(imagem recolhida aqui)
Ando, tenho
andado, por fora do lar doce lar num périplo que amavelmente me arrastou da
Zafra até ao norte lusitano trespassando fronteiras, bordejando as Hurdes e
atravessando o vale do Jerte, repleto de cerejeiras em fruto. Em frutos já em
plena colheita.
Não me
interpretem mal... Gosto muito de flores, mormente as que esplendem como imensos
reques nos cerejais a que já Tchekov teatralmente emprestou prestígio e garbo.
Mas... não sei... o Jerte, o maravilhoso Jerte, emociona-me mais se as flores
esplendorosas brancas singulares se transfiguraram nos pequenos abundantes
frutos de um rubro peculiar, emocionante... e saboroso.
Mas adiante.
Agora que
vim a estes rincões interactivos, tirando-me de meus cuidados e com a
cordialidade fraternal de sempre mando-vos estas três "cerejas" de
colheita francesa, que decerto vos deixarão no "palato" um sabor
gratificante.
Que tenham
uma excelente semana...e hasta la vista, folks!
QUILLICI OU A DOÇURA SUFOCADA
Conheci
Vincenzo Quillici em Junho de 99, aquando da minha estadia em Paris e em
Bruxelas para lançar na Livraria Lusófona, frente à Sorbonne (e, a seguir, numa
galeria da capital belga que tinha o ambiente dos contos de Jean Ray) o meu
livro de poemas “Flauta de Pan”.
Chamou-me a atenção aquele homem
que se mantivera ligeiramente à parte da assistência luso-francesa enquanto o
apresentador, depois um confrade e, finalmente, eu mesmo debitávamos com o
melhor esmero as nossas orações de sapiência...Usava um chapéu de abas largas e
uma gravata fina à Gary Cooper, serve dizer: um daqueles objectos ornamentais
tão usuais nos filmes dos anos 50 com que os “dandys” pistoleiros criavam o seu
pessoal cenário de elegância.
Mais tarde, soube que não o
fazia para se singularizar, mas apenas porque amava a fantasia percorrida por
um senso-de-humor inteiramente partilhado com os amigos e as outras pessoas em
geral.
Disse-me que viera ali para me
contactar, pois amigos comuns lhe tinham dado a notícia do evento e a
localização da funçanata.
Finalizámos o encontro, já tarde na noite, em
frente de umas canecas de cerveja irlandesa, perto da Rua do Rivoli, acompanhadas
de filetes de vitela. Quillici comia com apetite e com uma espécie de
concentração a que eu chamaria artística: por duas vezes, ao que recordo,
solicitou ao empregado que deixasse a espuma da preciosa bebida um pouco acima
das bordas, pois ficava mais sugestiva...mais apetitosa...
Ao despedir-se, pôs-me nas mãos
uma pequena brochura contendo seis estorinhas que classificarei de
surpreendentes e apelativas, em vista do seu específico humor negro tranquilo e
sedutor, mas que eu também diria percorridas por uma evidente melancolia.
Desse livrinho, que depois
ampliaria principalmente por incitamento de Maria Darmyn, com quem entretanto
contraíu matrimónio, extraí e traduzi estes três relatos que aqui vos deixo,
com agradecimentos ao seu autor.
O
PARENTE
A senhora Beaumont, Mélanie Beaumont de sua
graça, todos os sábados de manhã se deslocava a ouvir missa em Saint Sulpice.
Gostava da igrejinha, do jardinzito próximo e do mercado mesmo ao pé onde
frequentemente se abastecia para a semana. Comprava endívias, laranjas de todo
o ano, rabanetes de que era particularmente gulosa, peixe e alguma carne.
Flores da época, se era tempo delas umas cerejas, rabanadas e bolo-dôce. A senhora Beaumont, que era uma alma
cândida, usava no tempo frio um casaco castanho claro a condizer com o seu
cabelo cuidadosamente pintado – embirrava com as brancas e perdoava-se esta
faceirice – e um lenço de cabeça às pintinhas discretas que lhe ficava muito
bem. A senhora Ricot, a vendedeira de verduras, via-se mesmo que lhe tinha
alguma inveja.
Naquele sábado a senhora Beaumont sentia uma pequenina pontada no peito.
As coisas, desde as árvores aos automóveis, parece que estavam assim como que
enevoadas, fluidas e até julgara distinguir um buçozinho sob o nariz da menina
Sabine, que era loira e roliça, com os seus braços clarinhos mexendo-se daqui
para ali a pesar o peixe e a fazer os trocos.
Foi quando abandonava o mercadinho e ia já virar para a rua Lambert,
direitinha a casa, que o homem se lhe dirigiu, polidamente ainda que com ar
resoluto. A princípio não percebeu, julgara ter ouvido mal. Decerto um pouco
intimidado ante o seu ar de incompreensão, o cavalheiro repetiu contudo:” Senhora Mélanie Beaumont, não é assim? Sou
seu filho.”
A princípio ficou como que paralisada. Depois, segurando-se nas pernas,
olhou o moço bem de frente e começou ao mesmo tempo a reflectir. É que lhe
achava um ar familiar. Ferdinand, o gascão de bigode fino e olhos indagadores?
O Egobert, que era caixeiro e gostava da sua pinga? O Maubart, que apesar de
aborrecido era bom sujeito? Não era capaz, digamos, de enquadrar a cara do moço
numa recordação determinada.
Mas sorriu, já com a ideia fisgada de lhe
fazer depois um interrogatório em regra. “E
o senhor seu pai…como vai passando?” perguntou com natural delicadeza
embora um pouco indecisa.
Enquanto o rapaz lhe respondia,
esclarecendo-a que ele falecera pouco tempo atrás, a senhora Beaumont ia
dizendo de si para si que já teria algo para contar à noite, no serão habitual
com a vizinha Malverne.
FELICIDADE
Em certo dia, o senhor Jacquemard pôs-se a pensar. Tinha entrado na sala
depois de vir da rua, atravessado o vestíbulo sem reparar em nada e, ao acender
a luz, viu os tigres. Olhou de novo. Um estava ao pé da mesa, com um ar de
expectativa e o outro, maiorzinho, acomodado no sofá.
O senhor Jacquemard, depois de ter tirado o maço azul de “Gauloises”
da estante ao pé da televisão, apagou a luz e fechou a porta mansamente. Desceu
as escadas, fez um gesto feio nas costas da porteira e saiu para o frio de
Março. O senhor André, o ronha reformado do Estado, bastante mais velho que
Jacquemard e perito em electricidades, estava como sempre na sua mesa por
detrás da montra do cafézinho da esquina e olhou-o suspeitosamente. O senhor
Jacquemard foi andando, pensando como um homem a quem tivesse saído a lotaria
sem estar à espera. No seu peito algo ronronava com ternura. Jacquemard começou
a recordar-se da sua infância no Poitu: os regatos correndo entre bosques de
avelaneiras, o fumo sobre os telhados das casas da quinta, o tilintar dos
chocalhos das vacas da courela de mestre Paupel, o seu boné de abas quando era inverno.
“Jacquemard, pensou de si para si, há coisas na vida que não podemos explicar.
Tomemo-las como ofertas do mundo misterioso. Não esperar mais do que a nossa
conta...isso é que é saudável!”.
Em vista disso foi andando para a tasca onde costumava fazer as suas
refeições desde que a mulher falecera, resolvido a destroçar uns belos
linguados salteados com batatinhas. Um dos seus pratos favoritos, ainda que não
fôsse um comilão.
Ia cheio de paz, mas um bocado intrigado. Disse com os seus botões:” Logo, quando me for deitar, espero bem que
também lá estejam uns avestruzes”. O senhor Jacquemard sempre fora, e isto
desde pequeno, um homem de espírito aberto, curioso até mais não. Lá na loja,
por causa disso, os colegas até lhe atiravam às vezes, de raspão, piadas que
lhe entravam por um ouvido e saíam pelo outro.
O
FLIBUSTEIRO
Foi um pouco antes do jantar, depois de vir do escritório, que o Basile
teve a certeza de que era cornudo.
Era uma segunda-feira. Basile – Basile
Cambon, como o grande homem de Estado – saía sempre depois de todos os
empregados se despacharem. A menina Capitoline, a dactilógrafa e recepcionista,
dissera-lhe como sempre com os seus olhinhos de carneiro mal-morto: “Quer que feche, senhor Basile?”. E ele,
como sempre, respondera: “Não, deixe
estar. Vá andando que eu depois fecho tudo”. Toda a gente, desde o Rimet, o
estarola que também fazia as vezes de caixeiro-viajante quando calhava, até à
madame Sidonie, que a Casa herdara da anterior gerência, sabia que ela estava
apaixonada por Basile, mas ele só se servia disso para lhe atirar para cima do
lombo uns leves trabalhitos inadiáveis. Também toda a gente sabia que o
patrãozinho Cambon, sucessor do velho Ignace, gostava muito da esposa, a dona
Renate filha dos Blondine das ourivesarias. Nem constava que ele se
desalinhasse até quando ia, o que aliás depois do casório se tornara muito
raro, aos serões das Folie Bergères.
Às vezes até se davam ao trabalho de falar no casal perfeito que eram
Basile e Renate.
Comeu a refeição quase em silêncio. De vez em quando, entremeado na
escassa conversa, um olhar saltava em direcção à face da esposa, que com os
lábios vermelhinhos e os cabelos arruivados aguentava muito bem uma segunda e
até uma terceira mirada. E o peitinho de rola até lhe arfava, ela que era dada
a fagueirices como Basile muito bem sabia.
Aí por volta da sobremesa, Basile percebeu quem era o destruidor do seu
lar: o Patrice, evidentemente, o tal que nas festas de aniversário, de Carnaval
e de antigos alunos do liceu tinha o hábito de pôr um monóculo e de imitar o
Maurice Chevalier e o Coluche. Um tunante, é claro, mas sabe-se como as
senhoras românticas se pelam por tal género de energúmenos.
Ainda tentou dizer para si mesmo que ninguém iria reparar, que tal coisa
era na cidade o pão-nosso de cada dia, que muitos dos seus conhecidos também
participavam de tal estatística. Mas nada o consolava. Sentira assim como uma
cabeçada no plexo solar e, quando passara a Renate a tacinha da compota, até as
mãos lhe tremiam.
Com a classe herdada de seu pai, um homem honrado dos pés à cabeça, fez
que não reparava na evidência da traição. Mas o coração estalava-lhe de comoção
camuflada.
Foi para o escritório sem dar sequer uma palavra à esposa, que aliás nem
se deu conta do gesto: pairava é claro noutros universos e o nariz reluzia-lhe
sem embaraços.
Passou as mãos pelos seus velhos livros, seus companheiros de aventura.
Do armário tirou os calções de pano grosso, o casacão de alamares, o chapeirão
e o sabre. Ajustou, depois de bem enfarpelado, o par de pistolões em cruz no
cinturão largo de couro com a grande fivela de prata. O papagaio estava, como
sempre, no poleiro da cozinha: foi só tirá-lo de lá e colocá-lo sobre o ombro.
Estava pronto. Desceu ao quintal, o quintal grande e arborizado que a
mãe Cambon tanto ornamentara e melhorara. Acenou para o seu imediato, com a
larga mão aberta, o sinal de zarpar. E desta vez é que já não voltaria.
Assim como assim, afinal, no fundo nunca gostara muito de Paris.
Poeta e contista de
ascendência transalpina nascido em Aubagne em 1967. Fez parte do brilhante
círculo de jovens autores que agregou, para além doutros, os poetas Marcel
Delpach e Jules Morot (já publicados entre nós) e a musicista Maria Darmyn.
Professor agregado num estabelecimento de ensino na Gardanne (Provença), deu a
lume poemas avulsos e “Recits du parc”, pequenas histórias do quotidiano onde
brilha uma crueldade terna e desenvolta (in AGULHA e
TRIPLOV).
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