domingo, 9 de junho de 2013

O SERTÃO EM SEUL




Um amigo me envia um vídeo estranho: um clássico da música regional nordestina brasileira tocada por coreanos, em coreano. O que há aí de estranho é tudo. Para exemplificar por contraste, não seria de estranhar um grupo de rap coreano. Porque o rap, apesar da origem americana, faz parte da cultura pop, que na verdade significa popular urbana. Essa cultura é tão internacional quanto a própria urbanidade contemporânea. Mas, justamente, a música regional em geral, e a nordestina em particular, é popular no sentido original, ou seja, pertence a um mundo pré-urbano, pré-industrial e pré-global, em que a realidade local produzia uma arte de linguagem igualmente local. Neste caso, para piorar, trata-se da clássica "Asa branca", do grande Luis Gonzaga, que tematiza uma dos dramas mais específicos do Nordeste brasileiro, a imigração agrária pela seca. E a temática recorre a uma linguagem verbal, na letra, e melódico-rítmico-instrumental, na música, marcantes daquela cultura e daquela região.


Quando olhei a terra ardendo
Qual fogueira de São João
Eu perguntei a Deus do céu, ai
Por que tamanha judiação

Que braseiro, que fornalha
Nenhum pé de prantação
Por falta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão

Até mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
Então eu disse, adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração

Hoje longe muitas léguas
Nesta triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Pra mim voltar pro meu sertão

Quando o verde dos teus olhos
Se espalhar na prantação
Eu te asseguro, não chore não, viu
Que eu voltarei, viu
Meu coração


Perguntei-me: o que alguns jovens coreanos urbanos podem apreender ou captar disso? Mas isso até ver o vídeo. A grata surpresa foi a beleza e a modernidade que deram à música, sem torná-la uma caricatura transcultural. O resultado é uma outra coisa que é a mesma coisa, ou a mesma coisa que é ourta coisa, e é ao mesmo tempo brasileiro e coreano, sem passar pela pasteurização, que é um terceiro neutro, o do pop. Uma das coisas que se demonstra é a vitalidade de certa arte popular, outra, a modernidade da cultura coreana, pois a modernidade é, de algum modo, a forma forte de que o pop é a forma fraca, no sentido de a modernidade ser a cultura resultante do contato e do contágio internacional das culturas a partir da expansão marítima europeia, enquanto o pop é esse contágio e esse contato pelo viés e o filtro da cultura urbana de massa, que não se separa da indústria cultural.
Por fim, como dizia o modernista paulista Oswald de Andrade, "a alegria é a prova dos nove". A beleza também. E essa versão coreano-sertaneja é muito bonita.
Uma observação técnica: o ritmo da música evoca claramente a marcha de um cavalo, que é o ritmo da imigração agrária, e também da ida lenta, pessoal e solitária, da saída que se arrasta, e arrasta a dor da partida, à diferença, por exemplo, de uma viagem rápida e anódina de avião. E há toda uma aspereza nordestina tanto nesse ritmo, quanto na entonação original quanto na instrumentação. Pois os coreanos urbanos não perdem nada disso, apesar de não fazerem uma mera imitação, um "cover", e de usar também instrumentos próprios.

E tudo isso me lembrou das tristezas do islã. A Coreia é geográfica e culturalmente muito mais distante que o Oriente Médio. Suas religiões não derivam do monoteísmo judaico. Por que, então, a Coreia, como o Japão, a antiga Cipango dos tempos das grandes navegações, o extremo da Ásia e o extremo do mundo, puderam ou souberam se modernizar, e incorporar o melhor da cultura ocidental moderna, como a liberdade individual, apesar do coletivismo confuciano, do culto reverente aos antepassados do taoísmo e do xintoísmo, da anti-individualidade budista etc., incluindo aí as mulheres, como agradavelmente se vê no vídeo, enquanto o islã é essa cinza miséria medievalesca? Enfim, pequenos prazeres estéticos modernos podem vir do Extremo Oriente, mas não do Médio Oriente. Alá explica, sem dúvida. Mas não justifica.



 
 
 

3 comentários:

Manuel Graça disse...

... mas que coisa absolutamente extraordinária.

Luís Dolhnikoff disse...

Uma lindeza, como se diria no Nordeste...

ab, l

José Gonsalo disse...

Muito bom! A música e o a-propósito das observações.
Abraço.