A PROPÓSITO DE “EXTERMÍNIO NO 31º
ANDAR”, DE PETER WAHLÖÖ
Sem comentários – para quê? – aqui fica o texto que dei a lume em
páginas culturais do Brasil, de França e de Portugal em 2007/2009.
O livro, por seu turno, foi escrito em 1964 (‼!) e publicado entre nós
em 1990.
…e é assim que se faz a Estória. E a História
também…
“Porque vos ensinam eles a
amá-los, se é para vos tratar assim? Porque não vos deixam eles em paz?” –
William Irish
Há livros assustadores. Uns
pelo espírito, como por exemplo o “Lázaro” de Andreiev, que nos coloca de
chofre e sem complacências em frente do facto de que uma vida de ressuscitado
seria, afinal, tão angustiante e repugnante como a degustação de uma refeição
apodrecida. Outros pela letra, como o Drácula
de Bram Stoker sobre o qual já se disse que só um leitor completamente
destituído de sensibilidade conseguirá ler numa casa deserta e pelas horas
mortas da noite.
Outros, por seu turno – e é o
caso desta “utopia negra” vasada nas
luzes boreais que conformam as sociedades escandinavas – porque o que neles se
encena está a acontecer paulatinamente.
E não só naqueles rincões.
O caso sucedido tempos atrás na
politicamente correcta Noruega, onde os monstros particulares são produto de
uma administração cuja tenaz cegueira é a prova do seu cinismo suave e perito em enterrar a cabeça na neve (e já não, como
os avestruzes, na areia do deserto) para sagração de um oportunismo que finge
supor que os cidadãos são um resíduo
angélico para que se não vejam as partes demoníacas do seu poder
governativo, mostra-o sem véus e sem disfarces.
Nicolau Saião, O grande guerreiro
Nesta obra de entrecho quase
linear, duma secura de estilo necessária para que a sugestão resulte, Peter Wahlöö (que com sua mulher Maj Sjowal deu na
época a lume um belo punhado de polars
bem inseridos no género, mas com um timbre de novidade que os distinguiu) segue
passo a passo os sete dias duma investigação que um inspector da polícia
efectua para que naquela sociedade pacífica
e onde o Estado mais ou menos cordial procura que o cidadão viva sem
traumas (e onde o único crime significativo e punido aliás sem muita violência
expressa é a embriaguez, que
entretanto se multiplica) tudo continue a ser sereno.
Nesta sociedade o controle é
exercido pela leitura: leitura de
revistas e de jornais com visão positiva, onde o próprio fenómeno desportivo
(fautor de paixões e frequentemente de conflitos) não recebe muita atenção a
não ser a que possibilita que se possa epigrafar televisivamente o sucesso das
vedetas que o integram.
O consórcio que o domina é
constituído por gente esclarecida e de “boa formação” partidária e propugnadora
de uma igualdade social estabelecida
de maneira amena e que até quando despede dos empregos o faz cordatamente: o
indivíduo ou indivídua em causa recebe uma reforma razoável e um diploma por
bons serviços, assinado por altas individualidades. E o além está muito
longe…mesmo quando ao virar da esquina.
Mas há sempre alguém que, com
impetuosidade maldosa, “sem olhar à
felicidade social a que se conseguiu chegar” (sic), resolve meter um
pauzinho na engrenagem. Por puro sadismo
(como se diz neste ocidente cristão, civilizado e culto) ou por maldoso anarquismo (como há dias disse
publicamente um comandante da polícia metropolitana inglesa, que ao mesmo tempo
solicitou aos cidadãos britânicos que, e cito, denunciassem os vizinhos que
soubessem que perfilhavam ideias
anarquistas – o que quer que isto seja…)? Ou, ainda, por impiedade, como se diz naqueles países
do oriente que têm a dita de existir em teocracias?
Alguém, portanto, usando
precisamente uma folha anexa não preenchida dum desses diplomas, (uma vez que o
papel é pacificamente controlado), endereçou às autoridades uma carta
inquietante, sugerindo que inquietantes acontecimentos iriam dar-se. E embora
as forças vivas tenham essa carta por eventual simples brincadeira, tal como
uma outra insistência significante, nunca fiando – a própria brincadeira
indicaria já um escabroso, quiçá injusto, desvio e Jensen - polícia
compenetrado e eficiente sofrendo no entanto de um doloroso e crónico
desarranjo gástrico que nem a comida cientificamente confeccionada e posta à
disposição dos cidadãos pelo ministério da saúde que tem a seu cargo as dietas
racionais consegue tranquilizar – mergulha num universo de entrevistas e de
encontros que pouco a pouco lhe patenteia os meandros do jornalismo, se
jornalismo se lhe pode chamar, e da criação escrita quando a criação escrita é apenas um simulacro
que ora leva ao suicídio dissimulado (ou assistido) ora à entrega a um ambiente
de mundanidade, de sucesso e de notoriedade bastante semelhantes ao que usa
utilizar-se nesta Europa das pátrias e, suspeito-o com alguns tremores
relativos, nas sociedades alfabetizadas de outros continentes…
Homem sério e bom profissional,
ético tanto quanto as circunstâncias peculiares o permitem, nesta viagem
iniciática de uma semana nem sequer negra em que a desesperança do protagonista
é irmã colaça da desesperança sentida pelo leitor enquanto mergulha na
naturalidade do relato, a regra da “detective
novel” é subvertida, ou melhor: invertida. Os chefes que o comandam
preferiam não saber e a demanda de Jensen dirige-se não à descoberta mas à ocultação.
Nas sociedades racionalmente policiadas, como por exemplo a sociedade lusa, o
polícia, (que funciona como Némesis justiceiro) age preferencialmente como
aquele que camufla o enigma ou,
dizendo ainda mais esclarecedoramente, faz com que o enigma seja uma camuflagem que garante ou sustenta o “equilíbrio”
entre as classes, para que a paz e o progresso coabitem salutar e airosamente…
No entanto, nem nestas mansões
quase celestiais as coisas são como deviam ser (ou se esperava que fossem).
Dizia António Maria Lisboa,
numa frase bem respigada por Cesariny, que “Todo
o acto premeditado ou todo o acto leviano tem a sua guilhotina própria”.
A mim sempre me pareceu que
ele tinha razão ao cunhar este conceito. E, se o pudesse ter lido, creio que
Jensen – e muito mais os seus chefes – teriam dolorosamente entendido a verdade
que assistia ao infausto poeta surrealista lusitano.
À sua deles própria custa – mas isso seria já
uma outra estória…
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