É
provável que uma hipotética saída da União Europeia agravasse ainda mais a
nossa situação económica. Mas talvez melhorasse a nossa saúde mental. No meio
de uma crise que coloca a sua própria existência em risco, o Parlamento Europeu
dedica-se a demonstrar que não se perderia muito: não satisfeito por possuir
uma absurda Comissão dos Direitos da Mulher e Igualdade dos Géneros, o PE
permite que a dita comissão se alivie de palpites acerca de matérias que sempre
os dispensaram.
Até
agora, essa destravada fraternidade tentava interferir no mundo real e
entretinha-se a propor quotas em empresas e delírios assim. Agora, soube por
Helena Matos (blasfemias.net), a referida Comissão avança para o mundo da
ficção e quer abolir das escolas ou no mínimo temperar a influência das obras
literárias infanto-juvenis que atribuem papéis "tradicionais" aos
elementos masculinos e femininos da família. Livrinho em que o pai saia para o
trabalho e a mãe fique a cuidar da prole irá, se a coisa vingar, directamente
rumo ao index dos eurodeputados.
O index
será vasto. Não estou a ver nenhum clássico da literatura do género em que a
personagem do marido passe os dias a mudar fraldas e a da esposa assuma um
lugar de relevo na sociedade. Mesmo na "Branca de Neve", que está
longe de representar um agregado familiar retrógrado (conheço pouquíssimas
senhoras que coabitem em simultâneo com sete cavalheiros, para cúmulo de
estatura alternativa), a verdade é que a heroína trata das arrumações caseiras
enquanto os seus sete parceiros labutam nas minas. E quanto a Huckleberry Finn,
criado na ausência da mãe e na presença de um pai alcoólico, erradica-se ou
não? E os órfãos de Dickens? E, uns degraus abaixo, os pobres sobrinhos sem tia
da Disney? Além disso, a Comissão dos Direitos da Mulher e Etc. é omissa no que
toca às fábulas. Se, por exemplo, é indesmentível que, ao invés da cigarra, a
formiga trabalha como uma desgraçada, nem Esopo nem La Fontaine sugerem que a
dita seja fêmea e unida pelo matrimónio a um formigo que colabora nas tarefas
do lar e respeita o "espaço" da companheira. Que obras, em suma,
corresponderão aos requisitos de igualdade? Há uma imensidão de dúvidas.
Por
sorte, há um PE recheado de certezas, que reivindica à Comissão Europeia
legislação capaz de regulamentar (um verbo predilecto) o equilíbrio conjugal
nas histórias para petizes - no papel e também no cinema, na televisão, na
publicidade e onde calhar. O argumento (digamos) é o de que os
"estereótipos negativos de género" minam a "confiança" e a
"auto-estima" das jovens, limitando as suas "aspirações,
escolhas e possibilidades para futuras possibilidades [a repetição não é
gralha] de carreira". Quem fala assim não é gago: é semianalfabeto na
medida em que escreve com os pés, arrogante na medida em que submete a
liberdade criativa à engenharia social e um bocadinho maluco na medida em que
confunde a fantasia com o quotidiano.
Não tenho
opinião sobre os modelos imaginários que devem orientar as criancinhas. Em compensação,
parecem-me evidentes os modelos palpáveis de que as criancinhas devem ser
protegidas a todo o custo - a menos, claro, que os pais lhes desejem um emprego
em Bruxelas, a incomodar o próximo para entreter o ócio e realizar uma vocação.
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