Maria Elena
Sancho tem um programa de rádio, "Poesia y algo más",
ali ao lado na Argentina (se acaso estivermos no Google Earth é claro - mas é o
mesmo, que hoje os países tocam-se e assim se diga para os autores e as obras),
nessa Buenos Aires onde pairam os ecos da voz de Borges, de Adolfo Bioy
Casares, Juan Gelman, Alejandra Pizarnik e tantos, tantos mais...
Ora
acontece que suscitado por Julia Prati e Victoria Servidio, fui
convidado a enviar-lhe umas coisitas minhas. E a propostas destas de
senhoras poetisas assim nada se recusa, mormente por estarmos a contas com o
país de Gardel...
(Isto
digo eu na galhofa, mas usteds já me perceberam).
Em
suma, tirei-me de meus cuidados e enviei, entre outras coisas, o que vos
remeto em anexo para leitura e uns minutos de traquinice
cultural, sempre com a estima e o proverbial abraço de fim de semana.
Cézanne, Casas à beira da estrada, 1881
OUTRORA
A
antiga casa não lhe mexam. Não
procurem
desfazer-lhe
os sinais que as sombras
lhe
deixaram. Os canteiros
que
fiquem com pedaços de cacos, velhas
rugas
sob os alicerces. Plantas
que
o silêncio gerou anos e anos
às
telhas se misturem .
Os
dedos, não lhos marquem
com
óleos, tintas, cores
em
toda a frontaria e nas traseiras
E
as nódoas de musgo, a cansada ferrugem, as
flores
quase desfeitas
abandonem-lhas.
Não lhe pintem
também
a luz
que
o tempo debaixo do cimento faz ficar
- o
sol, o vento, a chuva -
mágoas
e alegrias dum século
mais
que incolor e vago.
Absorto
e parado
que
tudo sempre idêntico
sepultado
nas crostas sem limites
fique como os minutos da terra, assim desfeitos.
A
brisa, como em sons
de
vida e morte
nas
janelas abertas passe
- lamento
reflectindo a memória
lenta
das vozes.
Que
as asas lhe resguardem a quietude. Que o sol
a
vele e adormeça sua paz final. Que o Outono
lhe
acalente a ausência: porque já nada pode
agora
transtornar
a
velha moradia
-
os campos, em redor, são o disfarce
de
milhares de coisa já perdidas -
aranha
minúscula subindo
os
tempos invisíveis
laços
para sempre desmanchados, porta
que
se entreabre e une finito e infinito.
in FLAUTA DE PAN
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