas de cerveja irlandesa, perto da Rua do Rivoli, acompanhadas de filetes de vitela. Quillici comia com apetite e com uma espécie de concentração a que eu chamaria artística: por duas vezes, ao que recordo, solicitou ao empregado que deixasse a espuma da preciosa bebida um pouco acima das bordas, pois ficava mais sugestiva...mais apetitosa...

    Ao despedir-se, pôs-me nas mãos uma pequena brochura contendo seis estorinhas que classificarei de surpreendentes e apelativas, em vista do seu específico humor negro tranquilo e sedutor, mas que eu também diria percorridas por uma evidente melancolia.

   Desse livrinho, que depois ampliaria principalmente por incitamento de Maria Darmyn, com quem entretanto contraíu matrimónio, extraí e traduzi estes três relatos que aqui vos deixo, com agradecimentos ao seu autor.



Paul Cézanne, Natureza morta com um prato de cerejas, 1885-87


                                                                                                          
O PARENTE

    A senhora Beaumont, Mélanie Beaumont de sua graça, todos os sábados de manhã se deslocava a ouvir missa em Saint Sulpice. Gostava da igrejinha, do jardinzito próximo e do mercado mesmo ao pé onde frequentemente se abastecia para a semana. Comprava endívias, laranjas de todo o ano, rabanetes de que era particularmente gulosa, peixe e alguma carne. Flores da época, se era tempo delas umas cerejas, rabanadas e bolo-dôce.    A senhora Beaumont, que era uma alma cândida, usava no tempo frio um casaco castanho claro a condizer com o seu cabelo cuidadosamente pintado – embirrava com as brancas e perdoava-se esta faceirice – e um lenço de cabeça às pintinhas discretas que lhe ficava muito bem. A senhora Ricot, a vendedeira de verduras, via-se mesmo que lhe tinha alguma inveja.

   Naquele sábado a senhora Beaumont sentia uma pequenina pontada no peito. As coisas, desde as árvores aos automóveis, parece que estavam assim como que enevoadas, fluidas e até julgara distinguir um buçozinho sob o nariz da menina Sabine, que era loira e roliça, com os seus braços clarinhos mexendo-se daqui para ali a pesar o peixe e a fazer os trocos.

   Foi quando abandonava o mercadinho e ia já virar para a rua Lambert, direitinha a casa, que o homem se lhe dirigiu, polidamente ainda que com ar resoluto. A princípio não percebeu, julgara ter ouvido mal. Decerto um pouco intimidado ante o seu ar de incompreensão, o cavalheiro repetiu contudo:” Senhora Mélanie Beaumont, não é assim? Sou seu filho.”

   A princípio ficou como que paralisada. Depois, segurando-se nas pernas, olhou o moço bem de frente e começou ao mesmo tempo a reflectir. É que lhe achava um ar familiar. Ferdinand, o gascão de bigode fino e olhos indagadores? O Egobert, que era caixeiro e gostava da sua pinga? O Maubart, que apesar de aborrecido era bom sujeito? Não era capaz, digamos, de enquadrar a cara do moço numa recordação determinada.

    Mas sorriu, já com a ideia fisgada de lhe fazer depois um interrogatório em regra. “E o senhor seu pai…como vai passando?” perguntou com natural delicadeza embora um pouco indecisa.

   Enquanto o rapaz lhe respondia, esclarecendo-a que ele falecera pouco tempo atrás, a senhora Beaumont ia dizendo de si para si que já teria algo para contar à noite, no serão habitual com a vizinha Malverne.



FELICIDADE             


   Em certo dia, o senhor Jacquemard pôs-se a pensar. Tinha entrado na sala depois de vir da rua, atravessado o vestíbulo sem reparar em nada e, ao acender a luz, viu os tigres. Olhou de novo. Um estava ao pé da mesa, com um ar de expectativa e o outro, maiorzinho, acomodado no sofá.

  O senhor Jacquemard, depois de ter tirado o maço azul de “Gauloises” da estante ao pé da televisão, apagou a luz e fechou a porta mansamente. Desceu as escadas, fez um gesto feio nas costas da porteira e saiu para o frio de Março. O senhor André, o ronha reformado do Estado, bastante mais velho que Jacquemard e perito em electricidades, estava como sempre na sua mesa por detrás da montra do cafézinho da esquina e olhou-o suspeitosamente. O senhor Jacquemard foi andando, pensando como um homem a quem tivesse saído a lotaria sem estar à espera. No seu peito algo ronronava com ternura. Jacquemard começou a recordar-se da sua infância no Poitu: os regatos correndo entre bosques de avelaneiras, o fumo sobre os telhados das casas da quinta, o tilintar dos chocalhos das vacas da courela de mestre Paupel, o seu boné de abas quando era inverno. “Jacquemard, pensou de si para si, há coisas na vida que não podemos explicar. Tomemo-las como ofertas do mundo misterioso. Não esperar mais do que a nossa conta...isso é que é saudável!”.

  Em vista disso foi andando para a tasca onde costumava fazer as suas refeições desde que a mulher falecera, resolvido a destroçar uns belos linguados salteados com batatinhas. Um dos seus pratos favoritos, ainda que não fôsse um comilão.

  Ia cheio de paz, mas um bocado intrigado. Disse com os seus botões:” Logo, quando me for deitar, espero bem que também lá estejam uns avestruzes”. O senhor Jacquemard sempre fora, e isto desde pequeno, um homem de espírito aberto, curioso até mais não. Lá na loja, por causa disso, os colegas até lhe atiravam às vezes, de raspão, piadas que lhe entravam por um ouvido e saíam pelo outro.




O FLIBUSTEIRO

   Foi um pouco antes do jantar, depois de vir do escritório, que o Basile teve a certeza de que era cornudo.

    Era uma segunda-feira. Basile – Basile Cambon, como o grande homem de Estado – saía sempre depois de todos os empregados se despacharem. A menina Capitoline, a dactilógrafa e recepcionista, dissera-lhe como sempre com os seus olhinhos de carneiro mal-morto: “Quer que feche, senhor Basile?”. E ele, como sempre, respondera: “Não, deixe estar. Vá andando que eu depois fecho tudo”. Toda a gente, desde o Rimet, o estarola que também fazia as vezes de caixeiro-viajante quando calhava, até à madame Sidonie, que a Casa herdara da anterior gerência, sabia que ela estava apaixonada por Basile, mas ele só se servia disso para lhe atirar para cima do lombo uns leves trabalhitos inadiáveis. Também toda a gente sabia que o patrãozinho Cambon, sucessor do velho Ignace, gostava muito da esposa, a dona Renate filha dos Blondine das ourivesarias. Nem constava que ele se desalinhasse até quando ia, o que aliás depois do casório se tornara muito raro, aos serões das Folie Bergères.

   Às vezes até se davam ao trabalho de falar no casal perfeito que eram Basile e Renate.

  Comeu a refeição quase em silêncio. De vez em quando, entremeado na escassa conversa, um olhar saltava em direcção à face da esposa, que com os lábios vermelhinhos e os cabelos arruivados aguentava muito bem uma segunda e até uma terceira mirada. E o peitinho de rola até lhe arfava, ela que era dada a fagueirices como Basile muito bem sabia.

   Aí por volta da sobremesa, Basile percebeu quem era o destruidor do seu lar: o Patrice, evidentemente, o tal que nas festas de aniversário, de Carnaval e de antigos alunos do liceu tinha o hábito de pôr um monóculo e de imitar o Maurice Chevalier e o Coluche. Um tunante, é claro, mas sabe-se como as senhoras românticas se pelam por tal género de energúmenos.

  Ainda tentou dizer para si mesmo que ninguém iria reparar, que tal coisa era na cidade o pão-nosso de cada dia, que muitos dos seus conhecidos também participavam de tal estatística. Mas nada o consolava. Sentira assim como uma cabeçada no plexo solar e, quando passara a Renate a tacinha da compota, até as mãos lhe tremiam.

  Com a classe herdada de seu pai, um homem honrado dos pés à cabeça, fez que não reparava na evidência da traição. Mas o coração estalava-lhe de comoção camuflada.

  Foi para o escritório sem dar sequer uma palavra à esposa, que aliás nem se deu conta do gesto: pairava é claro noutros universos e o nariz reluzia-lhe sem embaraços.

  Passou as mãos pelos seus velhos livros, seus companheiros de aventura. Do armário tirou os calções de pano grosso, o casacão de alamares, o chapeirão e o sabre. Ajustou, depois de bem enfarpelado, o par de pistolões em cruz no cinturão largo de couro com a grande fivela de prata. O papagaio estava, como sempre, no poleiro da cozinha: foi só tirá-lo de lá e colocá-lo sobre o ombro.

   Estava pronto. Desceu ao quintal, o quintal grande e arborizado que a mãe Cambon tanto ornamentara e melhorara. Acenou para o seu imediato, com a larga mão aberta, o sinal de zarpar. E desta vez é que já não voltaria.

   Assim como assim, afinal, no fundo nunca gostara muito de Paris.
                                                                                                                
                      




    Poeta e contista de ascendência transalpina nascido em Aubagne em 1967. Fez parte do brilhante círculo de jovens autores que agregou, para além doutros, os poetas Marcel Delpach e Jules Morot (já publicados entre nós) e a musicista Maria Darmyn. Professor agregado num estabelecimento de ensino na Gardanne (Provença), deu a lume poemas avulsos e “Recits du parc”, pequenas histórias do quotidiano onde brilha uma crueldade terna e desenvolta (in AGULHA e TRIPLOV).                                                                      

Sem comentários: