sábado, 15 de junho de 2013

O jogo de janelas do cantor


(imagem recolhida aqui)

     Por vezes, nas minhas horas e tanto quanto me recreio no youtube das músicas, vagamundeio por aqui e por ali à guisa de um apreciador relativamente nostálgico de melodias de antanho mas também do momento que passa - e nós com ele.
  
    Os Moody Blues, os Scorpions (com os seus trechos notáveis, respectivamente "For my Lady" e "Send me an angel" entre outros de fecunda traça) além de coisas de grande nível como as composições de Rick Wakeman, Olafur Arnalds e, sem ser redundante e ao correr da lembrança, Cimarosa, os Dire Straits, Pierre Henry...

    Mas agora a música é outra. Com efeito, neste envio de hoje relanceio - ainda que de forma necessariamente breve -  um livro, saído tempos atrás e ainda com lançamentos públicos em várias localidades, de um alentejano de gema meu conhecido de há largo tempo que se abalançou noutra disciplina criativa.

 Mas aqui fica o alvitre: visualizarem/ouvirem esta "Romanzeira", canção com que participou no Festival da Canção de 99.



  Até à próxima semana, com os abrqs e bjh proverbiais.


 PScriptum - Em próximos envios: "Palavras escritas de um professor", "Imagens que me chegaram pelos tempos", "As paredes de C.Ronald", "Louvor de Cruzeiro Seixas", entre outros..




O Jogo de Janelas do Cantor
                       
Nicolau Saião, A música

    Francisco Ceia tem sido, preferencialmente, cantor e homem de teatro. A sua biografia encontra-se, pode encontrar-se, na rede e em lugares da mesma traça com anexos em DVD e outra - como costuma dizer-se – soma de pormenores.

   Mas não é a isso que agora vou, espero que adequadamente, reportar-me.
  
   Com efeito, este pequeno bloco tem a ver com outra circunstancia que não tomaria como fortuita ou, mesmo, subsidiária.

  Visto o interesse que o autor pôs na sua efectuação – já pela edição em si, já pelo cuidado posto na sua divulgação que foi acompanhada de actuações – percebe-se que FC tem esta sua nova feição como fundamentada, diria mesmo nuclear e pelo menos paralela àquelas outras apontadas no início deste trecho.

   E assim foi que este músico por extenso, congregando muito naturalmente um trabalho de diversos anos, deu recentemente à estampa um livro – razoavelmente volumoso e tocando em diversos pontos da sua experiência pessoal como homem de palavras (é um cantautor, também e como decerto saberão) e do que o lirismo lusitano repercute nele – intitulado “Jogo de Janelas”, que excursiona pela inflexão poético-memorialística, sendo a poesia do hacedor, como no fundo é sempre, uma viagem pela memória própria visando tocar as memórias vivenciais dos outros (que é esse o veículo da partilha, da comparticipação que une autores e leitores).

    Janelas são lugares de onde, por onde, se pode aceder ao universo das imagens exteriores, mas também das concepções que lhe subjazem, das propostas que lhe estão inerentes e, por tudo isso, que situam quem as abre num plano privilegiado para observar o tempo – o que foi, o que é e o que irá chegar – num jogo incessante e ainda que fragmentado de reflexões e de desejos que estão somente dependentes da capacidade com que aquele que contempla, que simultaneamente as abriu e nelas se consubstancia, efectiva com maior ou menor justeza mas sempre filha duma liberdade que se auto-concedeu na busca de uma apropriação bem cimentada.

    O discurso poético de FC, que se inicia formalmente com textos enunciados duma maneira habitual  - estrofe seguindo estrofe, à guisa do que Tomás de Figueiredo usou fazer no seu longo poema “Viagens no meu Reino” (parente próximo creio que apenas por acaso, pois era capaz de apostar que FC não o conhecerá) – a breve trecho se vaza em compactos blocos de prosa que, sendo de facto prosa poética, não afasta as estórias que neles se contêm -e que o leitor facilmente apreenderá no decorrer da sua incursão através das páginas que as janelas lhe oferecem e que, realce-se, possuem dentro o timbre do cantor que Francisco Ceia continua, mesmo num livro assim dado, a ser.



                         
  
“(…) Eu, a ver o caldo entornado, bem agarradinho à tigela balouçante,
A voz rude do contra-mestre a insistir: Estás na lua, meu farsante?
Nunca, em tal façanha, tinha pensado, mas até não seria má ideia,
Que raio, ou vento teria de soprar, mais o fogo de quanta candeia,
Para de porto seguro, içar este casco de tábuas a ranger, céus arriba,
É pensar atrevido, para que moço da planície neste tempo, o exiba,
A emperrar tal feito, não faltariam vozes de burro e cães ladrando!
Enfeitados na gordurosa sanha de incapazes palradores, aterrando,
Todos em cortejo: Só um parvo, pretenderia lobrigar naquele vazio,
Ouro, especiarias, seda, marfim ou a precisar de cruz, preto gentio!  
Um safanão, tirou-me do delírio: Viste o demo, ó, vadio duma figa?
Vou dar à coberta, estão murchas, as velas, e o bafo que as fustiga;  
Invadiu-a uma poalha húmida que a todos embacia, da cor do leite.
Cauteloso, espreito da amurada, o mar está um alguidar de azeite,
Cirandam marujos como fantasmas, o barco estagnou prisioneiro,
Horas a fio, como se esperássemos a salvação, vinda do nevoeiro.
   Se calha, esta saga vem de mais longe, a correr na massa do sangue.
Desta feita, quem irá ser o salvador que nos liberta o peito exangue?
Só restou acesa acima dos mastros, lá no alto a candeia do mundo,
Mas não passa de um pirilampo, neste oceano branco e profundo.
Se o sol se lembrou de acordar como sempre faz, no céu admirável,
É bem grande o mistério para onde foi recolher-se, o vento amável,
Umas vezes enche os panos, assobiando alegre, as naves empurra,
Outras, dá-lhe tamanha moleza no sopro, é um anjo que sussurra,
Presos neste ardil da mãe Natureza e extraviados das outras naus,
Manda quem pode, vai de bombarda para assustar espíritos maus,
Mas qual quê, o manto branco não se rasgava, nem a aragem bulia.
Nos confins do porão, espantava-se um boi, sem saber para onde ia,
As galinhas no cacarejo, refilavam, sem disposição para pôr o ovo,
Para o casalinho de borregos de olhar morto, tudo aquilo era novo,
Até o galo ficou de trombas, por não poder o cavername balançar,
A chinfrineira aniquilava-lhe a concentração, nas alturas de galar,
Pelos vistos, não há bolina que nos acorra, nem truques de verga,
Só bruma esvoaçante, mais nada, a um palmo do nariz se enxerga,
Ô! Mestre parece mesmo que arribámos ao tranquilo mar da lua! (…)”.

(Da Janela V)
FC


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